Caminho de ferro entre Lourenço Marques e Pretória - nacionalização parte 2

Continuando com base na informação geral do primeiro volume da obra de Alfredo Pereira de Lima (APL) História do Caminho de Ferro em Moçambique disponibilizado pela Biblioteca Municipal do Porto e que vi a correr.
Foto de Fowler em 1887. Poço e depósito de água para as locomotivas a vapor
da linha do Caminho de Ferro de Lourenço Marques (toma de água)

Esta simples linha atravessando locais desolados com populações ocupadas em agricultura de subsistência acabou por ser a grande razão para a actual cidade de Maputo, antiga Lourenço Marques (LM) existir. Mas paradoxalmente como veremos a seguir podia ter sido uma causa para a actual República de Moçambique não existir. 
Dissemos na mensagem anterior que o Estado Português tomou em 1889 posse administrativa da linha de caminho de ferro de LM e a companhia de McMurdo, a Delagoa Bay & Eastern African Railway, solicitou a protecção dos seus interesses aos governos de Inglaterra e dos Estados Unidos e estes fizeram-no da melhor maneira possível. Esta parte fez-me lembrar a maneira como o governo português (não) defendeu os seus cidadãos expropriados em 1976, mas adiante.
Os três países submeteram em 1891 o caso à arbitragem de um tribunal suíço. Todavia a Inglaterra e os EUA só aceitaram que fosse derimido o valor da indemnização, não o direito a ela. Só no ano de 1900 (mais de 9 anos depois) saíu a decisão pela qual Portugal teria de indemnizar 15.3 milhões de francos suíços que APL deve ter convertido para GBP e dai fala em cerca de GBP 700 000 mas também em 1 000 000 GBP, pelo que andará nessa banda. 
A esposa de McMurdo que tinha sido o accionista largamente maioritário da concessionária tinha pedido GBP 760 000 de indemnização dez anos antes por isso perdeu aí pelo menos GBP 60 000 mais 10 anos de juro e inflação que nessa altura não sei se eram elevados(as) ou não.

Notícias do pedido de compensação da viúva McMurdo
nos jornais americanos: GBP 760 000 ou USD 3 500 000

A arbitragem suíça limitou-se a avaliar a indemnização dizendo que não lhe cabia decidir a quem seria paga (companhia, herdeiros de McMurdo, outros capitalistas, obrigacionistas e outros credores) o que ficava a cargo dos dois países e não sei como foi resolvido. Também não sei em que bases foi feito o cálculo. Penso que APL disse que foram tomadas em conta as obras feitas por McMurdo e as feitas depois pelo Estado mas o valor da concessão seria principalmente o rendimento que ela teria dado nos seus 99 anos de duração. E a meu ver aqui havia um caso intrincado pois a concessão quando foi atribuida em 1883/84 (de Lourenço Marques para o Transvaal rural) tinha uma perspectiva económica e quando foi nacionalizada tinha outra (de LM para o Transvaal das minas de ouro). No capitalismo o risco deve proporcionar lucro mas neste caso as circunstâncias exógenas em favor do capital foram excepcionais.
Parece que Portugal ficou relativamente satisfeito com a decisão arbitral e de qualquer maneira não havia recurso. Portugal como habitualmente estava falido e no total, com outras dívidas, precisava de pagar GBP 6 000 000 por essa altura e então a "velha aliada" Inglaterra propôs um empréstimo em que a garantia seria a devolução da linha ou no limite a cedência de grande parte do território de Moçambique. A Alemanha alinhava em consórcio com a Inglaterra e a sua garantia seria Angola, o norte de Moçambique e Timor. 
Entretanto segundo APL no livro Pedras, aconselhado pelo Conselheiro Mariano de Carvalho o banqueiro João de Burnay de origem belgo-portuguesa (e talvez outra mais orientalarranjou "secretamente" um empréstimo dos Rotschild em Paris e Portugal foi capaz de pagar o que devia mantendo a linha e os territórios ultramarinos. Lógicamente ficou a dever a outros confirmando o que disse o ilustre "engenheiro" do 33 de que a dívida não é para se pagar. 
Quanto ao banqueiro João de Burnay de que APL fala, aparentemente ele não existe pois com esse nome houve um engenheiro que como se pode ver aqui nessa altura (começo em 1886) foi o empreiteiro de caminho de ferro em Angola que se chamavJEAN-BAPTISTE (IV) BEAUPIN BURNAY. Esse João era engenheiro e também industrial e como era o quarto João na família presta-se a confusões porque a firma do seu avô em Portugal era chamada João de Burnay.
Banqueiro dessa geração e mais famoso foi Henrique de Burnay (1838-1909), personagem rodeado de polémica como sempre, mas no seu CV não consegui confirmar exactamente o que APL disse em relação ao caminho de ferro de LM, mas ele esteve envolvido em vários grandes empréstimos internacionais a Portugal nessa época e por isso pode ter sido ele e não João.
Quanto a Moçambique havia em Portugal uma corrente que defendia que devia ser vendido por isso se fosse o empréstimo da Inglaterra que tivesse sido aceite, provável era que a certa altura Portugal tivesse desistido de o reembolsar e Moçambique "já era". Assim se Moçambique se interessasse pelo pontos realmente críticos da sua história, o papel do Burnay que esteve envolvido ou de quem arranjou o empréstimo alternativo ao dos ingleses/alemães devia ser muito bem conhecido (já para não dizer reconhecido) porque se não fosse ele provávelmente ou Moçambique não existia de todo ou se existisse um país com esse nome teria fronteiras muito diferentes das do célebre "do Rovuma ao Maputo". E estes acontecimentos não foram há muito tempo pois curiosamente as pessoas mais velhas do mundo em 2017 nasceram em 1900 que foi quando saíu a arbitragem suíça (pessoas com 117 anos). Na dúvida se foi João ou Henri coloco aqui quadros desses capitalistas que indirectamente contribuiram (pelo menos um deles) decisivamente para a integridade territorial da colónia portuguesa de Moçambique e da República actual: 
João Burnay em 1887 (1844-1903)
Henri, primeiro Conde de Burnay em 1901 (1838-1909)

