Eng. J.A. Lopes Galvão: na imprensa escrita sobre Moçambique (3/3)

Completaremos neste artigo a série sobre o percurso profissional e pessoal do Eng. João Alexandre Lopes Galvão (1874 - 1951) mais relacionado com Moçambique. Veremos aqui que muitos anos depois da sua última estadia profissional no território donde partiu em 1919  e quando estava há muito radicado na "Metrópole" continuava a abordar as suas temáticas na imprensa escrita.
Por exemplo em 1933 Lopes Galvão (LG) opinava sobre a necessidade de maior independência económica de Moçambique em relação à União Sul-Africana numa revista de Lourenço Marques (LM), actual Maputo:

ARTIGO 1
"Moçambique e a União": O Ilustrado em Dezembro de 1933 (hemeroteca de lisboa)

LG defendia aí que essa independência era desejável mesmo que viesse a causar problemas no curto prazo. Propunha por exemplo que se desenvolvesse a agricultura no Vale do rio Limpopo aproveitando a mão de obra africana que deixaria de ir trabalhar para o Rand. Isso porque considerava que a África do Sul não cumpria os compromissos que assumia por exemplo quanto ao tráfego pelo porto de LM depois de ter exigido investimentos para o melhorar, caso dos armazéns frigoríficos e das carvoeiras que nunca foram usadas significativamente. 
A descrição que LG fazia da situação era de que até 1900/1902 o lider boer da ZAR Paul Kruger, em parte devido à necessidade da ZAR romper o seu isolamento geográfico e em parte por sentimentos genuínos, tinha boas relações com Moçambique, o que lhe era correspondido pela parte portuguesa. Após a guerra com os ingleses os boers formalmente deixaram de ser independentes mas na análise de LG, e contráriamente à visão ortodoxa, acabaram por beneficiar da derrota bélica pois o seu poder passou a abranger toda a União Sul-Africana (as suas duas antigas repúblicas mais as colónias inglesas do Natal e Cabo). Entretanto os influentes proprietários ingleses das minas tinham interesse em que os acordos vigentes com Portugal fossem respeitados dado precisarem da mão de obra moçambicana e terem grandes investimentos em LM. Mas após um período de continuidade com a posição de Kruger e de estabilidade na relação com Portugal, a partir dos anos 20 as forças políticas dominantes nos boers, aos comandos do governo da União, adoptaram a antiga política britânica de protecção dos seus portos de Durban e do Cabo, a qual era prejudicial a Moçambique e assim ou não cumpriam os acordos celebrados com Portugal e/ou faziam pressão para os alterar a seu favor. 
A estratégia de maior independência económica de Moçambique que LG propunha em 1933 exigiria à partida novo e vultuoso investimento em obras no vale do rio Limpopo e na sua ligação por via férrea à rede existente. Em retrospectiva podemos dizer que não foi seguida de imediato pelas autoridades portuguesas que preferiram ir-se acomodando às circunstâncias mas a agricultura nesse vale acabou por ser desenvolvida para o final dos anos 50 e durante os 60 e essa linha férrea foi construída. 
Noto ainda que aparece outro artigo nessa edição da revista (pág 390) em que é recomendado progresso mais rápido na construção do caminho de ferro da costa de Moçambique para o Niassa. Ele é assinado por X mas suspeito que fosse também LG sob anonimato. 
Aparece mais um artigo de LG na revista Portugal Colonial de Lisboa de Julho de 1934 com título "As negociações de LM sobre a convenção entre Moçambique e a União". Era de novo a propósito da relação económica entre Moçambique e a África do Sul, o que para lá do assunto mais específico das linhas férreas parecia ser o que mais preocupava LG.
Outro artigo de LG aparece nessa revista Portugal Colonial n. 63 de Maio de 1936 

