Comércio marítimo em LM e migração de trabalhadores dos séc. 19 a 20 - moçambicanos na África do Sul (5/6)

Continuando o artigo anterior e finalizando a sérieos trabalhadores emigrantes que partiram de Moçambique para o Natal e que nunca teriam antes saído da sua aldeia e que em geral desconheciam o sistema capitalista deram mostras de muita adaptabilidade às novas condições. 
Uma foto de 1888 de Robert Harris mostrando a actividade principal para que foram inicialmente contratados no Natal.

FOTO 1
Trabalhadores, africanos e indianos, cortando cana de açucar numa plantação no Natal

Por exemplo os trabalhadores perceberam que podiam ir como "emigrantes contratados" para o Natal, o que lhes providenciava transporte organizado em grupo a preço reduzido e que chegados lá podiam partir já individualmente para trabalhos agrícolas no Cabo ou para as minas de Kimberley onde os salários eram mais elevados.
Como as condições de trabalho no Natal eram difíceis e as em Moçambique certamente piores, muitos deles acabaram por ficar nessas terras mais distantes juntando-se a outros patrícios levados no tempo da escravatura e que fazem agora parte da população sul-africana (ver aqui). Muito focado nos trabalhadores indianos pode ler-se artigo "história amarga" sobre a indústria e artigo sobre trabalho contratado (indenture work) que substituiu a escravatura para os indianos (referência às leis aplicadas)


FOTO 2
Mina De Beers de diamantes em Kimberley na África do Sul
com capatazes europeus e trabalhadores africanos em 1885

