Tullio Cianetti de ministro fascista italiano a empresário em Lourenço Marques (1/2)

Na série iniciada com a chegada dos submarinos italianos a Lourenço Marques (LM), actual Maputo em 1933 falámos um pouco de "estórias" de famílias italianas residentes na cidade. Ora na já referida resenha de J. Pimentel Teixeira do livro "Os Italianos em Moçambique na Época Portuguesa / Gli italiani nel Mozambico portoghese (1830-1975)" de Augusto Massari aparece uma referência a um italiano chamado Tullio Cianetti que viveu largos anos em LM e que como veremos aqui foi actor com papel relativamente relevante na Grande História do século XX, embora por factos ocorridos antes da sua chegada às cálidas costas do Índico. Como Tullio Cianetti me era totalmente desconhecido fiz uma pesquisa rápida e na wikipedia há um texto em italiano muito completo e que logo ao início informa que ele nasceu em Assis em 1899 e faleceu em Maputo em 1976 pelo que não há confusão de personagens. 
Pontos principais são que Tullio Cianetti juntou-se ao Partido Nacional Fascista (PNF) em 1921 e que depois de em 1922 ter sido instaurado o governo em ditadura desse partido liderado por Mussolini fez carreira essencialmente no campo sindical do regime. Tornou-se aí uma das referências principais da sua ala esquerda, opondo-se não só ao comunismo como também ao capitalismo (aqui texto longuíssimo a ele dedicado com título "o fascista de esquerda"). 
Cianetti foi então subindo degraus nesse contexto sempre ligado ao campo sindical do corporativismo, conceito económico - social que era uma das pedras de base do fascismo do PNF e que procurava a harmonização entre o patronato e os trabalhadores (aqui de visita a uma fábrica metalomecânica SIEB). 
E damos agora um grande salto em frente na história de Itália e de Cianetti, o senhor que depois viveu em LM, para chegarmos a Fevereiro de 1943 e vê-lo a ser nomeado por Mussolini para Ministro das Corporações, o qual devia ser um dos postos mais elevados na hierarquia governamental. No entanto a Itália acumulava derrotas no campo militar no estrangeiro e a 9 de Julho de 1943 deu-se a invasão da Sicília pelas forças aliadas. Sentindo que os tempos estavam a mudar, a 25 de Julho de 1943 forças internas do PNF com apoio dos monárquicos decidiram demitir e encarcerar Mussolini e Cianetti foi um dos altos membros do partido que votou - embora a contragosto - a favor. Esse facto abriu caminho para a assinatura a 3 de Setembro de 1943 da rendição italiana aos aliados que depois de terem conquistado a Sicília invadiram o sul do continente italiano e precisamente nesse dia. 
Nesse momento as tropas alemãs substituiram as tropas italianas que formalmente se tinham rendido aos aliados (parte delas foram internadas pelos alemães, outra parte juntou-se a eles e outra parte juntou-se aos aliados), libertaram Mussolini da prisão e reinstalaram-no agora a presidir a nova e efémera República Social Italiana, RSI ou de Saló, controlada pelos alemães. Enquanto isso resistiam ao avanço militar aliado que tentava prosseguir vindo do sul, primeiro na direcção de Roma e, conquistada a capital, continuou depois para as províncias mais industrializadas do norte de Itália. 
Por essa altura as forças italianas ultra fascistas partidárias de Mussolini e pró-alemâs prenderam Cianetti que foi julgado em Verona, cidade do lado norte de Itália, em Janeiro de 1944. Foi acusado de traição por ter participado na demissão de Mussollini e condenado a pena de prisão pelos seus antigos correligionários (mais detalhes depois da FOTO 4) 
Os alemães foram gradualmente perdendo terreno mas conseguiram resistir ao avanço aliado na Itália durante mais de um ano e meio e só a 2 de Maio de 1945 todo o país transalpino foi libertado. Entretanto os aliados devem ter atingido Verona onde Cianetti estava preso pelos irredutíveis partidários de Mussolini e no entusiasmo gerado pela libertação da cidade saiu  (ou fugiu?) da prisão. Cianetti deve então ter achado que para evitar processos e condenações quando os aliados soubessem quem ele realmente tinha sido ou ser fuzilado se os comunistas italianos lhe pussessem a mão em cima, que o mais avisado era exiliar-se. Assim partiu para Portugal quando teria cerca de 46 anos de idade e daí para a província de Moçambique e não sei em que circunstâncias e condições legais. 
Do livro "João de Castro Osório: tragédia e política" por Ália Rosa C. Rodrigues encontra-se no google uma passagem que diz que Salazar concedeu asilo a destacados membros do fascismo italiano incluindo Tullio Cianetti mas do descrito na wikipedia fico sem saber se ele chegou a ser condenado "in absentia" em Itália depois da derrota final de Mussolini ou não (suponho também que a condenação pelo tribunal da RSI considerada estado fantoche pelos Aliados não contava judicialmente). Certo é que em Moçambique viveu sob o seu próprio nome e levou uma vida aparentemente tranquila até à independência da província em 1975. Nessa altura parodoxalmente (ou não) subiram ao poder em Moçambique as forças comunistas contra quem ele tinha lutado na Europa, mas como Cianetti tinha já uns 77 anos devia estar doente e/ou cansado demais e/ou ter falta de apoios para procurar novo exílio e a sua vida extinguiu-se aí no ano seguinte. 
Dum grande artigo que fala aprofundamente de Tullio Cianetti e dos sindicatos no fascismo italiano (secunda parte: Il sindacalismo fascista, la visione di Tullio Cianetti) uma sua foto oficial a 3/4 e assinada em Novembro de 1940:

FOTO 1 (Alinari)
Tullio Cianetti com cabelo ondulado
e face de perfil semelhante ao da FOTO 1

Recuando um pouco no tempo, a seguir uma foto de Cianetti sorridente nos seus tempos de glória durante uma visita à Alemanha Nazi em 1937, dois anos antes do início da grande guerra em foto de ullstein bild via Getty Images:

FOTO 2 (gettyimages)
Chefe da Frente Trabalhista Alemã, Robert Ley, de farda clara ao centro
e destacamento do PNF Italiano com lider trabalhista Tullio Cianetti à sua direita, na foto

E a seguir anos depois e num dos primeiros reversos da medalha, Cianetti a ser julgado pelos (antigos?) correlegionários em Verona em 1944 como adiantámos em cima: 

FOTO 3 (gettyimages)
Tullio Cianetti no tribunal expectante vestido à civil, sentado à direita 

O que aparece nesta foto dá (deu?) para argumento de drama ou ópera. Tullio Cianetti estava a ser julgado pelos seus antigos correligionários do PNF, agora "ainda mais" directamente controlados pelos nazis, que o acusaram de os ter traído meses antes ao votar a demissão de Mussolini a 25 Julho de 1943. Cianetti defendeu-se dizendo que tinha sido enganado quanto às reais intenções dessa votação e que imediatamente a seguir a ela, ao ver o logro em que tinha caído, enviara uma carta de arrependimento a Mussolini. Problema grave para ele é que essa a carta tinha desaparecido e por isso Cianetti não tinha prova do que dizia mas Mussolini salvou-o confirmando que a tinha recebido. Assim Cianetti safou-se do embroglio com 18 anos de prisão, enquanto os co-réus que como ele tinham sido apanhados do lado errado da barricada aquando da rendição italiana aos aliados, incluindo-se o genro dilecto de Mussolini o conde Ciano, foram condenados à morte sem apelo e rápidamente fusilados
A vantagem de eu não ser historiador é poder por hipóteses sem ter o trabalho de as tentar provar: a minha é que Cianetti foi salvo pela relação pessoal que tinha estabelecido com a Alemanha, a qual é mencionada nesses artigos e pode ser apreciada na FOTO 2 e aqui e aqui mostrando-se o Tullio Cianetti Hall inaugurado em 1938 em Wolfsburg, a cidade da VolkswagenMussolini na altura do julgamento de Verona era uma completa marionete dos Alemães, se estes tivessem algo contra Cianetti teriam instruído Mussolini para dizer que não tinha recebido a carta e Cianetti nunca teria ido para LM e este artigo no HoM não existiria ...
Tullio Cianetti publicou as memórias do cárcere de Verona onde esteve entre 1943 e 1944/45 mas isso foi antes de Moçambique e os sites internacionais não incluem nada relevante sobre o tempo posterior que passou em África para além de ter sido aí o local do falecimento. Sobre essa segunda fase da sua vida falaremos mais no próximo artigo.

Comentários

MCF disse…
Antes de vir para Portugal, TC ainda esteve refugiado num convento, sem que nenhum monge soubesse quem era, a não ser o superior, vivia como "irmão cozinheiro" e diga-se de passagem que cozinhava muitíssimo bem. A familia, mulher e as duas filhas (adotivas) julgavam-no morto. Veio para Portugal, onde conhecia uma pessoa, mas que não a via desde 1938. Quando chegou, disfarçado de frade, meteu-se num taxi e pediu para o levar a essa pessoa...e foi assim que chegou a Portugal, onde ficou cá uns tempos até ir para Moçambique.
Rogério Gens disse…
Obrigado pela informação, para mim é dos assuntos mais interessantes que encontrei ao fazer o blog. Como digo algures o livro sobre Italianos em Moçambique deve ter mais informação mas (ainda) não o li.
Bernardo81 disse…
Nunca o conheci, mas cozinho muito uma receita de spaghetti com chouriço picado, que o Tulio Cianneti ensinou a um Tio meu. Faz parte do meu imaginário e ouvi vários relatos de história vividas em Moçambique com o meu Pai e seus amigos, à data então jovens adultos.
Rogério Gens disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Rogério Gens disse…
Caro B81: o que diz vem em linha com o que disse antes o MCF e não me admiraria nada se o Tullio Cianeti (TC) tivesse tido um restaurante em LM .... Se achar que eses relatos têm interesse geral escrevenha-os aqui, suponho que mesmo os italianos desconhecem a maior parte da vida de TC em Moçambique.
MCF disse…
Penso que teve uma empresa e uns armazéns e até prestou serviços em empresas pertencentes a Champalimaud.
Rogério Gens disse…
MCF: em linha com o seu comentário na biografia de Jorge Jardim que foi empregado de Champalimaud em Mocambique é referido que possuía uma exploração de cal e agrícola em Salamanca e que devia ser a que seria gerida por Cianeti. Alguém (um filho ?) referiu também que o administrador desses negócios era o Eng. Fevereiro (José Luis?) que seria então o superior imediato de Cianeti que então não seria dono como aparece referido por outras fontes. Mas mesmo que isto seja verdade ficam coisas por esclarecer quanto à situação de Cianeti, por exemplo como foi parar a esse contexto.