Casa de Ferro de LM e sistema Danly - controle térmico no interior I (5/6)

Continuando mais detalhadamente o tema da Casa de Ferro (CdF) de Lourenço Marques (LM), actual Maputo, o já referido artigo do jornal Le Monde em relação à sua rejeição pelos esperados primeiros utentes, destaca o facto dela ser "impossível de habitar, tão elevada era a temperatura no interior". Na primeira versão dum artigo anterior eu tinha também escrito que uma das reclamações iniciais contra a CdF tinha sido ela ser quente mas agora li e reli o que Alfredo Pereira de Lima (APL) escreveu no livro "Edifícios Históricos" no capítulo sobre a CdF e na lista de queixas da altura o problema da temperatura não é directamente referido. Por isso não sei donde me tinha vindo essa ideia e não sei em que informação da época ter-se-à a jornalista do Le Monde baseado, se efectivamente o fez. 
Outro ponto crucial a ter em conta é que o desempenho térmico da casa seria óptimo se em tempo quente conseguisse manter no interior durante as 24 horas seguintes a temperatura miníma que a casa tivesse atingido na noite anterior. Assim falar-se de calor ou não na casa é sempre relativo a esse objectivo, sem aparelhos de ar condicionado (que não existiam nessa época) a casa nunca estaria mais fria do que esse mínimo. Por outras palavras o objectivo atingível seria limitar e tornar mais lento o aumento da temperatura dentro de casa a partir do mínimo alcançado à noite em resultado de arejamento profundo. 
Mas tendo havido ou não reclamações contemporâneas à sua instalação, é evidente que numa casa metálica em região de clima quente, sendo o metal bom condutor de calor, a certa altura a temperatura no seu interior deverá aproximar-se da temperatura do ar exterior. Intuitivamente parece-me também que uma casa metálica será mais "quente" que uma casa de alvenaria e por isso na informação disponível sobre as casas Danly chamaram-me a atenção as referências directas ao seu desempenho térmico e que elas eram no bom sentido (e não vi outra informação para além da relacionada com LM que dissesse serem "quentes"). 
Por exemplo diz-se num artigo sobre casas do sistema ou método de Danly relativamente ao património belga no Brasil, por isso com a ressalva de que o seu conteúdo pode ser mais publicitário que fidedigno:
"As paredes eram compostas por chapas estampadas que distavam entre si um espaço considerável para que se sustentassem firmemente, e para provir a área de isolamento térmico e ventilação. A ventilação das paredes feitas em ferro garantia uma queda de 5ºC em relação às de alvenaria, e no inverno garantiam a menor dissipação do calor dentro dos ambientes. Desde então, o sistema Danly foi utilizado em várias partes do mundo, especialmente em países amplamente influenciados pela cultura europeia, como o Brasil. A produção de edifícios indica o exito do sistema, inclusive quando se tratava de edifícios a serem montados em locais de clima temperado e frio." 
A pertinência da parte final deste texto em relação a grande parte do Brasil à primeira vista é questionável pois não deveria falar-se de "locais de clima temperado e frio". Mas tudo combinado podemos fazer a leitura de que se a casa estava preparada para resistir ao frio exterior, também resistiria bem ao calor, pois conseguiria amortecer os extremos das temperaturas exteriores e manter no interior temperatura estável e relativamente agradável.
Na mesma linha, sobre o controle de temperatura do chalé do bosque em Belém do Pará no norte do Brazil é dito aqui que "um dos cuidados de grande importância na sua construção, foi o controle da circulação do ar, para enfrentar o calor da região. Por isso, apresenta paredes duplas, com chapas parafusadas, mantendo a distância de 20 cm entre uma e outra, para permitir a circulação do ar no seu interior."
Estas duas primeiras referências mostram que a questão da temperatura não foi esquecida no desenho do sistema Danly e por isso vamos tentar entendê-la melhor.
Devido às paredes duplas, o aquecimento da placa exterior pelo sol não impacta directamente na temperatura do interior da casa pois no intervalo entre as placas está uma caixa (almofada) de ar. Mas indirectamente impacta pois a energia calorífica da placa exterior passa para o ar do intervalo, desse ar passa para a placa interior e daí para o ar do compartimento acabando por influenciar a temperatura no interior da casa. 
E vamos ver que para além dessa transmissão calorífica há ainda passagem directa de ar (quente) do intervalo para o compartimento interior. Diz assim o artigo referido em cima que numa destas casas no Brasil "as paredes duplas eram autoportantes, executadas em chapas prensadas de ferro galvanizado, com orifícios nas partes inferior e superior de tal forma que o ar circulava no sentido ascendente, diminuindo a temperatura interna", o que se subentende ser em relação à externa quando está aí calor (quando está frio deveria funcionar ao contrário). 
Tentemos então agora elementos mais precisos sobre como funcionava o controle de temperaturas nestas casas através da circulação de ar com a parede dupla. Primeiro vamos ver se existem os referidos orifícios no interior dum compartimento da CdF em Maputo:  


