Pe. Sacramento, Naylor, Rufino, jornal e lotaria: objectivos e financiamento dos álbuns de SR (8/10)
FIGURA 1 |
Álbuns de Santos Rufino (bestnet) e nota de escudo de banco de Moçambique de 1921 (olx) |
Falámos nos artigos anteriores desta série essenciamente dos primeiros anos da lotaria de Lourenço Marques (LM), actual Maputo propriedade do padre Sacramento e do seu sócio australiano Rufus Naylor. Mencionámos também Santos Rufino (SR) pela sua ligação ao jornal "O Africano" e aqui vamos começar por ver as relações entre ele e o padre, iniciadas em 1914 no âmbito desse jornal e que terão depois passado a ser mais pessoais e empresariais.
Essas relações são bem evidenciadas por SR nos seus álbuns fotográficos de Moçambique através duma composição gráfica de fotos e texto que ocupa a página 3 do álbum 1 e que é dedicada aos seus autores e apoiantes e que mostro como FIGURA 2 e que será mais completamente analizada no artigo 9 desta série.
FIGURA 2: Página de agradecimentos de Santos Rufino nos álbuns
Figura e legendas no álbum 1 de LM Panoramas da Cidade |
Escreve SR na legenda da FIGURA 2 sobre o padre Sacramento: "o maior amigo que esta iniciativa (a publicação dos álbuns) encontrou". SR poderia referir-se aí ao apoio que o padre lhe tivesse dado em momentos de dúvida sobre o interesse ou viabilidade do ambicioso projecto gráfico, e/ou à colaboração que o padre tivesse dado no conteúdo e/ou a conversas mais gerais que tivessem sido úteis a SR para a orientação do trabalho que tinha em vista. No entanto o livro "Recordando o Passado" que nos foi referido por Paulo Azevedo, o autor da obra Photographos Pioneiros de Moçambique, numa curta passagem sobre o padre diz que ele "contribuiu com algumas centenas de contos" para a publicação dos álbuns, facto que também se enquadra no notório agradecimento de SR e no que se sabe sobre o padre pois este para além de ser amigo de longa data de SR, era rico, presumo que sem esposa oficial (a quem teria de explicar o que fazia) e tinha o precedente de ser mecenas noutras causas.
Se a contribuição financeira do padre foi um empréstimo ou uma dádiva ou combinação não fica esclarecido no livro "Recordando o Passado" mas de qualquer forma presumo que teria sido essencial para que os álbuns tivessem sido lançados por vários motivos:
- custos de preparação e produção elevados dos álbuns:
a. salários de pessoal. Por exemplo na figura SR faz referência a fotógrafos amadores mas tal não quererá dizer que eles não tivessem sido pagos ou que pelo menos não recebessem subsídios de deslocação;
b. viagens e estadias por todo o Moçambique, visitando inclusivamente muitos locais remotos fora das cidades;
c. impressão em tipografia na Alemanha tendo particularmente em conta o número de páginas e de fotografias, a qualidade da reprodução e a luxuosa edição em papel;
- procura restrita dos álbuns:
Apesar dos álbuns serem escritos em português, francês e inglês, isto é para os mercados nacional e internacional, presumo que as suas vendas e incluindo as dos produtos deles derivados (postais de correio e similares) e as receitas das publicidades neles inseridas, fossem limitadas.
Assim, sem factores e/ou constribuições exteriores, a publicação dos álbuns não seria lucrativa ou pelo menos teria sido um investimento arriscado para Santos Rufino (SR).
Pensemos agora na relação entre SR, os álbuns e o Estado. Os álbuns na altura em que foram publicados não tinham (e parece-me que não terão tido depois) equivalente em termos de profundidade de registo e divulgação do que era o "Moçambique de sucesso" e nesse aspecto terão também sido únicos para o "império português d'aquém e d'além mar". Eles óbviamente reflectem os pontos de vista políticos e sociais convencionais da época e exarcerbam os pontos positivos e escondem os negativos da "civilização" e da administração portuguesa do território e por isso podiam ser usados pelo Estado como um instrumento de propaganda nacional.
