Moodie e primeira iniciativa para a linha de LM - concessão do lado português (1/6)


G. P. Moodie (foto de  geni). Westbrooke foi onde faleceu, no Cabo

No livro "A Engenharia Portuguesa na Moderna Obra de Colonização" do Eng. Lopes Galvão publicado em 1940 das páginas de 71 e 126 em diante há alguma informação sobre a primeira tentativa de estabelecimento duma linha férrea do porto de Lourenço Marques (LM), actual Maputo para a Zuid-Afrikaansche Republiek (ZAR dos boers, estado do Transvaal que foi integrado na União Sul Africana em 1910) no interior do continente. Sobre o tema encontra-se muito boa informação numa American and Britsh Claims Arbitration sobre o assunto e na publicação "Especulação, Tecnodiplomacia e os caminhos-de-ferro coloniais entre 1857 e 1881" de Hugo Silveira Pereira. Mais acessível na net há algumas referências mas incompletas e parece-me que em parte inexactas.
Faço aqui um resumo do fundamental pois o caso é bastante complexo. Nesta primeira parte tento olhar mais para a iniciativa da linha do lado português, entre LM e a fronteira, mas essa a divisão é difícil de se fazer pelas razões que se verão.
Portugal e a ZAR, de 1872 a 1877 presidida por T.F. Burgers, assinaram em 11.12.1875 um tratado de amizade e comércio (e fronteiras) que previa essa linha férrea. Os dois países concessionariam a construção e operação da linha nos territórios respectivos e discutiram também como elas seriam subsidiadas.
Pouco antes, em Novembro de 1874 George Pigot Moodie, o senhor da FOTO 1, tinha obtido a concessão portuguesa entre LM e ou os Montes Libombos ou Mussuati (Umzuati, depois Suazilândia e agora Essuatini, sempre com o SUA de base) na fronteira a oeste do sul de Moçambique.  Presumo que os "ou" significam que o traçado não estava definido e por isso que haveria duas alternativas, a primeira mais a sul e a segunda mais a norte. Esse empreendimento não foi avante por falta de capital de Moodie e nova concessão foi outorgada ao mesmo em Abril de 1876 pela qual ele se comprometia a dentro de 6 meses formar uma companhia, a começar os trabalhos dentro de 12 meses e a completá-los dentro de 3 anos. 
Em Janeiro de 1876, a ZAR tinha tentado encontrar financiamento na Holanda para a sua parte da linha mas só conseguiu um terço do pretendido. Utilisou-o para um contrato assinado em Fevereiro de 1876  com a  “Societé Anonyme des Ateliers de la Dyle” para compra de material ferroviário fixo e rolante. Mostro a seguir uma foto dessa fábrica metalúrgica belga (que em 1879 deu origem à Dyle e Bacalancatálogo aqui) 

FOTO 2 (dum artigo sobre empresas belgas no Brazil)
Ateliers de la Dyle em Lovaina, Louvain, Leuven
(Flandres, Bélgica) 

Em Junho de 1876 a ZAR comprou a concessão de Moodie para a linha portuguesa e não sei se Portugal teve alguma intervenção nesse processo que à priori parecia estranho. Essa concessão foi transferida em Julho de 1876 para o activo duma nova companhia, a Lebombo Railway Company (LRC) registada em Septembro de 1876, de que o maior acionista era a ZAR e os directores Moodie e Peter John Marais.
No final de 1876 chegaram a LM navios presumo que com o material ferroviário adquirido pela ZAR / LRC aos "Ateliers de la Dyle” da FOTO 2. Mas a ZAR, accionista maior da LRC era na altura um estado pobre e a LRC não tinha fundos para pagar as despesas do transporte marítimo e do desembarque e da desalfândegagem desse material em LM e Moodie, nessa altura "simples" administrador da companhia, teve de pedir dinheiro emprestado. Não sei se porque Moodie usou metade desse empréstimo para primeiro pagar o seu salário e despesas e/ou se como Hugo Silveira escreve porque entretanto tinha sido penhorado, esse material ferroviário ficou retido na alfândega em LM a partir do final de 1876, alguns viajantes desse tempo escreveram sobre tê-lo visto e acabou por ser enferrujar e ser desperdiçado. Segundo o livro "The Imperial Factor" vieram também 40 técnicos para montar a linha mas não chegaram a trabalhar, para mais o desenho do projecto estava ainda em fase prematura.
O financiador da LRC nessa altura foi "por acaso" a mãe de Moodie que recebeu comissão e juro altíssimo e por essas e por outras na American and Britsh Claims Arbitration e no livro The Imperial factor qualificam-no de desonesto (a arbitragem decidiu que ele não tinha direito ao que reclamava). Portugal já o devia suspeitar pois só lhe pagaria o subsídio pela construção da linha quando ela tive sido completada. Moodie também não deve ter ficado preocupado com tal cláusula pois a sua intenção desde o início seria de vender essa concessão "no papel" a quem realmente tivesse capacidade de levar o projecto para a frente. 
Pouco antes dessa situação, em Novembro de 1876 o governo da ZAR tinha assinado contracto provisório com a Cockerill Company para que esta adquirisse a LRC, na altura a concessionária da linha em território português dirigida por Moodie. Era-lhe também outorgada a concessão para o lado sul-africano da fronteira pelo que uma única companhia construiria e exploraria a linha de LM até um local na ZAR chamado Klip Stapel, para oeste da já referida Suazilândia que na altura era território da ZAR.  

