Comércio marítimo em LM e migração de trabalhadores dos séc. 19 a 20 - Benningfield e Hoffman (3/6)

Em artigo anterior sobre Emily Fernandes da Piedade tinhamos referido que o seu marido Manuel Fernandes da Piedade (MFP) em 1866 tinha primeiro fretado o navio "Albert Edward" e que tinha transportado trabalhadores para o Natal o que parecia ser uma novidade. 
De alguns anos depois dado que será de entre 1879 e no máximo 1887 há uma foto que tinhamos visto aqui da Campbell Collections tendo em primeiro plano a praia natural imediatamente a norte da actual Praça 25 de Junho de Maputo, antiga 7 de Março de Lourenço Marques (LM). Vê-se aí um grande grupo de pessoas que inicialmente pensei que estivessem a esperar a passagem pelo estuário para a Catembe pois ela era feita em embarcações tradicionais a partir desse local (seria actualmente aqui ao centro). 
Mas com os dados adicionais que veremos em baixo e atendendo à época poderiam ser migrantes que esperavam o embarque para Durban no Natal. Isso porque vê-se um grande número de homens, formaram-se sub-grupos no grupo o que talvez correspondesse a pessoas que viessem da mesma tribo, região ou aldeia e estão uns senhores europeus que fariam parte da organização. Nota-se ainda que este grupo parece isolado do resto das actividades do burgo e que por exemplo os funcionarios da fortaleza e da casa, tanto europeus como africanos, estão a olhar para eles, o que dá ideia de se estar a passar algo que não seria rotineiro na vida do burgo.
Grupo na praia, em vista para leste a partir da ponte da alfândega 
com a fortaleza (ainda com janelas do lado poente) ao fundo
Se o grande grupo for o que suponho, nessa altura seriam migrantes moçambicanos para o Natal que estavam à espera de embarque para (a barcaça que os levaria a)o navio que os transportaria até Durban. O local era perto da Alfândega antiga que ficava para a esquerda da ponte sobre o estuário de cima da qual a foto foi tirada, o que como veremos num próximo artigo pode ser um dado importante também. Do lado oposto em relação a essa hipótese eu esperaria que migrantes que iriam fazer uma longa viagem de barco e iriam estar fora da terra pelo menos uns 6 meses, senão anos ou mesmo para sempre, levassem algumas coisas pessoais e vestissem roupa melhor. Podemos compará-las com as dos indunas que estavam com John Dunn com boas roupas mas eles eram da classe superior e as pessoas que migravam eram os de mais baixo nível sócio-económico. Noutros artigos aprofundarei um pouco mais esse tema do recrutamento de pessoal mas esta foto pode servir para sua ilustração dado não conhecer outra do mesmo tipo.
Emily Fernandes da Piedade no seu depoimento ao jornal de LM em 1907, fala dos Benningfield que quando ela viveu em LM a partir de 1866 eram comerciantes de Durban com ligação a LM. Disse Emily que eles tinham um navio "Pelham" que ligava frequentemente LM e Durban (e foi o que depois serviu de farol perto da Inhaca como dissemos no artigo anterior e onde Emily quase tinha naufragado).
O apelido Beningfield (ou Benningfield), como passageiro e agente, e o navio Pelham aparecem referidos num relatório publicado pelo site molegenealogy do movimento no porto de Durban a 14 de Outubro de 1875: Pelham, brigantine, of Natal, 160 tons, Strachan, for Delagoa Bay. Cargo: general. PASSENGERS: Mr R BeningfieldMr Dubois, Mr Schonberg. 100 kafirsBeningfield and Son, agents. Ainda no site molengenealogy podem ver-se outras viagens de Beningfield para Delagoa Bay / LM e Inhambane por esses tempos pelo que essas deslocações deviam ser frequentes.
O estudo é muito completo tratando do tema dos negócios entre europeus e africanos e das relações sócio-políticas entre os diversos poderes na região na segunda metade do século XIX que é extremamente complexo pelo que valerá a pena lê-lo com atenção. Como não o fiz, simplesmente transmito aqui as minhas impressões e focando-me mais nos nomes. Reuben Beningfield (ou Benningfield, ver em myheritage) do Natal é aí mencionado e tendo em conta o relatório visto em cima e ligando-o aos 100 passageiros africanos ("kafirs") que viajaram com ele no Pelham em 1875 e que iriam de regresso a Moçambique, podemos entender melhor as suas actividades nessa época. Vê-se também no seguinte excerto desse estudo que Beningfield tinha boas relações tanto com os funcionários portugueses como com Umzila (Muzila), o rei de Gaza, pai de Gungunhana (e que nominalmente devia ser súbdito português mas ...).

