Pe. Sacramento, Naylor, Rufino, jornal e lotaria: SR, o Estado e artigo "A Souvenir" (9/10)

 FIGURA 1

Figura no álbum de Santos Rufino, LM Panoramas da Cidade

Vou aqui comentar uma parte do artigo “A SOUVENIR OF LOURENÇO MARQUES”: álbuns fotográficos de C. S. Fowler, J. & M. Lazarus e José dos Santos Rufino (1887-1929)" escrito pela académica Inês Vieira Gomes porque pode servir de fio condutor à continuação da análise do que se sabe e do que estimei pudesse ter acontecido nos artigos anteriores.
Escreve Inês a certa parte do artigo e referindo-se à FIGURA 1 da página 3 do primeiro dos dez álbuns fotográficos de Moçambique publicados por Santos Rufino (SR) com uma composição gráfica de fotos e texto"Esta página é de suma importância, pois para além de identificar, juntamente com a imagem, os intervenientes deste projeto, materializa, também em parte, a orgânica do Estado Colonial assente nos diferentes poderes aqui representados, um elemento do Exército e um elemento do Clero"
Isto relacionar-se-à então com o facto de à esquerda do retrato central de Santos Rufino (o "iniciador, coordenador e editor dos álbuns") surgir o Tenente Mário Costa, o autor dos textos e à direita surgir o padre Sacramento, "o maior amigo que esta iniciativa (a publicação dos álbuns) encontrou". 
Noto que esta FIGURA 1 foi uma criação de SR para os álbuns, não foi algo que já existisse e que ele tenha aí reproduzido ou adaptado. Como já se disse antes, a intenção expressa (e "prima facie") de SR foi fazer uma dedicatória aos autores e apoiantes do projecto editorial. Mas se para Inês a figura tem "suma importância" no que se refere à "orgânica do Estado" isso significaria que SR teria tido também essa intenção mas encapotadamente e discordo de que isso tenha acontecido, pelo menos de forma vincada, pois deve-se considerar o seguinte:
a. os estados ocidentais pós revolução francesa são constituídos por três poderes, o executivo (Governo), o legislativo (Parlamento) e o judicial (Tribunais). Suponho que Inês ao referir-se ao exército e ao Clero (igreja) queira sublinhar o carácter da Segunda República Portuguesa, instaurada em 1926 por isso em vigor ao tempo dos álbuns. Até 1933 o novo regime foi uma ditadura militar com o apoio da igreja e em que o poder legislativo e judicial estavam menorizados. Mas o Governo era uma peça importante (foi a partir dele que Salazar chegou depois à liderança do regime e do Estado) que faltaria na figura para que ela materializasse completamente o Estado dessa altura. 
Talvez seja por isso que Inês coloca o "em parte" no seu texto mas neste caso, se fosse intenção de SR na figura expressar em relação ao Estado que compreendia e respeitava a sua estrutura e em relação aos seus leitores que os álbuns aderiam aos interesses do Estado, quer dizer que eram para-oficiais, SR não iria deixar esse elemento fundamental de fora da figura. 
Se interpretarmos o que Inês escreve mais como tendo sido intenção de SR "lisonjear" o Estado com a FIGURA 1, mais razão haveria para SR para não deixar aí o Governo de fora. De facto, concordaria com Inês se ela quizesse dizer que SR nos álbuns queria "lisonjear" o Estado, só que tal não é feito com essa figura mas aparece separadamente no álbum 2, por exemplo em relação ao Governo através da colocação de foto do Governador-Geral em retrato de página inteira e de medalhões com fotos e nomes de muitos dos chefes de serviço (por exemplo)  junto às fotos dos seus edifícios sede.  
b. apesar do tenente e do padre estarem vestidos respectivamente com o uniforme militar e a sotaina religiosa (o que seria convencional na altura pois não se vestia "à paisana" em situações formais), eles estariam lá colocados por SR representando-se a si próprios, não às instituições a que pertenciam. A meu ver teria sido por mero acaso que SR ao reunir as pessoas que iriam ser importantes para o seu importante projecto editorial e que depois tivesse querido homenagear nessa página que elas fossem um militar e um religioso. 
Daí se era um acaso / coincidência estarem na FIGURA 1 esse militar e esse padre e por via disso ela por acaso / coincidência poder representar o Estado (mas só "em parte"), essa representação não podia ter tido "suma importância" para o seu criador SR nem a deveria ter agora para quem a queira interpretar;
Segue-se o meu terceiro argumento contra a ideia de Inês de que a FIGURA 1 "materializava, também em parte, a orgânica do Estado Colonial assente nos diferentes poderes aqui representados, um elemento do Exército e um elemento do Clero". 
c. O Tenente Costa e o Padre Sacramento nem deveriam ter sido primeiras (ou 2as ou 3as) escolhas se SR quisesse únicamente mostrar "poster boys" para aí representar o Estado ou os seus suportes:
- o tenente Costa na altura não era militar no activo e não fez carreira de armas notável. Mas sendo ele director de estatística da Companhia de Moçambique (uma empresa privada), com ele na equipa SR assegurava-se de ter uma pessoa por um lado técnicamente competente e por outro conhecedor das esferas do poder ligadas à economia e administração do território;
- o padre Sacramento já vimos por exemplo neste artigo que tinha uma trajectória de enriquecimento pessoal, uma vivenda luxuosa e pelo menos a suspeita de companhias femininas, o que mesmo com as suas dádivas na fase mais recente da vida deveria ter gerado muita resistência na instituição católica e nos crentes. O padre não seria assim certamente o membro mais respeitado do Clero para representar a instituição nessa figura, se fosse essa a intenção subliminar de SR. Presumo então o padre apareça lá pela simples razão que SR anuncia, a de que apoiou a iniciativa o que teria acontecido pela amizade e possivelmente pelo suporte financeiro que lhe terá dado como alvitro neste artigo.  
Não esqueçamos também que o padre tinha sido o fundador da lotaria a qual seria a fonte principal de rendimento de SR na altura e pela minha hipótese talvez a razão para os álbuns terem sido produzidos e SR podia querer fazer reconhecimento público disso.
Em conclusão acho que a análise de Inês sobre o que teria sido a "segunda" intenção de SR com a produção e publicação da FIGURA 1 não é feita com bases sólidas.
Levando a análise do pensamento de Inês um pouco mais longe posso tentar imaginar a figura que SR teria desenhado se realmente quisesse transmitir com ela o simbolismo que Inês supõe foi intenção dele conseguir com a FIGURA 1. Essa figura, adicional à FIGURA 1, que podemos supor teria sido mantida só para as homenagens como à partida seria, teria de "materializar" de forma mais perceptível aos leitores de SR a "orgânica do Estado Colonial" e poderia ter sido algo deste género: 