FOTO 3 
Alto forno e monta cargas da Societé Cockerill
 de Seraing, Bélgica
A distância de LM até Klip Stapel seria de cerca de 150 milhas e daí até Pretória, capital da ZAR na região do Rand seria mais umas 130 milhas, mas esta segunda secção não estava incluida no contrato com a Cockerill. 
As perspectivas do negócio da linha eram pouco atractivas, pois os custos anunciados deviam estar subavaliados e as receitas exageradas e a ZAR para atrair a Cockerill a ser concessionária oferecer-lhe-ia grandes extensões de terrenos. direitos de minas e subsídios. Esse contrato foi confirmado em Março de 1877 mas em Abril de 1877 a ZAR foi anexada pela Inglaterra (sem resistência) pelo que na práctica ficou sem efeito.
Como administradora do Transvaal a Inglaterra, reconhecendo as suas vantagens, manteve algum interesse na ligação ferroviária de Pretória a LM e em 1879 assinou com Portugal um acordo para a sua construção. Todavia forças políticas portuguesas compreenderam que a participação britânica se limitaria a um empréstimo bancário ao concessionário que se bem entendo seria garantido por Portugal e nessas condições esse acordo não foi ratificado pelas Cortes lusitanas, apesar duma segunda tentativa ainda feita em 1881. 
Esse problema foi naturalmente ultrapassado porque a revolta dos boer levou à primeira guerra anglo-boer e no final desta em 1881 a ZAR pode readquirir (gradual mas aceleradamente) a autonomia perdida em 1877. Portugal voltou assim a lidar com a ZAR e foi ratificado o tratado assinado com ela em 1875. Nessa altura o banco português BNU ofereceu-se para comprar a concessão da linha do lado português inicialmente feita a Moodie e que suponho eu estaria ainda nas mãos da Lebombo Railway Company. Não sei o que aconteceu mas em 1883 essa concessão teria de estar sem efeito pois para o mesmo eixo ferroviário de LM para Pretória o Estado português outorgou uma nova até à fronteira dos Montes Libombos, com exclusividade por 99 anos e numa faixa com 50 km de largura de cada lado ao americano Mac Murdo (ou McMurdo, uso essas variantes indiferentemente). Da linha que Mac Murdo construiu e que é a base da actual entre Pretória e Maputo falámos numa longa série de artigos
É crucial recordar-se que em 1886 foram feitas grandes descobertas de ouro no Rand mas disperso em veios de quartzo em profundidade. A linha de LM tornou-se para a ZAR / Transvaal, que era anteriormente um território de economia rural e por isso potencial exportador de produtos agrícolas, uma necessidade absoluta dado ter de importar por mar muita maquinaria para a exploração das suas minas e o projecto passou a ser financeiramente atraente. Assim as hesitações e faltas de capital anteriores foram ultrapassadas, mas outras dificuldades na concretização da linha persistiram.                        NB: a acima referida arbitragem foi relativa a cidadãos ou firmas americanas que tivessem sido prejudicados pela anexação da ZAR pelo RU. Sendo Moodie natural do Cabo e de pai militar inglês não sei como se terá apresentado como norte-americano para esse efeito, mas vi também noutro documento que ele o ou a LRC tinham essa nacionalidade.
Continua no próximo artigo.
Parte relevante no livro "The Imperial Factor"
Detalhes sobre a primeira iniciativa e seu fracasso

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