Comércio marítimo em LM e migração de trabalhadores dos séc. 19 a 20 - informação de Emily, "William Shaw" (2/6)

No seu depoimento para o jornal Guardian de Lourenço Marques (LM) em 1907, Emily Fernandes da Piedade por estar dentro do assunto dado o marido Manuel Fernandes da Piedade (MFP) ser comerciante e estar envolvido em exportação e importação por via marítima menciona muitos navios, armadores e capitães. Ela avisou que escrevia de memória por isso alguns dados podiam não estar completamente certos mas mesmo tendo eles decorrido entre 1866 e 1878 por alguns que pude verificar parece que geralmente estavam correctos. 
Revelou então Emily: 
- o primeiro navio a ligar oficialmente Durban e LM foi em 1865 o Albert Edward, Principe de Gales, um antigo barco de pilotos capitaneado por Chapman e afretado por MFP. Nessa viagem MFP exportou "mealies" (ou seja maçarocas ou a parte de dentro delas, não sei bem), arroz e postes de mangal; Alguns nativos Ronga / Amatonga da zona de LM seguiram também viagem porque iam trabalhar como empregados domésticos para Durban;
- uma barca espanhola, Duc de Tuan, tinha sido abandonada em 1865 em LM (naufragada?) e a sua tripulação seguiu nesse navio Albert Edward para Durban;
-  como essa primeira viagem foi lucrativa o marido afretou depois o navio "William Shaw", capitaneado por Ledson para realizar frequentemente ligações entre LM e Durban. Emily diz que a exportação para Durban na primeira viagem deste navio foi de "mealies" tal como com o Albert Edward, mais "hides" que são peles de animais curtidas e marfim; 
- Emily veio de Durban para LM pela primeira vez no "William Shaw". Tiveram de esperar 10 dias para que houvesse boa maré e vento para sair da barra em Durban (não havia rebocador a vapor) e a viagem depois demorou 14 dias porque sendo um navio à vela dependiam das condições de vento. Com ventos favoráveis a viagem demorava de 4 a 6 dias. 
Um estudo de Patrick Harries a que já tinha feito referência aqui e se intitula "Work, Culture and Identity - "Migrant Labours in Mozambique and South Africa, c. 1860-1910" e se pode descarregar daqui tem uma imagem desse navio.
Escuna "William Shaw" que em 1886/87 foi fretada por Manuel Fernandes da Piedade

Segundo o priberam uma "escuna" é uma embarcação de dois mastros, velas latinas, verga só avante e sem mastaréu de joanete. A embarcação da imagem tem realmente esses dois mastros e daí pelo menos esse dado corresponde. 
No site molegenealogy há um artigo referindo a "William Shaw" e dizendo que tinha 39 toneladas, sido construída em 1856 para George Cato que era Mayor de Durban, sido baptizada com o nome dum prelado da igreja Wesleyana e sido o primeiro navio a ter Port Natal pintado na popa como porto de registo. Parte dessa informação está num relatório de 1867 relativo à presença da "William Shaw" no porto de Durban e era capitaneada por Ledson como Emily se recordava. Nessa altura podia até estar fretada por MFP o que todavia não é mencionado no relatório:
Relatório de "Shipping Intelligence" em Janeiro de 1867 
sobre a "sch." = escuna William Shaw

A "Wlliam Shaw" tinha chegado a 30.1.1867 a Durban vinda de LM após viagem de 6 dias e trazendo um carregamento de arroz, que posso complementar era um dos produtos exportados para o Natal para alimentar os trabalhadores na cultura da cana-do-açucar. 
Aparentemente esta publicação Shipping Intelligence ouvia os capitães dos navios para obter informação sobre os portos na região. Terá então Ledson contado que em LM o povo de Masaken (será Maxaquene) foi atacar os Matola e mataram duas mulheres. Presumo que essa terá sido sido a resposta ao ataque dos Matola a que Emily assistiu no início de 1867 e de que falámos aqui
E depois Ledson disse que o Chefe Matola e os seus secretários (indunas) iam ou iriam no brigue (navio de dois mastros, com vergas e mastaréus) português "Tigo" do Capitão Olivário (Oliveira?) como prisioneiros para a Ilha de Moçambique. 
O que Alfredo Pereira de Lima disse no seu livro "Edifícios Históricos" e referimos nesse artigo foi que o chefe Maxaquene tinha sido deportado para a Ilha como consequência desses acontecimentos mas pelos vistos o chefe Matola também foi, pelo menos temporáriamente. Evidentemente isto não tem importância nenhuma mas faz pensar nos elementos de Historia que andam perdidos à espera que alguém os ache e integre no que já se sabe. 
Continuando as referências de Emily aos navios:
- quando em 1867 Emily e o marido MFP viajaram para a Ilha de Moçambique usaram o navio português African(o) Oriental. Neste estudo aparece referido o brigue "Africano Oriental" como envolvido no tráfico de escravos de África para o Brasil em 1830, por isso tendo o casal viajado uns 37 anos depois talvez já não fosse o mesmo;
- o marido MFP afretou depois de 1866/67 o pequeno navio mouro Minha Missanga para o comércio entre a Ilha de Moçambique e Quelimane;
- depois do regresso do casal a LM em 1872, o navio Beethoven aportou em LM trazendo mineiros da Australia. O site molegenealogy tem aqui uma lista de onze passageiros que desembarcaram em Durban desse navio em Janeiro de 1871 e por isso devia fazer viagens frequentes pela região. Daí parece-me que provávelmente não teria sido o Beethoven a trazer directamentes esses mineiros da Austrália para África;
- sobre o Kafir fala-se noutro artigo
Continua no próximo artigo falando-se sobre comerciantes de Durban referidos por Emily.
Artigos no HoM sobre migração de trabalhadores nesta série.

Comentários