FOTO 1
No rés do chão da CdF, compartimento que faz de esquina perto da porta de entrada
(foto de Filipe Branquinho)
Mostro a seguir parte da foto anterior para se ver melhor as paredes do fundo e do lado direito (podendo também notar-se que as placas dos tetos são diferentes dessas, talvez por combinação de razões estéticas e dado serem interiores e inacessíveis não precisarem de ser tâo rígidas ao centro):

FOTO 1 pormenor
Orifícios ovais na parte superior das paredes encobertos por grelha
Primeira constatação é que como referido para a casa do Brasil, na CdF há orifícios na "parte superior" e que estão só nas duas paredes que dão para o exterior. Do lado esquerdo, em que há uma parede divisória dentro da casa (ver na FOTO 3) não há orifícios o que tem lógica. Essa parede também é dupla mas como a temperatura dos seus dois lado é similar (é a temperatura interna da casa) a temperatura do ar no intervalo entre as placas sê-lo-à também e por isso fazer circular aí esse ar é irrelevante para o controle da temperatura no interior da casa.
Mas o texto falava também dos orifícios na parte inferior da parede e por onde esse ar entraria para o intervalo no sentido ascendente, os quais nem na FOTO 1 nem nas deste artigo se vêm. 
Vejamos assim se essas entradas de ar estariam no exterior do compartimento da FOTO 1, numa foto do Arquivo Histórico de Moçambique publicada no site delagoabayworld que o mostra em 1972, sendo a esquina e a porta as referências principais entre as duas fotos. Verifica-se aí que do seu lado de fora não se vê entradas de ar na parte inferior das paredes, pelo menos que fossem semelhantes aos orifícios na parte superior e que se vêm por dentro do compartimento.  


FOTO 2
Vista do compartimento da FOTO 1 do lado de fora sem entradas de ar 
para o intervalo entre as placas externa e interna das paredes duplas
Conforme texto que aparece em baixo essa entrada de ar inferior (nalguns casos) estará no interior da casa e escondida entre a peça de ferro horizontal do rodapé e a placa metálica da parede fixada imediatamente acima dela. Sendo assim podemos constatar que no compartimento da FOTO 1 essa entrada de ar estará obstruida pelo rodapé de madeira e que noutra sala da CdF estará obstruída pelo menos em parte por uma calha para cabos eléctricos colocada nessa posição. Por isso pelo menos em parte a ventilação natural do ar no interior da casa através do intervalo entre as placas prevista por Danly actualmente não está a funcionar em pelo menos parte da CdF
Essa ventilação teria dois efeitos benéficos: 
i. evitar que se formasse humidade entre as placas da parede dupla exterior e que as fosse lentamente corroendo; 
ii. retardar a subida da temperatura no interior do compartimento em relação à da subida da temperatura exterior, referindo-me ao caso dum clima quente.
Nos esquemas seguintes represento como segundo as leis da termodinâmica se deve passar a evolução das temperaturas no interior do compartimento e no intervalo (caixa de ar) entre as placas metálicas verticais da parede dupla (a cinzenta no interior e a preta no exterior) e em função do calor /  temperatura exterior ("azul" é ar mais fresco, "vermelho" é ar mais quente e "laranja" é ar morno, seta verde e relógio é passagem do tempo ao longo das 24 horas).


