Linha de defesa de LM no século XIX: gravuras da Porta da Linha e contexto (3/6)

A ideia da pequena povoação isolada em África e defendida por uma frágil linha de defesa face à África desconhecida de todos os perigos deve ter "calado fundo" nas mentes ocidentais da época e será por isso que chegaram até nós duas gravuras que registam esse aspecto de Lourenço Marques (LM) em meados da segunda metade do século XIX (19). 
Essa ideia teria uma parte de verdade e outra de imaginário. Em termos de ligação a outras povoações do tipo ocidental, nesses primeiros tempos a ligação previlegiada era com Durban (Porto Natal) que ficava a um ou dois dias de viagem por veleiro mas como as companhias de navegação exigiam subsídio do governo as suas passagens por LM não deviam ser muito frequentes. A ligação por caminho de ferro ao Transvaal apareceu mais tarde, pois a linha para Ressano Garcia só foi inaugurada um ano antes do desmantelamento da linha de defesa e a sua ligação a Pretória só foi aberta uns doze anos depois da Porta da Linha ter sido desactivada.
Mas a povoação estava ligada ao interior e na maior parte do tempo havia com as terras vizinhas bom relacionamento e assim pessoas, bens e víveres circulavam através da linha de defesa, o que é mostrado nas duas gravuras em que as portas estão abertas. 
Nos períodos de conflito local ou regional, a linha de defesa (ou a paliçada ainda pior que a antecedeu) não seria grande obstáculo a inimigos determinados e organisados pois na sua maior parte era um muro de 1.2 metros de altura. Os seus fortes estavam mal armados e parece-me que seria longa demais para poder ser defendida por uma pequena guarnição profissional que recorria à população nas situações críticas. Tudo isso se explicava pela falta de verba tanto que para a completar as autoridades pediram a contribuição dos comerciantes (maioritáriamente portugueses e luso/anglo indianos) e dos chefes africanos das chamadas Terras da Coroa que rodeavam LM.
Sabendo da sua vulnerabilidade, os portugueses dependiam estratégicamente de alianças com os povos locais de modo a que estes pelo menos não os antagonizassem e até que funcionassem como primeira barreira a forças invasoras estrangeiras. Problema é que tais alianças podiam ser voláteis pois os interesses mútuos eram díspares e por esse motivo ou por correlações de forças mais complexas de tempos em tempos a povoação era confrontada com situações bélicas. Nalgumas delas, a linha que aqui temos visto foi a posição de último recurso como Alexandre Lobato (AL) vivamente explicou no livro Xilunguíne, salvando-se a povoação pela bravura dos defensores, pela lealdade de algumas das populações locais e, acho eu, principalmente pela inépcia dos atacantes. 
Mas tendo tudo em consideração parece-me que o problema maior da povoação em meados da segunda metade do século XIX (19) eram as doenças causadas pelo pântano. Tanto é que a prioridade da expedição das Obras Públicas de 1877, missão civil mas com dirigentes militares, foi a drenagem do pântano atendendo à situação sanitária e às expectativas de desenvolvimento subsequentes. Foi então decidido demolir a linha em 1888 e construir-se o Quartel do Alto-Maé já nas terras altas mas por volta de 1894, tendo a situação militar da povoação agravado-se subtancialmente os portugueses decidiram por uma táctica ofensiva e conseguiram resolver o problema longe da cidade.
A primeira gravura que aqui mostramos vem do livro "The Key To South Africa: Delagoa Bay" de Montague George Jessett de 1899 e que está disponível em pdf no site da Universidade de Toronto. Mostra um caminho de entrada ou saída da povoação vendo-se duas colunas mais ao fundo que correspondem às da Porta da Linha. Esta gravura deve corresponder ao tempo da FOTO 1 do segundo artigo desta série pois não aparece a casa da parede branca que tinha passado a existir na FOTO 1 do primeiro artigo desta série e que seria por isso muito provávelmente posterior: 


GRAVURA 1
Legenda original: Estrada de saída de Delagoa Bay (ou Lourenço Marques)
O mesmo local, porta e construções dentro da povoação aparecem na gravura seguinte que foi publicada por Augusto de Castilho no livro "O Districto de Lourenco Marques, no presente e no futuro" de 1881/82:

GRAVURA 2 (completa e pormenor)
AL: ao fundo a linha de defesa com a(s) porta(s) da cidade 
no caminho da futura Av. Central (depois Arriaga, actual Marx).


Sobre esta imagem dizia AL também que "atrás da porta da linha vê-se um mastro com uma gávea, um cesto para observação das redondezas e que provávelmente deu o nome à rua da Gávea" que por aí passava e existe ainda em parte.


Anexo:
Sobre este tema com a devida vénia um texto de Antonio Sopa reproduzido do FB Cidade de Maputo. Constato que segue no que respeita a factos antigos muito do texto original de Alfredo Pereira de Lima (APL) que mostrei e comentei no artigo anterior.