ARTIGO 2
Portugal Colonial  Maio de 1936, coronel Lopes Galvão

LG repete aí a sua opinião do crescente antagonismo dos boers, agora como força dominante na União, em relação aos interesses portugueses em Moçambique. O porto de LM era o mais acessível (pela linha de caminho de ferro inaugurada em 1895) e com melhores condições naturais e instaladas para a região do Rand - o coração mineiro, industrial e populacional da União - mas a maior parte do seu tráfego internacional fazia-se pelos portos de Durban e pelo Cabo (e pelos de Port Elizabeth e East London também). Dada a pujança da economia do Transvaal o custo adicional incorrido usando esses portos era pouco significativo comparado com a aproximação que trazia entre as diferentes regiões da União anteriormente inimigas. Desse ponto de vista a única razão para que a União continuasse a dirigir tráfego por LM era a necessidade que a sua indústria mineira sul africana tinha de mão de obra moçambicana. 
Um exemplo de vãs promessas sul-africanas relacionou-se com a exportação de carvão. Como já disse nos artigos respectivos, ela melhoraria a eficiência de exploração da linha férrea de LM pois esta tinha grande desiquilibrio no tráfego dado que o Transvaal exportava muito menos do que o que importava. Quando se aventou a hipótese de LM passar a exportar o carvão do Transvaal, o porto de LM foi equipado com carvoeiras mas a utilizaçao da capacidade instalada ficou abaixo do previsto (LM exportou em 1932 só 1/6 do carvão sul-africano, mas também tem de se ter em conta que muito era produzido no Natal por isso com saída natural por Durban). Informação de LG de 1936 era que o porto de Durban tinha entretanto sido melhorado e que a sua ligação ferroviária para o Rand também, com instalação de via dupla e electrificada em muitos troços, enquanto que a linha de LM era de via única e só para locomotivas a vapor pelo que a posição concorrencial de LM se ia deteriorando. Apesar desta descrição pessimista da situação LG terminava o artigo sem propor nada, aparentemente seria um alerta aos políticos portugueses para que defendessem mais enérgicamente o interesse nacional nas negociações com a União.
A mesma temática histórica das relações entre ingleses, boers e portugueses relativamente ao "modus vivendi" (acordos fundamentalmente regulando a disponibilização por Moçambique de mão de obra em troco de garantias de tráfego sul-africano para o porto de LM) também aparece resumida por LG no artigo seguinte publicado em Jan / Fev de 1937. No entanto a solução que ele aí propunha já não era o desenvolvimento do Vale Limpopo como tinha feito no Ilustrado de LM de Dezembro de 1933 mas outra menos dispendiosa e com impacto positivo a mais curto prazo. 