Do Clarim sobre o Conde de BurnayFaz! Eis o imperativo que melhor caracteriza um homem sobre quem Ramalho Ortigão, sob pseudónimo, escreveu o seguinte: “se lhe aparece um rio debaixo dos pés, ele bota-lhe uma ponte por cima; se lhe surge uma montanha, fura-a para o outro lado com um túnel; se um vale se interpõe, galga-a com um viaduto… Um! Dois! Três! E está pronto. Inaugure”. Influente quão controversa personagem, Henry Burnay era aquilo que se pode chamar de capitalista iluminado, reconhecido no País e no estrangeiro, e cuja alcunha era o Topa-a-tudo.

Se os boers suspeitavam de McMurdo e dos ingleses tinham alguma razão para tal porque desde os primeiros passos da linha do lado português em 1883 os ingleses quiseram por aí controlar o Transvaal. E como Portugal estava no meio da intriga anglo-boer, McMurdo tinha tentado defender-se escolhendo para a administração da sua companhia nomes sonantes da política portuguesa como Pinheiro Chagas e Ressano Garcia. Durante as discussões de 1888/89 a companhia não se coibiu de dizer ao governo português que sabia muito bem o que estava no contrato de concessão até porque o ministro que o tinha assinado por Portugal  (Pinheiro Chagas) tinha depois sido um dos administradores da companhia. 
Nesta página do álbum de fotos sobre a construção da linha e a cidade de LM que deve ter sido oferecido aquando da inauguração (provisória) em Dezembro de 1887 estão ainda esses dois nomes como directores da companhia:
Directores portugueses da companhia: Pinheiro Chagas e Ressano Garcia

Na lista das autoridades destacadas está o na altura Coronel (Engenheiro) Joaquim José Machado que foi o chefe da expedição de 1877 e em 1887 devia ser o director das Obras Públicas de Moçambique e que como fez o estudo (ante-projecto) da linha esteve na origem das confusões dos 9 km finais. Foi depois Governador-Geral de Moçambique por três vezes.
Quanto a Ressano Garcia que entretanto tinha passado da companhia para o governo português, em Junho de 1889, aquando do processo para a tomada de posse administrativa era ele o ministro das colónias e foi ele que a propôs ao rei. Aí Pinheiro Chagas continuava ainda na companhia e protestou contra a medida, mas dado ter havido resistência do pessoal inglês usou-a como argumento para resignar do cargo na companhia. No senado de que era membro defendeu depois a nacionalização como sendo um consenso nacional. Por isso McMurdo não teve sorte com os políticos portugueses que escolheu para o apoiarem. 
Como a arbitragem suíça foi tão demorada, quando foi anunciada a Inglaterra já tinha deixado as partidas de xadrez político-militar e tinha declarado no final de 1899 guerra aos boers das duas repúblicas independentes. No princípio de 1900 começou a ter conquistas decisivas (2a anglo boer) e a resistência boer terminou em 1902. Com o fim da autonomia do Transvaal a Inglaterra deixou de se preocupar com o controlo da linha do lado português, mas fazendo sempre com que parte do trafégo/de para o Rand fosse por Durban para manter uma alternativa a LM. Por seu lado Portugal usou a necessidade inglesa de mão de obra de Moçambique para o Rand para ganhar tráfego para a linha e o porto de LM e as coisas foram avançando até 1975 mais ou menos a contento de todos, magaíças moçambicanos incluidos.
NB: pelo que li num artigo sobre linhas de caminho de ferro em Trás os Montes, Portugal as tomas de água eram aí espaçadas de 25 km. Isso devia ter em conta a capacidade das locomotivas e a força que tinham de gerar por isso na linha de LM podia ser um pouco diferente mas não o seria muito.

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