Caminho de ferro entre Lourenço Marques e Pretória - trabalhos a partir de 1889 e até à fronteira

Continuando a série de artigos com base na informação geral do primeiro volume da obra de Alfredo Pereira de Lima (APL) "História do Caminho de Ferro em Moçambique", um enorme problema que surgiu entre o Estado português e o concessionário da linha McMurdo foi o comprimento da linha em território português. 
Segundo APL o Engenheiro/Coronel J. Machado no ante-projecto (estudo inicial) da linha feito em 1882-84 tinha previsto 82 km de Lourenço Marques (LM, actual Maputo) até à fronteira com a África do Sul e a concessão foi feita com essa distância no espírito. Mas depois concluiu-se que a distância seria de 90 ou 91 km (estes números variam) o que segundo APL foi justificado pela imprecisão dos mapas e da posição da fronteira. McMurdo terá sido informado da falha mas não ligou ao assunto. Ainda segundo APL o lado português estava seguro porque o contrato de concessão era para a construção da linha até à fronteira, sem a distância ser mencionada. Mas como McMurdo tinha contratado o empreiteiro para fazer os 82 km de trabalhos, os 8-9 km adicionais teriam de ser pagos à parte por ele. 
Eu achei que os 8-9 km eram diferença a mais para terem únicamente as justificações dadas por APL e resolvi ler mais sobre o assunto.  É irrelevante sabermos agora quem tinha razão ou não mas resumindo o caso é mais complicado do que APL - ao tempo leal funcionário dos CFM e nacionalista português - apresenta na sua obra.  
Facto é que o prazo para a conclusão da linha era Dezembro de 1887, McMurdo supostamente pensava que teria de fazer os 82 km e Portugal só em Julho de 1887 lhe deu os novos planos para fazer os 90-91 km. McMurdo reagiu dizendo que estava preparado para os fazer mas considerava-os uma extensão do projecto e que iria pedir uma indemnização, pediu mais tempo e pediu a Portugal para lhe dizer onde seria exactamente a fronteira. Isso Portugal não podia dizer porque dependia do acordo que fizesse com a África do Sul (ZAR) e esta por motivos que veremos depois atrasou-o o mais possível.
Nessa situação Portugal aceitou que McMurdo inaugurasse a linha provisóriamente em Dezembro de 1887 até ao Km 82 considerando o prazo da concessão cumprido mas sob condições. O problema dos 8-9 km passou assim para ano de 1888 e de facto só em Outubro desse ano (1888) Portugal e a África do Sul definiram o ponto de fronteira e Portugal deu aí a McMurdo mais 9 meses para a conclusão da linha. McMurdo considerou-os insuficientes e pediu mais três meses que Portugal não concedeu, McMurdo reiniciou os trabalhos com muito atraso e fez muito pouco (mas pelo menos iniciou a construção duma ponte ao km 81.4 o que seria 900 metros depois da estação de Incomáti) e por falta de cumprimento do contrato Portugal ao fim do prazo em Julho de 1899 tomou posse da linha e do resto da companhia de McMurdo. A Inglaterra e os Estados Unidos foram chamados a defender os interesses de McMurdo e criou-se um caso célebre da diplomacia mundial. 
Como vimos antes, só em Maio de 1887 começou a trabalhar em Moçambique o empreiteiro contratado por McMurdo o qual veio continuar a construção iniciada pelo Estado em 1886 e dirigida pelo Major Araújo. Os trabalhos até ao Km 82 foram assim feitos em passo acelerado e no final de 1887 a linha começou a funcionar, mas segundo Portugal experimentalmente e não definitivamente. Isso era importante para McMurdo porque assim começava a gerar receitas embora fossem poucas dado tratar-se de tráfego local/regional. 
Mas como já vimos logo no princípio de 1888 a linha foi muito afectada por chuvadas e ficou interrompida num trajeto de 12 km durante uns tempos. Em princípio McMurdo tinha que a reparar mas houve nova troca de responsabilidades e culpas e a falta de qualidade da linha foi mais um dos ingredientes no cozinhado iniciado pelos kms em falta. O tempero final foi as altas tarifas que McMurdo queria aplicar e que levou os sul africanos, que teriam de as pagar para as suas mercadorias chegarem ao porto de Lourenço Marques e vice versa, a fazerem os possíveis para que Portugal cancelasse a concessão de McMurdo. 
Depois de Portugal ter tomado posse da linha em Julho de 1889, em finais desse ano recomeçaram os trabalhos. Alguns foram feitos pelas Obras Públicas mas principalmente foi contratado o empreiteiro inglês Ernest Sawyer (que tinha sido contratado inicialmente por McMurdo) para fazer os 8-9 km em falta até à fronteira e outros trabalhos. Sawyer tinha feito o caminho de ferro de Mormugão na Índia Portuguesa estando por isso habituado aos costumes locais e a linha foi rápidamente completada do lado português, em 1891 ficou pronta a ponte do Incomáti já na África do Sul de que falámos aqui e ela foi aberta de LM a Komatipoort, a estação fronteiriça sul africana. A partir daí a construção da linha do lado sul africano avançou em duas frentes a partir de Komatipoort e de Pretória e entretanto do lado português houve tempo para se reforçar e rectificar o traçado e construirem-se mais estações (Pessene, Incomáti e Ressano Garcia e tendo sido a de Movene mudada para o local actual), trabalhos que terminaram em 1894.
Depois de termos visto fotos dos primeiros km da linha junto a LM vamos ver fotos relacionadas com os seus últimos km e um pouco mais dos trabalhos feitos depois da saída de McMurdo (podemos ver aqui os de Movene). Começamos pela primeira estação de Ressano Garcia que McMurdo não alcançou e que foi construida no início da década de 1890:
Primeira estação de Ressano Garcia
na foto de cima quase acabada e na de baixo mais atrasada