ARTIGO 3
Artigo de Lopes Galvão na revista Portugal Colonial em 1937

Nesse artigo LG dizia que a União Sul Africana de Moçambique só queria receber a mão de obra e que criava obstáculos às possíveis exportações de Moçambique, contráriamente ao que também era estipulado no "modus vivendi". LG caricaturava por exemplo a tentativa de venda de fruta moçambicana para o mercado sul-africano dizendo que as suas autoridades "providencialmente (faziam) aparecer um fungo, uma lagarta, uma larva que as produções continham o que as impedia de entrar no país vizinho". Outra táctica era os sul-africanos baixarem os preços da produção interna (presumo que o seu estado compensava os agricultores pois tinha recursos para tal) até que a concorrência moçambicana (essa sem poder contar com apoio estatal) fosse eliminada. 
Agravando a situação estava, segundo LG, a falta de dinamismo do tecido empresarial de Moçambique que comprava tudo à África do Sul mesmo quando esta só servia de intermediário e ficando os produtos muito mais caros do que se fossem negociados directamente com os produtores de países terceiros.
Em conclusão dada a falta de cooperação da União, o Eng. Lopes Galvão (LG) recomendava em 1937 que Moçambique deveria diversificar/internacionalizar as suas relações comerciais.
E já uns dez anos antes disso, em 1927 e neste artigo no Boletim Geral das Colónias LG dizia que Moçambique produzia e exportava pouco, no que respeita à agricultura e à indústria, e que Portugal Continental ia perdendo o seu lugar como seu fornecedor. 
Disto tudo fica-se com a ideia que LG expressava ideias próprias e que fugiam à louvaminhice e lugares comuns muito usuais dessas publicações para-oficiais. A propósito Bruno Marçal na dissertação de doutoramento de 2016 "Um império projectado pelo “silvo da locomotiva” também refere na página 461/462 que LG tinha uma opinião muito critica sobre o que considerava ser a altamente ineficiente organização dos Caminhos de Ferro (CF) em Moçambique. Por existirem 4 linhas físicamente separadas os CF tinham sido divididos em 4 direcções gerais (quer dizer 4 "empresas estatais") o que em sua opinião devia ser abolido pois, apesar das distâncias, muitas funções dessa empresas podiam ser centralizadas em vez de se sobreporem.
LG estava muito bem preparado para intervir públicamente sobre as relações económicas e políticas entre Portugal / Moçambique e a África do Sul porque pelo menos no período de 1905 a 1912 participou em conferências / negociações regionais de alto nível sobre tráfego e tarifas ferroviárias e sobre questões aduaneiras (ver PS 1). Segundo a wikipedia foi mesmo " presidente da Junta Mista, que foi responsável por regular as divergências surgidas após a convenção de 1909, entre Moçambique e o Transvaal". Mas como vimos em cima LG não abandonou por completo a sua especialidade de origem e, outro exemplo, em 1925 (ou 1926?) na Gazeta das Colónias publicou o artigo "Os caminhos de ferro mais necessários a Moçambique".
Essa faceta de articulista sobre África (nós focamo-nos em Moçambique mas é possivel que tenha também abordado Angola) é destacada na dissertação de Bruno Marçal numa introdução biográfica que faz a LG na pág. 205: "Mas o seu nome só tem sido invocado pontualmente pela historiografia portuguesa pela obra prolixa que deixou publicada em monografias e tantos títulos da imprensa colonial, que se adivinha muito improvável o seu total desconhecimento". Não sei exactamente o que Bruno Marçal quer dizer mas assumo que apele a um maior conhecimento e/ou reconhecimento de LG como personalidade e da sua obra escrita completa.
Mais à frente, na página 215 da dissertação, Bruno Marçal desenvolve a ideia dizendo sobre LG: "A sua autoridade em assuntos coloniais, nomeadamente em matéria de transportes e comunicações em África  (quer dizer vias férreas, portos e estradas e presumo telegrafia dado que no exército LG comandou um batalhão respectivo) raramente oferecia contestação, apesar de por vezes revelar um “espírito crítico bastante contundente”. O Estado português haveria de reconhecer o seu contributo quando o agraciou com as insígnias de Comendador da Ordem do Império, em 1945".