A porta da cidade 
Nesta secção há uma parte credível e outra questionável tendo em conta o que vejo num esquema e nas fotos e daí os NBs que insiro, em parte repetindo o que tinha também comentado no texto de APL final do artigo anterior.
"O Governador-Geral de Moçambique determinou que houvesse apenas duas portas, mas o testemunho de velhos colonos portugueses, descreviam a existência de “uma alta muralha com quatro baluartes e quatro grandes portas de ferro”. Esta localizava-se (NB: à frente de) onde se encontra actualmente o Centro Cultural Brasil-Moçambique, na avenida Karl Marx, levando um estreito caminho de areia à antiga Estrada do Lidenburgo (ou Lidemburgo), que viria a ficar concluída em 1874. A confirmar esta localização existia ali, nas imediações, a travessa denominada de “Porta da Linha”. 
Este acesso à povoação tinha uma largura interior (inferior?) a um metro e trinta centímetros entre a base de duas colunas (NB: esta é a versão de APL, o desenho mostrava 1.5 metros e nas fotos parece bastante mais largo, talvez numa segunda instalação). Estas estavam caiadas de branco, tinham de altura cinco metros e vinte centímetros cada uma (NB: esta é a versão de APL, as colunas das fotos parece-me muito mais largas mas curiosamente a largura nestas gravuras parece menos, embora sempre superior a 20 cm). Na coluna da direita para quem saía da cidade, ostentava as armas reais portuguesas esculpidas encimando os algarismos 1867 (NB: parece-me o contrário olhando para o desenho, nas fotos nâo se consegue distinguir). Ali viria a ser inaugurada a “linha de defesa” em 31 de Outubro de 1867. 
Após o projecto de ampliação da cidade, em 1888, a linha começou a ser demolida. No caso particular da “Porta da Cidade” abriu-se o seu flanco, logo em 1883, de modo a permitir mais largo acesso às carretas “boers” que vinham do Transvaal (NB: abrir o flanco, termo usado por APL, parece-me mais abrir o muro ao lado das colunas mas mantê-las. Não há fotos dessa situação, pois nelas ou o muro estava completo até às colunas ou estas tinham já desaparecido. Parto no artigo do princípio que em 1883 as colunas foram demolidas)
Uma outra saída da “linha de defesa” localizava-se uns metros adiante, onde se encontra actualmente o Cine-Teatro Scala, mas sobre esta existem poucas referências.(NB: veremos ainda uma foto pouco conhecida, era uma passagem no muro, por isso não sei se teria mesmo tido portões)"


A linha de defesa (sem NBs do HoM)
"Actualmente, para quem vive ou deambula por Maputo, nada indica a existência da antiga “linha de defesa” da cidade, que a protegia dos reinos africanos do interior, já que não há qualquer vestígio da sua existência.
A primeira fortificação portuguesa tinha-se fundado em 1771, na margem esquerda do rio Espírito Santo, ao norte do estuário, nas terras do régulo Matola, numa apertada lingueta de areia, a cerca de 2 quilómetros da Ponta Vermelha, após a expulsão dos austríacos da baía de Lourenço Marques. A mesma viria a ficar concluída em 1787, tendo sido desde logo denominada “Nossa Senhora da Conceição”.
Em 1796, forças francesas superiores tomaram e saquearam este estabelecimento, retirando-se pouco depois por desarmonias com os régulos limítrofes. De novo foi mandado guarnecer o presidio, construindo-se uma pequena fortificação, tão frágil que pouca resistência poderia oferecer. Ainda se pensou transferir a Fortaleza para a margem sul do Espírito Santo, na Catembe, mas os custos elevados impediram o projecto. Melhoraram, porém as condições de defesa, ainda que em 1828 a fortaleza tivesse apenas um baluarte e uma cortina.
Não se sabe ao certo quando começou a haver em Lourenço Marques uma “Linha Exterior de Defesa”, feita com estacas de mangal espetadas na orla da povoação. Mas a proposta para a construção de uma obra definitiva, porque havia graves ameaças de invasão manobrada pelos ingleses do Natal é de 1851. O início das obras da “linha de defesa” iniciaram-se em Janeiro de 1860, a partir da contribuição activa dos habitantes de Lourenço Marques, achando-se pronta e a receber 8 “bocas de fogo” o baluarte do centro, denominado S. João, no final do mês seguinte. Porém, as obras ganharam maior dinamismo a partir de 1864, tendo ficado concluídas em 31 de Outubro de 1867.
Este “muro tosco abaluartado”, como o caracterizou o historiador Alexandre Lobato, nascia na praia do rio, e tinha o seu primeiro baluarte redondo, denominado 31 de Julho, na Praça dos Trabalhadores, onde se localiza o Monumento aos Mortos da Grande Guerra e a estação ferroviária. Embicava depois para leste, em diagonal, do começo da Guerra Popular até à esquina da Rua da Mesquita, tendo no meio um outro baluarte, denominado S. Pedro, e na actual 25 de Setembro, à esquina da rua da Mesquita, um novo baluarte, o de Santo António, onde se arvorava a bandeira. Da Karl Marx à Samora Machel, a linha de defesa seguia paralela às frontarias actuais, para se arredondar no Baluarte de S. João que ficava todo na Avenida da 25 de Setembro com a ponta sobre a esquina do Prédio Pott. Prosseguia para flectir, a seguir à Biblioteca Nacional de Moçambique, para os terrenos do antigo Almoxarifado, cujos barracões arderam há alguns anos atrás, e onde se localizam actualmente os edifícios da Autoridade Tributária de Moçambique e a Direcção Nacional de Águas, onde ficava o Baluarte 14, junto à Praia do Albasini. Era aí que a linha acabava, entre o Almoxarifado e a Capitania.
Esta fortificação, ainda não totalmente concluída, impediu que se concretizasse com êxito o ataque que o chefe Amule, da Zixaxa, realizou contra a povoação, logo em 1868. Numa das suas investidas, a gente do régulo chegou mesmo a forçar uma das portas da “linha de defesa”.
[Prestígio:Bimonthly bilingual magazine on Tourism & Business of Mozambique, Maputo, série II, nº. 79, Julho|Agosto de 2016, p. 18-26]

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