De facto e segundo Silvio Correa os álbuns "fizeram parte da propaganda da África Oriental Portuguesa na Exposição Internacional e Colonial de Paris em 1931. Exemplares dos Álbuns também foram distribuídos a consulados portugueses e a outros estabelecimentos importantes por iniciativa do então Ministro dos Negócios Estrangeiros, Henrique Trindade Coelho".
Esta ligação é também evidenciada por haver fotos comuns nos álbuns e pelo menos numa das brochuras da participação de Portugal (Moçambique) nessa exposição:
Tendo então em conta a excepcionalidade dos álbuns como projecto editorial e o aparecerem ligados à propaganda oficial portuguesa, apesar de à priori serem de iniciativa privada, a questão que me coloco é o que teria levado SR a publicá-los, o que terá sido tarefa árdua e que lhe terá ocupado talvez anos de vida.
De facto e segundo Silvio Correa os álbuns "fizeram parte da propaganda da África Oriental Portuguesa na Exposição Internacional e Colonial de Paris em 1931. Exemplares dos Álbuns também foram distribuídos a consulados portugueses e a outros estabelecimentos importantes por iniciativa do então Ministro dos Negócios Estrangeiros, Henrique Trindade Coelho".
Esta ligação é também evidenciada por haver fotos comuns nos álbuns e pelo menos numa das brochuras da participação de Portugal (Moçambique) nessa exposição:
Brochura sobre o porto de LM com fotos de Pó comuns aos álbuns |
Tendo então em conta a excepcionalidade dos álbuns como projecto editorial e o aparecerem ligados à propaganda oficial portuguesa, apesar de à priori serem de iniciativa privada, a questão que me coloco é o que teria levado SR a publicá-los, o que terá sido tarefa árdua e que lhe terá ocupado talvez anos de vida.
Coloco assim algumas hipóteses sobre o interesse de SR na publicação:
a. Hipóteses mais intangiveis terão sido a intenção de SR de conhecer melhor e de divulgar a terra onde vivia e de deixar o seu nome para a história numa obra monumental;
b. Hipótese mais material teria sido a expectativa de ter lucro financeiro o que dissemos antes não pereceria muito provável. Para mais vemos que logo na publicação aparecia o agradecimento de SR ao padre, cujo apoio tudo indicava que fosse financeiro como o livro "Recordando o Passado" confirma, e isso mostra que logo de início SR não confiava na viabilidade do projecto numa base puramente comercial;
c. Outra hipótese é os albuns terem sido encomendados e pagos pelo Estado português completando a contribuÍção financeira do padre e eliminando ou reduzindo o risco financeiro de SR. Acho pouco provável esta hipótese dada a tradicional falta de recursos financeiros do Estado português;
d. os álbuns resultarem duma transação económica SR e o Estado sem que este os tivesse financiado directamente (de facto não sabemos se o padre tinha coberto o custo completo dos álbuns e se teria sido através de empréstimo ou de doação). Digo isto a pensar que a relação entre SR e o Estado não era a de um comerciante normal pois como referimos antes em Pioneiros da Imprensa era dito que "o sacerdote (padre Sacramento, tinha sido) .... substituído na loteria por .. José dos Santos Rufino". SR ter-se-á tornado então concessionário da lotaria durante os anos 20, talvez quando o padre resolveu regressar a Portugal cerca de 1922.
Como vimos o negócio da lotaria terá sido lucrativo para o padre e tudo leva a crer que o tivesse continuado a ser para SR, como indicará a construção em 1935 da sua Vila Algarve que foi ampliada depois. Por isso é de crer que SR fizesse todos os possíveis para ter boas relações com o Estado de quem dependia mais do que certamente qualquer outro empresário em Moçambique.