ESQUEMA 1
Evolução de temperaturas do ar da noite para o dia antes do pico do calor, em três fases
Nestas três primeiras fases que começam a partir do momento mais frio da noite em que tudo arrefeceu (se as janelas da casa puderem ser abertas mais rápido e profundo será o arreefecimento ..), com o aumento da temperatura exterior, transmite-se calor pela chapa que faz aumentar a temperatura no intervalo entre as placas duplas. Por sua vez o ar quente ai formado transmite calor à placa interior e aumenta a temperatura no compartimento. A casa vai assim aquecendo mas se o sótão (desvão) estiver ainda um pouco frio algum ar aquecido pode sair do intervalo entre placas para lá e pela chaminé (se houver). 
Vejamos agora o que se passa quando se atinge o pico do calor no exterior e depois quando ele baixa gradualmente:

ESQUEMA 2
Evolução de temperaturas a partir do pico do calor voltando-se à noite
 à primeira situação do ESQUEMA 1
Há uma altura que corresponde ao pico do calor (ou a um pouco depois dele dado que a parede dupla retardar um pouco o seu efeito) em que as temperaturas do ar dentro do compartimento, no intervalo entre as placas da parede dupla, no sótão sob o telhado e no exterior passam a ser similares e deixa de haver circulação de ar entre os diversos elementos do sistema.
Após o pico do calor, logo que a temperatura exterior começa a descer o ar quente começa a saír do compartimento e do intervalo entre placas e a casa vai arrefecendo. O arrefecimento seria acelerado se se pudesse abrir as janelas quando estivesse frio para se poder chegar â situação do tudo azul mas nem sempre se poderia abrir as janelas as janelas (mau cheiro exterior, mosquitos se não houvesse rede nas janelas). Note-se também que a área das janelas tinha também de ser limitada porque senão deixariam entrar calor e demasiada luz durante o dia. 
Para reduzir a entrada de ar quente do intervalo (caixa de ar) da parede dupla para dentro de casa pelas aberturas inferior e superior podia usar-se um sistema de palhetas que ajudaria no sentido da saída e dificultaria no da entrada e que podia ser deste tipo:


ESQUEMA 3
Para dificultar a entrada de ar quente
do intervalo para o compartimento