Página 47 de pdf de Patrick Harries
Reuben Beningfield (1844 - 1912) era em 1877 
agente inglês de recrutamento de trabalhadores em Inhambane

No seu depoimento Emily fala também de Oswald Hoffman, comerciante que se estabeleceu em LM cerca de 1872 e de que se via a loja aqui na Rua Consiglieri Pedroso e aqui na rua Araújo emn 1908. Pode ver-se a seguir fotos da sua grande casa comercial em Inhambane onde basearia a maior parte de actividade: 
Esquina e um dos lados da Casa Hoffman de 1890 em Inhambane. O conjunto de edifícios prolonga-se para a esquerda da esquina na primeira foto.

Diz este texto que o edifício "foi construído em 1890. Os materiais de construção incluíam pedra da Ilha de Moçambique, ferro forjado de Itália e azulejos da França, serviu de hotel tendo a designação de Hotel Charleton. Foi reestruturado em 1935 e em 1974 foi destruído parcialmente por um incêndio" mas pode ver-se como era em 1929 nas fotos de Santos Rufin, mais ou menos do mesmo ângulo que a primeira foto de cima.
Casa Hoffman em Inhambane vista numa esquina cerca de 1929

Este edifício é património nacional de Moçambique. Para além dos parapeitos actuais nas varandas que vemos não são de origem (e que podiam ser os dois iguais) mas tal seria corrígível, a desvirtuação principal é no terraço onde uma construção substituiu o telhado original. Não sei quando isso foi feito mas pelo menos pode-se evitar que sejam visíveis do chão umas chapas de zinco muito pouco históricas e que parecem ter sido compradas digamos na "loja da esquina". 
Sobre Hoffman e Beningfield o estudo de Patrick Harries diz o seguinte (como não foram referidos por Emily não procurei seguir esses Dentzelmann e Lippert mas aparece ligeira referência à sua firma neste texto):
"... and Delagoa Bay hunters turned increasingly to small game for their livelihood, Natal merchants like S. F Beningfield and the Dutchman Dentzelman responded to the new demand for small-calibre guns; between 1872 and 1873 the number of firearms landed at Lourenço Marques more than quadrupled, as vessels carried migrant workers and firearms from Durban. Dentzelman joined another Hollander, Lippert, to form a company selling guns in Zululand for buckskins, and firearms at Kimberley for cash. The company carried a large part of the 7,228 guns, worth over £7000, shipped from Natal to Lourenço Marques in 1874. The following year, when guns were considered to be in "short supply" at Lourenco Marques, 5,336 were imported from Natal and perhaps as many as 6,000 from France and Portugal; there was also a sharp rise in the importation of gun powder. When the British prohibited the trade in guns between Natal and Zululand in June 1875, Lippert and Dentzelman expanded their operations in the Delagoa Bay area. By 1877 the company's agent at Lourenco Marques, Oswald Hoffman, employed over one hundred African "compradores", who travelled as far west as the Spelonken, selling, lending, and exchanging guns and ammunition for furs and skins, and combining these activities with labour recruitment. 
Hoffman's agents handed firearms, percussion caps, gun fittings, and ammunition to bands of Zulus (sometimes numbering over two thousand) arriving on the beaches south of the Bay. He boasted of having sold 800 guns in one day and played such a central role in the trade as to be known to the Zulu as the "Portuguese leader". British officials believed that 6,000-7,000 guns and about 20,000 barrels of gunpowder were imported annually through Lourenço Marques after 1875.
However, Portuguese officials were probably correct when they claimed that the British inflated the importance of the gun trade as a justification for their interference in the affairs of Lourenço Marques, a cornerstone of their schemes for a South African confederation. And they were certainly correct in their estimations that the gun trade at Lourenço Marques was far inferior to that at Kimberley.
The arms trade with the Zulu brought little gain to the people of the Delagoa Bay littoral, for the Zulu paid the Natal gun suppliers in cattle driven south to the British colony. But the gun trade did boost the strategic importance of Lourenco Marques and cement an alliance between the Portuguese and the Zulu that blocked Maputo and Swazi expansion in the region. Zulu support also gave some credence to Portugal's rights, under the Mac Mahon award of 1875, to the southern shores of the Bay. 
Voltando aos Beningfield / Benningfield aparece em cima uma menção a SF Beningfield que pode ver-se aqui se casou em 1864 em Durban e trabalhava na firma Beningfield & Son, por isso seria provávelmente filho de Reuben (1844 - 1912). Note-se que o título esq(uire) dado a SF Beningfield em inglês não significa ser advogado ou solicitador como nos Estados Unidos, no RU passou a ser usado por cortesia.
No livro South Africa and Southern Mozambique: Labour, Railways, and Trade ...   de Simon E. Katzenellenbogen que se pode descarregar aqui aparece outra menção a Ruben Benningfield  significando que ele continuava a recrutar trabalhadores de Moçambique para a colónia do Natal no início do século XX:
Pode adivinhar-se o conflito entre patrões do Transvaal (agrupados na Wenela)
e os de Durban no recrutamento de pessoal de Moçambique

Falamos mais das migações de trabalhadores nativos na região nesta série.

Comentários