Na foto seguinte podemos ver esta mesma estação em 1929 e como se posicionava em relação à povoação e à fronteira. Temos em primeiro plano o rio e depois a estação que estaria para lá da linha férrea para ter acesso directo à avenida principal. A vista da foto panorâmica seria então mais ou menos para sul e para a sua esquerda a linha ía para Lourenço Marques (LM) e para a direita a curta distância daí era a fronteira e a 2 ou 3 km era Komatipoort.
Vermelho: telhado do corpo central da estação na margem sul = direita do rio
Amarelo: linha de caminho de ferro
Roxo: avenida principal da vila da estação à colina. A estrada de LM 
para a fronteira passava nesse alto
Seta preta: na direcção e LM

Podemos ver a seguir num mapa actualizado em 1930 a posição das últimas quatro estações/apeadeiros da linha do lado português. Aparece aí Ressano Garcia e a estação seguinte a que foi dado o nome de Incomáti por ser onde a linha atinge o rio. Ela corresponde ao Km 82 no limite da construção feita por McMurdo e é para onde a linha saída de LM foi inaugurada em 1887.
Vermelho: marca de fronteira com a África do Sul
Verde: estação fronteiriça de Ressano Garcia, que contráriamente 
ao estudo de Machado foi localizada a sul do rio Incomáti
Azul: estação de Incomáti
Castanho: estação de Chanculo
Laranja: estação de Movene

Na imagem seguinte do Google Earth (GE) temos a linha só entre Ressano Garcia e Incomáti. Com atenção podemos ver muitas das pequenas pontes desta linha sobre leitos de rio normalmente secos. A estação de Incomáti é num local tão deserto que só a encontrei sabendo que ficava a 8-9 km de Ressano Garcia. Numa aparte, no GE (não aparece em baixo pois seria mais para a esquerda) vê-se que o vale do Incomáti do lado sul africano está verde com grandes propriedades agrícolas enquanto que do lado moçambicano não parece aproveitado, o que dá que pensar. No entanto não deve ter sido sempre assim porque no mapa de 1930 em cima via-se dum lado e doutro do rio para a direita (sudeste) da estação de Incomáti muitas parcelas com nomes individuais e de firmas dando ideia que no passado houve também agricultura produtiva nas margens portuguesas do rio. 
Azul: Estação de Incomáti, até onde a linha desde LM foi construida por McMurdo
Vermelho: a linha feita até Ressano Garcia construida depois da nacionalização
 (no GE dá 8 km de comprimento, no limite da banda dos ditos 8-9 km)
Verde: Ressano Garcia com a estação actual que é de 1945

Continuaremos com outros aspectos da construção da secção portuguesa da linha férrea entre Lourenço Marques a Pretória noutra mensagem.

Comentários

Que magnífico trabalho. Vai ser editada uma monografia sobre Ressano Garcia e queremos publicar uma das suas fotografias da estação que mantém o seu nome. A publicação será da Imprensa nacional casa da Moeda.
Não é extraordinário que o nome do então Ministro do Ultramar se mantenha quando quase todos os nomes do período colonial desapareceram?

Cordiais cumprimentos

Raquel Henriques da Silva
prof. jubilada de História da arte
Rogério Gens disse…
Cara Raquel: Por mim pode publicar as fotos mas eu também não tenho direitos especiais sobre elas. A primeira é do IICT (você deve saber mas penso que eles têm uma licença para publicação, presumo que tirando a marca) e a segunda não indiquei no texto donde vem mas no nome com que a registei está GvN Dutch Archives o que deve levar à fonte. Eu não me recordava que RG tivesse sido MU mas realmente sei que em Moçambique ele não fez nada digamos pessoalmente, presumo que não tenha lá ido. Quanto ao nome já tinha pensado nisso e suponho que seja por fazer parte duma linha internacional mas se virmos que por exemplo a Suazilândia mudou de nome e isso tem muito mais implicações a lógica perde-se um tanto. É entâo possível que o nome tenha sido mantido por esquecimento e também porque como ele nâo foi militar não haja tanto antagonismo. Cumprimentos. RG (tal como o "nosso" protagonista : ))