Caminho de ferro entre Lourenço Marques e Pretória - contexto geral e nacionalização parte 1

Continuando com a análise da história do Caminho de Ferro de Lourenço Marques (LM) concessionado por Portugal a Edward McMurdo em 1883/84. O que aqui escrevo é o lamiré duma história muito complicada e sobre a qual há muita informação disponível pois pelo seu desenvolvimento tornou-se "caso de estudo" internacional. 
Cerimónia de baptismo da locomotiva Prince Luiz Philippe a 2 de Julho de 1887 

O principe Real Luis Filipe nasceu em 21 de Março de 1887. Como a linha foi inaugurada em Dezembro desse ano e as locomotivas devem ter chegado a Moçambique uns meses antes pode-se ver que o concessionário McMurdo ansiava que a prosperidade da sua companhia acompanhasse a do príncipe. De facto o paralelo aconteceu mas pela negativa, pois a companhia foi nacionalizada pouco depois e o príncipe assassinado sem chegar a ser rei.
As dificuldades de McMurdo em arranjar fundos de 1883 em diante e do Transvaal (República Boer ZAR) em encontrar concessionário para o complemento maior da linha no seu território relacionavam-se com a aparente fraca viabilidade financeira do projecto. Nessa altura o Transvaal era pouco povoado e dedicado à agricultura. Mas em Julho de 1886 fazem-se as primeiras grandes descobertas de ouro no Rand (gold rush), o presidente Kruger declara "open field" e Johannesburg começa a nascer com emigrantes chegando de todo o mundo. Muda radicalmente o contexto regional e as perspectivas da linha que seria em princípio para exportar os produtos agrícolas do Transvaal transformam-se. A linha passava a ser o mais eficaz meio de transporte entre um porto de mar e o Rand para encaminhar pessoas, mercadorias e maquinaria pois a alternativa eram estradas de terra com carretas puxadas a bois passando por áreas infestadas de tsé-tsé e leões. E deve-se notar que as linhas férreas entre Pretória e o Cabo e Durban só apareceram em 1893 e 1895, respectivamente. Mesmo a médio prazo, o acesso ao mar por LM teria sempre a vantagem da distância ser mais curta e a concessão de McMurdo passou a ser valiosa financeira e estratégicamente. 
Assim McMurdo consegue financiamento para o final de 1886 e completa 82 km dos 90-91 km da linha no fim de 1887 (a diferença foi explicada aqui). Nesse ano o Transvaal concessionou a secção Komatipoort - Pretória à companhia holandesa NZASM (que construiu em LM em 1890 a ponte holandesa para desembarcar o seu material e que fez outras linhas na África do Sul) mas ficou à espera de desenvolvimentos do lado português, que tal como os sul-africanos queriam ter a certeza de que a linha chegaria à fronteira e de que as tarifas seriam razoáveis. Portugal deu prazo final até 24 de Junho de 1889 para que McMurdo respondesse ao que o Transvaal queria e na falta de cumprimento no dia seguinte toma posse administrativa da linha, o que mais tarde se converteu numa nacionalização. 
Análise rápida dos pontos que levaram a essa situação: 
1. Quem pagaria os 8-9 km de linha que faltavam para a fronteira: é um assunto complicado e no fundo tem a ver com o que está implicito na aprovação dum plano, o que é mais determinante um texto ou um desenho, etc. Um e outro lados divergiam profundamente.
2. Sobre o não cumprimento dos prazos dados a McMurdo para fazer os 8-9 km que faltavam 
(a). McMurdo dizia sempre que os prazos definidos por Portugal eram curtos e arbitrários, Portugal dizia que tinha estudado bem e que McMurdo não sabia planear a tempo. McMurdo repetidamente argumentava com a estação das chuvas, Portugal replicava que em África sempre se tinha trabalhado com chuva.
(b). McMurdo disse que tudo resultou de ter tido dificuldades logo no início com o financiamento porque constou nos meios financeiros que a sua concessão não era exclusiva. De facto veio-se a saber que havia um acordo secreto de Portugal com o Transvaal, mas a ser aplicado só em caso de a concessão de McMurdo não cumprir os prazos ou não definir tarifas razoáveis. Nessa eventualidade seria dada ao Transvaal uma concessão "alternativa" de tramway (a vapor) ou de um canal cujo âmbito variaria em função do grau de (in)cumprimento de McMurdo.
(c): Quem pressionava os prazos a McMurdo era principalmente o Transvaal com Portugal no meio, o que me parecia estranho dado que os trabalhos na parte da linha do Transvaal terem começado depois e com muito atraso em relação ao previsto. Mas percebi entretanto que o Transvaal precisava da linha de LM para construir a sua parte (para a importação de materiais, locomotivas) e por isso a primeira coisa que fez foi a ponte do Incomáti e a construção da sua parte começou daí para Pretória para dar continuidade à ligação a LM já pronta a partir de 1888. Penso que só depois da linha do Cabo chegar a Pretória (1893) se pode iniciar a segunda frente, avançando do interior do continente para a fronteira com Moçambique em Komatipoort. 
5. As tarifas exorbitantes: McMurdo por contrato tinha liberdade de as definir. No entanto Portugal tinha um acordo secreto com o Transvaal relativo a elas por isso ameaçava McMurdo com a rescisão do contrato se as que ele estabelecesse não fossem razoáveis.
6. McMurdo ser americano mas a companhia ser inglesa: O Transvaal não queria depender dos ingleses também em LM, já dependendo deles nas outras saídas para o mar via Durban e Cabo. Por isso fez toda a pressão possível para que Portugal cancelasse a concessão de McMurdo. Por exemplo suspeito que o Transvaal pensasse que a teimosia de McMurdo de ter tarifas altas (diz-se que contra a opinião dos seus gestores) era manipulada por Londres e que McMurdo teria garantia de que se esta concessão falhasse por causa das tarifas seria compensado pelos ingleses noutro lado, enquanto que o Transvaal não tinha alternativa (repito, suspeito). A opinião pública tanto em Moçambique como em Portugal Europeu era pro boer e anti inglesa, por isso para lá das discussões técnicas, políticamente Portugal alinhava fácilmente com os pedidos do Transvaal. McMurdo estava consciente da animosidade do Transvaal contra ele, reflectida por exemplo no facto de não definirem a fronteira com Portugal na zona desse modo impedindo a conclusão da linha do lado de Moçambique e fazendo pressão sobre Mc Murdo na questão das tarifas. A indefinição da fronteira arrastou-se pelo menos até Outubro de 1888 e por isso o adiamento do início de geração de receitas para McMurdo. 
7. É fácil dizê-lo agora, mas a posição do Transvaal parece-me fútil e resultante de má avaliação das forças e fraquezas, suas e da Inglaterra. A Inglaterra era a maior potência mundial, tinha grandes bases navais próximas de LM, tinha a armada mais poderosa do mundo. Por isso de que valiam os joguinhos do Transvaal contra McMurdo (oficialmente o Transvaal dizia aos ingleses que McMurdo era-lhes indiferente desde que respeitasse a concessão nomeadamente os prazos)? Se houvesse um conflito entre a Inglaterra e o Transvaal, a priemira podia impor bloqueio ao porto de LM, Portugal podia protestar muito mas não faria nada contra e o Transvaal ficava sem acesso ao mar na mesma. De facto não se chegou a esse extremo em 1888 mas durante a segunda guerra anglo-boer (1899-1902) com a parte moçambicana da linha já portuguesa a Inglaterra pediu (ordenou?) a Portugal para não deixar passar material militar para o Transvaal e Portugal deve ter minímamente cumprido. Em 1900 a imprensa inglesa fazia piadas sobre a permissividade portuguesa mas se a Inglaterra achasse que a "linha vermelha" que ela tivesse estabelecido estava a ser ultrapassada não se devia ficar por aí.
- P: Tem alguma coisa a declarar? Contabando (de armas) por acaso?
-  T: Não, nada! Uns guarda chuvas, umas máquinas agrícolas ..