Como se disse em cima, em teoria o alvo atingível realista deste sistema de Danly com a parede metálica dupla seria que a temperatura mais fresca da noite se mantivesse mais tempo no interior do compartimento e assim que aí a subida da temperatura fosse mais gradual do que seria com parede metálica simples. Se este sistema daria ou não melhor controle da temperatura que o conseguido numa casa com parede única de alvenaria, não sei dizer mas um comentário feito por António Carvalho em 2020 em relação à Casa de Ferro de LM faz pensar que não: "Fez-me recordar a minha 1ª profissão em 1956, na Casa de Ferro. No verão quase torrávamos com o calor, apesar de termos ventoinhas no teto…..".
Sobre a teoria de controle térmico nas casas Danly em França escreveram Marc Braham e Guillaume Carré (pdf) e em relação à casa da Fondrerie Peboco (e foi daqui que retirei a informação de cima sobre a posição dos orifícios inferiores): "As paredes são de metal de parede dupla ... o espaço vazio entre as duas paredes é usado para ventilação. Para esse fim, o fundo das paredes internas, de fato o ferro em U (do assento) que serve de rodapé, é perfurado com orifícios ao longo de seu comprimento. A operação do sistema é explicada nas duas patentes, mas continuamos perplexos quanto à sua eficácia".
Eu não vi as patentes mas a "perplexidade" (que entendo como sendo dúvidas) dos dois autores parecem-me justificadas pelo seguinte:
1. Nas casas de mais de um piso como a CdF o problema da dificuldade na evacução do ar quente do intervalo agravar-se-ia porque o caminho para ele saír para o exterior seria mais longo e daí a possibilidade dele transmitir calor para dentro de casa maior;
2. sem forçar mecânicamente (com ventoinhas eléctricas) o fluxo do ar no intervalo entre as placas da parede onde provávelmente haverá obstáculos criados pela estrutura metálica (cuja função principal, não esqueçamos é de suportar as paredes e as placas dos pisos) e há ângulos rectos no seu trajecto, o efeito da parede dupla é limitado;
3. em climas tropicais há o risco de a temperatura à noite que geraria o ar "fresco" não ser suficientemente baixa em relação à do dia para permitir a criação de grande circulação de ar pelo intervalo;
4. a circulação de ar ser limitada por efeitos estéticos e higiénicos dado que os projectistas estariam condicionados no tamanho dos orifícios no compartimento;
5. intuitivamente parece-me que o volume do intervalo entre as placas duplas (volume da caixa de ar) é demasiadamente pequeno em relação ao do compartimento da casa para que o controlo de temperatura do ar que por aí se faça tenha grande efeito no geral.
Tudo isto e o facto da estrutura principal da casa ter de ser essencialmente feita para sustentar as paredes, placas e telhado e não para controlar a temperatura, pode explicar a perplexidade dos dois autores sobre a solução Danly. O seu desempenho térmico seria então tema a estudar com maior profundidade..
Como se disse, a ideia de base do sistema Danly era a parede dupla de modo a que as placas de dentro sejam resguardadas das temperaturas no exterior que primordialmente afectarão as placas de fora. Todavia para isto ser mais efectivo no conjunto da casa deveria haver isolamento térmico entre as placas metálicas das paredes, a estrutura secundária que as sustinha e a estrutura principal da casa. Não havendo e suponho que não haveria pois complicaria a montagem das casas, havia transmissão do calor do exterior para o interior através das placas e do ferro das estruturas, o que reduziria o efeito benéfico que a parede dupla seria suposto trazer. 
Outro ponto que levanto aqui e tem a ver com a sensibilidade humana é que as temperaturas em climas tropicais e equatoriais são tão altas (à noite era capaz de estar bastante mais que os 25 graus que usei no esquema, de dia os 45 graus seriam à sombra pois ao sol seria muito mais quente) que, mesmo que a ventilação de Danly funcionasse como previsto, podia nem se notar muito o seu efeito positivo que não esqueçamos nûnca seria mais do que o de retardar um pouco a subida de temperatura dentro de casa.
Mas a opinião recente de António Carvalho que vimos em cima sobre a temperatura na casa leva a crer que o sistema Danly na práctica pelo menos para o caso da CdF não cumpria o prometido e isso apesar da adição de ventoinhas que nos seus primeiros anos em LM não estavam disponíveis por falta de electricidade pública (rede inaugurada em 1897):.
O tema do controle de temperatura nas casas Danly em geral e na CdF de LM, actual Maputo em particular continua no próximo artigo, mas como vimos neste houve pelo menos a preocupação no desenho do sistema Danly de o considerar. 

NB 1: No google books pode-se ver muitas referências ao controle de temperatura no livro "Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo" mas imagino que deva estar aí algo parecido com os meus esquemas,

NB 2: No pdf sobre as casas Danly em França de Marc Braham e Guillaume Carré aparece ainda um texto a propósito duma casa em Arcachon destacando as "qualidades higiénicas, demonstradas pelo uso de paredes duplas, por onde, no inverno, circula uma corrente de ar quente distribuída nos apartamentos por meio de saídas de ar habilmente escondidas nas cornijas (em cima) e rodapés (em baixo). No verão, a circulação de ar fresco é ativada por um ventilador que será colocado no topo do telhado". Não vejo este ventilador e aquecedor ser mencionado noutros casos pelo que presumo se tratasse duma solução particular para essa casa aproveitando no entanto a parede dupla que é intrínseca ao sistema Danly.

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