Demarcação de fronteira com a ZAR em 1890 - artigo de MSP - subserviência, estratégias - IV (35)

Prossigo a análise do artigo "The Lourenço Marques Frontier Limitation Committee and its pictorial records (Mozambique – 1891)" do académico Matheus Serva Pereira (MSP) sobre as fotos e o relatório da comissão com Freire de Andrade (FA) e Matheus Serrano (MS) de 1890 série aqui. 
Diz MSP que as fotos de FA registaram "the border markers, the Portuguese presence in Inhambane, the courses of rivers, wildlife and the local flora, and especially the natives in subservient positions (w)as a way to authenticate that power"
Quanto aos nativos, tanto os habitantes locais como os auxiliares da expedição, sem dúvida que a sua situação era, com fotos ou sem elas, de subserviência em relação a FA que era o chefe da expedição, que era militar e por isso tinha a "força", que tinha o dinheiro e que em termos de conhecimento era de "outra galáxia", mas não me parece por exemplo que tal subserviência tivesse tido representação exagerada . 
Vejamos uma foto de população local que terá sido tirada entre a junção dos rio Pafuri e Limpopo e a zona de Chicualacula em que FA, o fotógrafo da missão, deixou definitivamente as margens desse rio. Esta foto não foi incluida por MSP no artigo mas ele comenta a totalidade das fotos da comissão por isso podemos chamá-la à discussao porque por um lado é representativa e por outro tem aspectos peculiares que vale a pena realçar :
ACTD web_n4005 Montículo de muchem - mulheres vendendo (Limpopo)