Quanto aos recrutadores / intermediários de mão de obra, estes textos mostram também as diversas variáveis da complexa equação. Por exemplo se um trabalhador emigrasse sob o controlo de recrutadores, por exemplo de John R. Dunn, havia uma estrutura montada que lhe oferecia condições minimas de alimentação e conforto e garantias de segurança na viagem e de retorno dos ganhos no final, mas óbviamente isso tinha um custo financeiro e talvez de falta de liberdade na escolha do patrão para quem iria trabalhar pois esse podia ser determinado à partida nalguns casos. 
Quem quisesse evitar esse sistema e optasse por emigrar por sua conta e risco, mesmo organizando-se em pequenos grupos ou juntando-se a outros viajantes ad-hoc, como desconheciam o caminho e não tinham estrutura de apoio ao longo dele, podiam perder-se, ser assaltados por ladrões ou por tribos locais com quem não tivessem combinado pagar tributo pela passagem, ser devorados por feras e se seguissem o trajecto pelas terras altas morrer de frio por não estarem habituados nem preparados para essas condições. 
Pode-se ver melhor as vantagens do serviço que John R. Dunn prestava aos migrantes na página 50 do pdf de Patrick Harries: "The Dunn scheme eradicated much of the danger of travelling through Zululand. The men made their way independently to the Hluhluwe River where they gathered at the first shelter on the route south. They then travelled in parties to the second station on the Umfolosi before continuing to Inabe, Ungoye, and Manyeti, after which they were lodged by the government labour agent at the Lower Tugela ferry. Because workers were provided at each shelter with water and a pint of maize they were no longer weighed down by supplies of food or trade goods. They slept at each shelter and complained of any harassment to the station head or to the local chief, all of whom were in Dunn's employ. On their arrival at the Lower Tugela ferry the workers were registered, a receipt was sent to Dunn, and the men, after choosing where they wished to work, were then sent to the local magistracy where they were registered a second time."
E continua o estudo afrimando que esta estrutura era apoiada pelas autoridades gentílicas: "The scheme was strongly supported by the chiefs, who saw it as the only means of protecting their wandering followers. The Maputo chief, Nozingile, sent a messenger to Pietermaritzburg and expressed his satisfaction at the arrangements which had been made and said that many of his people had taken advantage of them and the old practices of killing and robbing his men as they passed through Zululand had now stopped and, since their passages had been made safe, very large numbers of people had gone to Natal."
Olhando do lado oposto, um ponto relevante que aprendo destes textos é que havia organizações no Reino Unido, presumo que civís e religiosas, que tentavam evitar que estas migrações de trabalhadores fossem tráfego de escravos encapotado sobre novas formas depois da sua abolição formal já muito anterior (decretada por Portugal em 1836). Dado que era impossível os empregadores terem escravos (estes trabalhadores eram recrutados por períodos definidos de digamos 6 meses a 5 anos) o problema maior para essas organizações estaria na fonte. Por exemplo, se um chefe tradicional africano "obrigasse" toda a sua juventude a emigrar de forma para receber do recrutador uma choruda comissão, poderia isso ser disfarçado como se tratasse duma tradição "cultural" ou seria equivalente a ele exercer escravatura? E se não "obrigasse" mas fizesse grande pressão, qual era o limite? Pode-se imaginar daqui que se colocavam na prática situações complicadas de avaliar mesmo que nominalmente não houvesse escravos. 
Essas organizações inicialmente anti-esclavagistas também procuravam verificar se as condições de trabalho nos empregos eram mínimamente dignas. Isso quer dizer que para além da concorrência entre empregadores em períodos de falta de mão de obra (a cultura / indústria do açúcar tinha "booms and busts" cíclicos) havia algum escrutínio externo e era exercida pressão sobre os governos (no Natal havia um protector de emigrantes na administração - ver aqui leis aplicadas aos indianos), os empregadores e outros intervenientes sobre esses aspectos laborais. Mas como se costuma dizer e se viu em cima nos artigos sobre os migrantes indianos para os africanos as condições seriam provávelmente piores pois "o dinheiro tem muita força" ...
Relembro que Emily Fernandes da Piedade disse no seu depoimento que quando o seu marido pela primeira vez fretou um navio algures entre 1886 e 87, o "William Shaw", que alguns trabalhadores (tratava-se na altura empregados domésticos) Amatonga / Ronga aproveitaram esse transporte para o Natal. O estudo de Harries entra em grande detalhe sobre o aspecto da deslocação dos migrantes e menciona que houve navios, normalmente já muito usados, que quase se especializaram nesse tráfego, que se acelerou na costa austral do Índico com o surgimento da cultura da cana do açúcar no Natal e que alimentou depois as actividades mineiras no resto da África do Sul. Mas analisando de novo os factores envolvidos, óbviamente que os trabalhadores seguindo de navio chegavam mais rápido e seguros a Durban e mesmo que fossem transportados em más condições elas eram melhores do que as que teriam indo por terra. O custo da viagem no navio talvez fosse superior mas como no regresso às terras de origem os trabalhadores traziam dinheiro e ofertas, a segurança que o navio oferecia podia ser aí especialmente compensadora. 
Em termos de interesses portugueses, comparando com as deslocações dos migrantes por terra onde não havia fronteiras nem controlo, o seu transporte por navio deu também a Portugal a possibilidade de os fiscalizar e óbviamente taxar mas não era fácil como se vê em baixo de novo com o "William Shaw" em foco. Portugal tentou também obter outras vantagens dada a necessidade que os ingleses do Natal tinham da mão de obra moçambicana, o que foi afinal o precedente para a estratégia seguida quando o Transvaal passou a ser o grande cliente dos "magaíças" moçambicanos já no século XX (20). 
Como se pode ver na página 43 do pdf de Patrick Harries "the Portuguese were determined to profit from this unexpected but welcome upsurge in a traditional source of revenue, and they sought to control and tax the workers shipped from Delagoa Bay. In late 1871 Lisbon attempted to force the Natal government into a formal agreement on the export of labour by cracking down on coastal schooners refusing to pass through the customs post at Lourenço Marques; the Bibsy was stopped with fifty-two workers on board, the Roe carrying about thirty men was threatened with seizure, and the William Shaw, which on a previous voyage had disembarked fifty workers on the beach outside Lourenço Marques and had picked up workers on nearby Sheffin (Xefina) Island, was confiscated when it landed workers up the Maputo River. In response to these actions, and under pressure from the Natal planters, Britain laid claim to the southern shores of Delagoa Bay and two neighboring islands. In 1872 the border dispute was submitted for adjudication to the French president and negotiations over the shipment of labour were opened between Britain and Portugal. Meanwhile, the flow of Amatonga workers to Natal increased as steamships like the 160-ton Pelham and the 275-ton Kate Tatham started to ship workers out of Delagoa Bay. Well over 1,000 men were transported to Natal between October 1871 and September 1873 when, suddenly, the governor of Lourenço Marques was fired for allowing the illegal emigration of workers. The export of labour was then strictly prohibited until a settlement could be reached with the British over the territorial dispute. In the meantime the position of the Natal government on the importation of labour overland had undergone a considerable change". Resumindo muito, diz-se acima que cerca de 1871 a escuna "William Shaw" foi confiscada por Portugal porque evitou passar os trabalhadores que transportava pela Alfândega. E como se vê foi na sequência da disputa resultante que a Inglaterra reivindicou as terras do Maputo, a sul de LM, mas o árbitro francês Marechal Mac Mahon decidiu a favor de Portugal e por isso essas terras pertencem agora a Moçambique e não à Swazilância / eSwatini ou à África do Sul.
A foto seguinte é dum navio Kate Tatham que deve ser o referido em cima que entre 1871 e 1873 transportou trabalhadores migrantes na África Austral. Se for mesmo este, ele em 1888 estava para os lados da Australia e Nova Zelândia e aí se afundou (White Bluff em Auckland) mas pode ter sido depois recuperado pois aparece aqui de novo afundado em 1907.