FIGURA 2 HoM, adicional à FIGURA 1 
HoM substituindo-se a SR como gráfico se com a FIGURA 1
SR tivesse tido uma das intenções que Inês supõe que ele teve

Represento então na FIGURA 2 HoM o poder militar em Moçambique através do seu Chefe de Estado Maior, o poder civil do Governo através do Governador-Geral e do lado direito estaria um membro proeminente do clero. 

Resumindo e concluíndo, a questão que Inês se devia ter posto é porque SR não teria feito uma segunda figura como a que esboço em cima pois a sua equipa editorial tinha capacidade técnica para o fazer, em vez de tentar transmitir pela FIGURA 1 uma mensagem evidente (as homenagens) mais um simbolismo encapotado (o dos pilares do Estado) como Inês supõe que teria acontecido.

PS: no seu artigo Inês a respeito das fotografias tiradas por Fowler da linha de Caminho de Ferro que o Estado Português tinha concessionado a Mac Murdo (que "ganhou, em 1884, a concessão portuguesa que deveria ligar o caminho de ferro de Lourenço Marques até à fronteira do Transvaal. A concessão, que foi gerida através da empresa Delagoa Bay & East Africa Company, Ltd") questiona-se: 
"Não se sabe ao certo o intuito de reunir as fotografias nesse álbum fotográfico. Seria um objeto de colecionismo para o próprio Edward McMurdo? Ou um objeto de propaganda da empresa Delagoa Bay & East Africa Company, Ltd.? Seria para oferecer ao Governo Português?". 
Ora se Santos Rufino era também concessionário do Estado Português só que para a lotaria, porque é que ácerca dos álbuns e das motivações de SR, Inês não colocou a si mesma as mesmas perguntas? Se o tivesse feito poderia ter levantado a mesma hipótese de ligação entre os álbuns e essa concessão como que eu fiz em cima.

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