Nesta foto de nativos, não me parece que haja posição de subserviência para além da "real / esperada" e que descrevi em cima e que por isso seja necessario fazer "descontos extra" desse factor. Aqui. as mulheres interromperam por instantes a sua actividade rotineira, os jovens estão bem dispostos e o jovem / cavalheiro ao fundo decide exibir-se sobre o monte das formigas, para mim tudo normal em qualquer lado. 
Com este exemplo e os outros das fotos incluidas nestes artigos penso que não vejo, pelo menos para a sua esmagadora maioria, um padrão definido de FA de sublinhar nelas essa subserviência "real / esperada" ou de a inflacionar artificialmente. Podemos também pensar que a "subserviência" dos nativos era um tanto contrabalançada pela vulnerabilidade de FA por estar em terra estranha e de que ele teria bem consciência, esses dois elementos deveráo contar para o contexto das fotos. 
Esta foto tem duplo interesse como enuncia a legenda, mostra a população e ao fundo um elemento natural. Neste caso, se quisermos ter em conta os factores que terão levado FA a tirá-la e que ela resultasse do modo que vemos, teriamos de  ter em conta que FA podia ter um factor enviesador da realidade relativamente ao aspecto "subserviência" e outro relativamente ao registo "zoológico e geológico". Imaginemos que FA quereria sempre sublinhar a subserviência dos africanos nas fotos mas que era neutro quando ao registo da natureza. Como teria combinado essas duas atitudes / factores distorcivos nesta foto, ter-se-ia um sobreposto ao outro, teriam os dois sido adaptados para ficarem ao mesmo nível? E como é que o observador "neutral" actual os poderia eliminar para achar a "realidade" da foto? Ele poderia a partir doutras fotos ter ficado a conhecer os factores enviesadores de FA para esses dois tipos de fotos separadamente, mas não saberia como teriam eles sido aplicados em conjunto. Pensará alguém que será possivel "purificar" essa foto e dizer o que ela "realmente" deveria ter mostrado? Resposta pragmática, a teoria é atraente mas pode ser difícil de ser aplicada.
Como é requerido à luz dos novos "theoretical and methodological frameworks for working with these images"  MSP sumariza o contexto histórico e político da comissão de fronteira e das explorações subsequentes que foram objecto do relatório de FA e MS e das fotos que estão no ACTD. Nao tenho divergência de maior quanto à contextualização de MSP mas há aspectos importantes de que discordo ou que me parecem incompletos como irei explicando a seguir. 
Diz MSP que a intenção das fotos de FA era "to legitimize the presence of Portugal and its control over the South of Mozambique" e na frase que já vimos em cima que "the border markers, the Portuguese presence in Inhambane, the courses of rivers, wildlife and the local flora, and especially the natives in subservient positions (w)as a way to authenticate that power". 
Vejamos agora o relativo nas fotos (e no texto) do relatório à estratégia de "legitimização da presença de Portugal" e de "legitimização e autenticação de poder" potencialmente veiculada pelas fotos. Esta nossa análise é dificultada pois MSP não identifica claramente a que fotos se refere a sua análise, mas partimos do princípio que se aplica ao conjunto das fotos e em que naturalmente para umas será mais relevante e para outras menos, o que procuraremos distinguir. 
Primeiro faço notar que se FA estivesse deliberadamente a tentar transmitir essa estratégia através das fotos, a sua tentativa seria incoerente com o texto do relatório em que FA falava claramente sobre quase total ausência de presença e de poder português na região. Escreve por exemplo FA na página 90: "No Inharrime, pouco antes da nossa chegada, o commandante militar, ao saber da approximação dos vatuas (eram dois) fugira deixando a bandeira içada e a artilheria carregada! Entretanto trouxera comsigo um rebanho de cabras, que lhe eram mais queridas que tudo quanto abandonava. Se os nossos representantes têem tanto medo dos vatuas e tão pouca confiança nos intendentes do Bilene, como nos poderemos admirar que os (africanos) reconheçam o Gongunhama como seu único senhor?". Resumindo, se FA mostrava aqui que a presença de Portugal era tão ténue e o seu poder tão fraco, como poderia ele estar através das fotos a tentar "autenticar e legitimizar" o que não existia? Como veremos a seguir, FA advocava que Portugal conquistassse esse poder e por isso a análise de MSP sobre o "valor" das fotos nessa vertente a meu ver não pode chegar a boas conclusões pois parte de premissa errada. Resumindo não me parece que com estas fotos FA tivesse tais objectivos estratégicos.
MSP escreve e correctamente que FA tinha "opinião sobre acções político militares na região" e que "aconselhava a estabelecer alianças com chefes que não estavam satisfeitos com Gungunhana". Isto mostra que MSP em relação ao assunto de cima tinha conhecimento de que para FA a presença e o poder de Portugal pelo menos não estavam ao nível que FA achava que deviam estar, tanto é que FA e MS recomendavam uma estratégia de confronto e não de acomodação. Mas ao estabelecer este contexto MSP dever-se-ia ter questionado onde estavam nas fotos os elementos subliminares que lhes corresponderiam. A pergunta que MSP deveria ter posto e para a qual deveria depois ter encontrado uma resposta que fosse convincente seria, quais das fotos que vemos nestes artigos levariam o leitor europeu a pensar que era "imprescindível" entrar-se numa muito custosa - em termos de dinheiro e de vidas de soldados europeus - campanha militar contra Gungunhana como FA e MS advocavam? Eu não vejo nada nestas fotos (caso da FOTO 1 que mostra pessoas e eum local) que levasse um membro do governo português ou um leitor do Boletim da SGL de 1890 a querer "imperiosamente" que Portugal estivesse ou ficasse em África. Era isto que MSP devia explicar, qual era a estratégia de FA e MS, como tinha sido aplicada nas fotos "distorcendo" a realidade e que resultados essa distorção teria alcançado no passado de modo a ficarmos nós do presente a saber do perigo de analisarmos as fotos coloniais sem as novas ferramentas teóricas.
Porque não "vejo" eu essas estratégias nestas fotos? Possivelmente por falta de discernimento mas acho eu que muito provávelmente porque FA quando as fez não tinha essa intenção como se compreenderá no texto seguinte sabendo das suas preocupações e planos. FA escreveu o seguinte na pág. 91 do relatório e depois de ter feito longas queixas contra a situação causada pela falta de poder português face à "rebelião encapotada" de Gungunhana / Ngungunyane propunha:


Continuava FA a seguir: "Passados os críticos momentos por que estão passando as nossas colónias africanas, julgamos a occasião mais apropriada para acabar com o Gongunhama, evitando assim sérias complicações futuras". E escrevia FA na pág 100: "Estas vias, alem de robustecer o nosso dominio no interior, serão ainda de grande vantagem no caso de guerra com os (africanos), que, a nosso ver, não deveria tardar muito". 
Com este enquadramento para mim torna-se claro que para FA o problema que Portugal enfrentava nessa altura era demasiadamente grave para que ele pensasse mínimamente que poderia ser resolvido com hipotécticas estratégias veículadas por fotos e suas legendas mais ou menos criativas e/ou  insinuantes (ou mesmo que tivesse tal orientação tivesse sido dada às suas fotos pelo seu subconsciente). Por isto tudo é para mim muito normal que nas fotos de FA não se descortine nem estratégia de "legitimização da presença de Portugal" / "legitimização e autenticação de poder" nem estratégia de "confronto com Gungunhana".  
Não esqueçamos também que FA era um militar do final do século XIX, época em que não me parece que essa classe grande relevância doutrinal a acções de propaganda junto dos meios civis e/ou da "opinião pública". MSP ao falar de estratégias politico / militares e ao falar de fotos como sendo potenciais veículos para elas, podia ter tentado saber qual era o "estado da arte" desse tipo de propaganda em 1890 e como não o faz dá-me a sensação , também neste aspecto, de que a sua análise não está completa. 
Continua no próximo artigo.

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