Referindo-se entre outros aos artigos e ao livro que mencionámos escreveu Bruno Marçal: "Durante cerca de trinta anos foi ele quem produziu uma parte muito substancial de toda a literatura nacional, nessa área do conhecimento, fosse pela elaboração de múltiplos relatórios técnicos, fosse pelas inúmeras participações em conferências nacionais e internacionais, fosse pela publicação de monografias, designadamente a obra A Engenharia Portuguesa na Moderna Obra de Colonização, editada em 1940, fosse, ainda, pela colaboração assídua em órgãos de informação especializados, como o Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, a Revista de Obras Públicas (depois denominada Revista das Associação dos Engenheiros Civis Portugueses), a Revista de Engenharia Militar, a Revista Colonial, a revista Portugal Colonial, o Boletim Geral das Colónias, a Gazeta das Colónias, e a Gazeta dos Caminhos de Ferro, onde também integrou o conselho directivo. Se, nuns casos, se encarregou de memoriar, de forma sistemática e abrangente, o processo de implementação das linhas de caminhos-de-ferro, nas províncias ultramarinas portuguesas, sendo, por essa razão, uma fonte incontornável de informação, para qualquer trabalho de investigação nesta área; noutras ocasiões ele deixou amplamente registadas as suas opiniões acerca da orientação que deveria ser dada a uma efectiva política de colonização e fomento económico, assente nas potencialidades daqueles equipamentos infraestruturais. Em ambos os casos, a sua narrativa tornou-se hegemónica, frequentemente apropriada, como elemento legitimador, no debate público e nas opções políticas nacionais". 
De salientar ainda que para além de colaborar nas suas publicações LG ocupou cargos directivos na Sociedade de Geografia de Lisboa e foi muito activo na Associação dos Engenheiros Civis Portugueses.
Encontra-se ainda um elemento sobre LG em Moçambique sobre as suas ocupações neste caso privadas e que pode ser relevante (ou não) no que repeita a entender a continuidade do seu interesse por Moçambique. Na apresentação a um congresso intitulada "Territorialização de Moçambique Colonial: “avant tout” uma luta pela transposição de contrariedades endogenéticas presentes no sistema português em montagem", o académico moçambicano Martinho Pedro refere LG como exemplo (mas parece-me que mal escolhido, acho que deviam ter sido levadas em conta certas considerações sobre economia e finanças e que não foram  ...) da falta de investimento português em Moçambique. Mas para o nosso caso o dado importante que daí se extrai (ou extrairia) é que cerca de 1930 LG era pessoa riquíssima e com investimentos privados em Moçambique e na África do Sul: "Engenheiro Lopes Galvão, (...), que não é só rico, mas riquíssimo, [com] avultados capitais empregados nas minas do Transvaal; não empregou, porém, nenhum nos trinta mil hectares que, por concessão, obteve em Angoche; para isso, com os seus associados, foi pedir dinheiro aos Suíços e aos Alemães, tornando a empresa que tomou conta da mesma concessão, de portuguesa que era inicialmente, em estruturalmente estrangeira (SALDANHA, 1930). Acrescento que também não acho que por uma empresa receber um empréstimo de um banco estrangeiro necessáriamente se torne "estruturalmente estrangeira" mas ...  
Quanto à fortuna de LG, e a confirmar-se se não tivesse sido obtida por herança familiar ou ter resultado de investimentos de rentabilidade astronómica, ela seria um tanto estranha pois LG queixava-se em 1917/18 de ter como funcionário público (que continuou sempre a ser) salário muito baixo mas ...
Sobre a mencionada companhia na Zambézia Bruno Marçal na sua dissertação diz que em 1935 LG "informou a tutela que desempenhava o cargo de director da Companhia Colonial de Angoche, uma das principais empresas de produção de sisal, criada em Moçambique no ano de 1921, constando ter sido um dos grandes dinamizadores da constituição da Associação de Produtores de Sisal da Colónia de Moçambique". Isto confirma a existência de alguma ligação de LG com essa empresa privada, mas se foi como investidor ou como quadro assalariado fica-se na dúvida.
Para além de todas as actividades profissionais no Estado e privadas e das intervenções sociais paralelas que vimos, do seu magnífico livro e dos artigos de revistas, LG criou uma família extensa como vimos no artigo anterior e por isso a sua personalidade e vida devem ter sido um tanto frenéticas. Penso assim que juntando aos elementos mais técnicos de que dispunhamos antes as novidades da dissertação de Bruno Marçal conseguimos ficar com boa idea de quem foi o Eng. João Alexandre Lopes Galvão (1874 - 1951), uma personalidade multifacetada e complexa (nessa época deviam ser poucos os engenheiros também licenciados em filosofia e pela Universidade de Coimbra por exemplo) e que teve um grande contributo para o desenvolvimento de Moçambique.

PS 1: Segundo Bruno Marçal, LG "acompanhou, uma vez mais, o seu camarada e director-geral das Colónias, Freire de Andrade (FA), na melindrosa missão diplomática que foi à Cidade do Cabo tentar negociar uma nova convenção ferroviária entre Moçambique e a União Sul-Africana". Nessa parte o texto da dissertação parece apontar para os anos 20 ou 30, mas vê-se no site do mne que FA ocupou esse posto em Lisboa entre 1911 e 1913 (antes de em 1914 se tornar ministro das Colónias) pelo que suponho que LG na altura estivesse ainda colocado em Moçambique e que se teria deslocado ao Cabo para aí se encontrar com FA para a reunião internacional e por isso esta teria acontecido em 1911 ou 1912.

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