FOTO 3
Kate Tatham, navio a vapor com velas, presumo que o usado nas migrações

Isto é então um sumário de alguns dos temas tratados no estudo de Patrick Harries e que pudemos completar com alguma informação anterior. Pelo aqui foi brevemente exposto podemos fazer ideia da complexidade da situação e dos muitos factores que estiveram em jogo. 

NB 1: 
Este mapa feito no último quartel do século XIX (19) por um missionário metodista suíço (H-A Junod ou Paul Berthoud) e descarregado daqui) mostra a colocação da tribo Thonga que agora parece chamar-se Tsonga até para se poder separar dos Tongas de Inhambane que parece se chamam agora Guitonga (bitonga). Não sei se esses faziam parte dos Thonga / Tsonga ou não pois segundo este artigo muito completo (e confuso) eram aparentados mas neste mapa aparecem de lado esses Guitonga e os Tchopis (Chopes de Zavala?) mais abaixo.
As cores da legenda do canto inferior direito indicam as divisões da tribo nos diferentes clãs (ou se quisermos elevar o nível relativo, da nação tsonga em diferente tribos):
Diferentes grupos de Thongas 
no último quartel do século XIX (19)

Segundo o que leio as diferenças entre os grupos indicados no mapa são principalmente de linhagem familiar, há algumas diferenças entre as suas línguas mas elas são mutualmente perceptíveis.
Quanto às migrações para a África do Sul na segunda metade do século XIX presumo que todos estes grupos foram envolvidos. Uma população que era muito referida nos relatos antigos era dos Amatongas que residiam entre a Zululândia (território na costa acima do Natal Inglês) - ver aqui no artigo sobre John Dunn - que lhes ficava a sul e Lourenço Marques a norte e se vê neste mapa corresponde à maioria do grupo ronga no mapa. Esse grupo foi dividido entre os dois países com o estabelecimento da fronteira entre a Inglaterra e Portugal em 1891 (linha "vermelha") no paralelo da confluência entre os rios Usuthu e Pongole para formar o Rio Great Usuthu ou Maputo e que aparece na linha tracejada cortando então "a meio" os Mapoute = Maputo, um dos clâs do grupo Ronga dos Thonga / Tsonga. Sobre esses trabalhos iniciados em 1896/97 e completados de 1907 a 1910 falámos nesta série de artigos.

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