Voltando 11 anos atrás aos factos mais directamente sobre o início da linha férrea, em 25 de Junho de 1889 o Estado Português rescinde a concessão de MacMurdo e tomou posse administrativa da linha, edifícios, armazéns e material rolante. Foi preciso enviar umas horas para a prisão uns funcionários ingleses mais renitentes em aceitar as ordens, chefiados por um excitado Philip Knee. Uns barcos de guerra ingleses apareceram na baía mas estava tudo "porreiro, pá!" e a 29 de Junho a linha passou para mãos portuguesas. Continuou a funcionar até à estação de Incomáti (faltavam ainda os 8-9 km finais), saíram muitos funcionários ingleses mas nem todos e entraram portugueses, mudaram-se as placas nas estações que estavam em inglês e tendo a resolução do conflito passado para a esfera política e para gabinetes técnicos e jurídicos na Europa.
Visão dramática da imprensa inglesa sobre os acontecimentos de 1889:
Tomada da linha pelos portugueses e um inglês na prisão geral

O Estado Português previa inventariar e avaliar tudo para a linha ser posta em leilão dentro de seis meses para se encontrar outro concessionário e ceder essa receita como indemnização aos herdeiros de McMurdo. Ele tinha falecido mais ou menos repentinamente a 8 de Maio de 1889, pouco antes da intervenção do Estado de "paralisia do cérebro" (seria derrame cerebral?). Nessa altura ainda não era intenção do Estado criar uma empresa pública mas sim continuar no modelo privado. 
Os herdeiros de McMurdo e a companhia envolveram a Inglaterra e os EUA na disputa pois os financiadores eram ingleses e americanos. Esse dois governos primeiro advertiram Portugal e em 1890 enviam notas combinadas impondo arbitragem internacional tendo os dois entretanto feito deslocar umas canhoneiras a Lisboa para meras "visitas de cortesia". Ainda em 1898 o governo português tinha dito que aceitaria negociar com a companhia ou fazer uma nova concessão ou procurara que ela aceitasse as tarifas propostas, tentanto proteger o valor que ela tinha investido, mas as posições devem-se ter extremado depois e a morte da McMurdo deve ter posto de lado essa possibilidade. Depois de argumentar que a companhia concessionária era portuguesa (e que a inglesa era uma holding com quem Portugal não tinha assinado contrato), que devia recorrer aos tribunais portugueses e que assim esses governos não se deviam imiscuir (e eles responderam que a companhia portuguesa tinha legalmente deixado de existir pela demissão dos seus administradores), por fim o governo português aceitou a arbitragem internacional mas afirmando que essa não poderia ter efeito suspensivo sobre a nacionalização. 
A meu ver esta história tem tudo para um filme para ser nomeado para os Óscares. Quem estiver interessado em produzir podia por favor contratar-me para consultor sobre as pontes 👌. Continua em próximos capítulos.

Comentários