Pode mesmo ter havido um aspecto mais formal relacionando os álbuns e o Estado pois quando este outorga uma concessão de exploração normalmente exige em troco algumas contrapartidas de interesse público (ver PS 1 ao fundo).
Sob esta hipótese d. pergunto-me então:
- teria a publicação dos álbuns sido um dos requesitos exigidos pelo Estado a SR de modo a que a licença fosse transferida directemente do padre para ele, em vez de ser revogada por mudança de proprietário e ser lançado um novo concurso? Como SR se movia no meio da comunicação e tipografia ele estaria em boas condições para oferecer esta contrapartida ao Estado;
- tentaria SR com a publicação dos álbuns cerca de 1929 valorizar-se como parceiro eficaz e de confiança do Estado e assim ou evitar novo concurso, caso o prazo da licença que ele já detinha estivesse a caducar por essa altura mas que pudesse ser prorrogado pelo Estado, ou para ganhar vantagem comparativa (aos olhos do Estado) se um novo concurso estivesse para ser lançado?
Isto são questões que me parecem importantes para as quais não tenho respostas e também não as vejo nos estudos disponíveis na net que falam de SR. A maioria dos autores olha para SR no contexto da imprensa moçambicana dos primeiros anos e não aborda os álbuns, o estudo da investigadora portuguesa Inês Vieira Gomes aborda SR e os álbuns mas não fala da lotaria (ver minha crítica sobre um aspecto particular no artigo 9 desta série).
Parece-me então que os investigadores que quisessem explicar o contexto de produção dos álbuns de SR teriam campo fértil para explorar, começando pela leitura atenta dos documentos escritos da época.
Num próximo artigo levanto o que poderá ser mais uma questão acerca da relação entre SR, a sua firma e a lotaria.
PS 1: nas concessões ou Parcerias Público Privadas (PPP) os Estados concedem licenças em exclusivo a privados, nalguns casos para o substituir em funções que o Estado desempenhava antes e noutros para criar serviços que este achasse necessários mas que não se sentisse capaz de fazer directa e eficazmente.
Em tais contratos o interesse tem de ser mútuo, o privado pretenderá receber do Estado certas garantias para além da exclusividade a prazo da actividade (facilidades de instalação, subsídios, garantia mínima de rendimento, etc) e o Estado exigirá contrapartidas ao privado (gama, cobertura e qualidade de serviços, controle dos preços ao público, pagamento da licença mais participação no lucro fixa ou variável, etc). No caso das lotarias, que têm um contexto social e religioso um tanto particular, é comum o Estado para além dessas contrapartidas mais comuns exigir que o concessionário financie directamente obras sociais, normalmente bem visíveis.
Ora se o padre Sacramento ficou substancialmente rico em poucos anos e pelos vistos Santos Rufino também com a exploração da lotaria em Moçambique, quer dizer que o Estado definiu mal inicialmente os termos da concessão e que se teve oportunidade de o corrigir depois voltou aí a falhar.
Os concessionários deveriam ser ressarcidos do que investiram e do risco que incorreram com o investimento e não mais do que isso. Ora no caso da lotaria o investimento seriam umas máquinas de extração e para a rede de distribuição da lotaria o investimento seria também menor (era mais em pessoas) e o seu crescimento podia ser gradual. O risco do investimento também não parecia ser muito alto dado o jogo de apostas ser um conceito já bastante experimentado e com sucesso. Por isso se o investimento e o seu risco no caso da lotaria não parecia muito grande (comparemos por exemplo com os da construção duma linha de caminho de ferro que para mais tem grandes custos de exploração) o seu rendimento também não devia ser muito alto. E se o investimento necessário não era grande o prazo da concessão também não o devia ser dando oportunidade ao Estado de intervir periódicamente no esquema. Tendo estes princípios em conta e que seriam já bem conhecidos na época, seria interessante saber-se por exemplo o que a imprensa de LM da altura terá dito sobre as fortunas do padre e de Santos Rufino, mas isso explicará também porque os dois estavam também envolvidos nesse sector.
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