Pe. Sacramento, Naylor, Rufino, jornal e lotaria: actores e estratégias para a lotaria de LM (5/10)

Continuamos a série de artigos sobre acontecimentos e pessoas importantes em Lourenço Marques (LM), actual Maputo relacionados com a lotaria entre a segunda e a terceira década do século XX, nomeadamente o padre Sacramento, Rufus Naylor e Santos Rufino. 
Falaremos mais aqui do que teria sido a estratégia do padre, que tudo leva a crer tenha sido o primeiro concessionário da lotaria em Moçambique em sociedade com Naylor, para a conseguir comercializar na África do Sul onde esse jogo estava proibido ou muito restringido.
Aparece informação sobre o tema no artigo "Lembrar é preciso: as conquistas portuguesas revisitadas por exemplares da imprensa colonial elaborada em Portugal e Moçambique (1922 - 1937)" (aqui) de Leandro António Guirro de 2017: "Em 1918, o jornal (O Africano)  foi comprado pelo padre Vicente do Sacramento, envolvido em uma sociedade com um judeu estabelecido na África do Sul, chamado Rufe Nylor, responsável pelos negócios lotéricos em Moçambique. Por meio de contrabando, os bilhetes passaram a ser vendidos no país vizinho. Após o regresso de seu sócio para a Europa, o padre Vicente do Sacramento tornou-se diretor do O Africano e incluiu em suas páginas uma secção em língua inglesa na qual publicou os resultados da loteria e as listas de bilhetes premiados, pois tais informações não podiam ser veiculadas oficialmente na África do Sul. Assim, o primeiro  jornal direcionado aos africanos começou com auxílio da Maçonaria e transformou-se “em veículo de um negócio chorudo montado por uma estranha sociedade: um capitalista judeu e um missionário católico” (ROCHA, 2000, p. 93)". 
L.A: Guirro diz aí expressamente que os bilhetes eram contrabandeados para a África do Sul pelo que o padre, sócio ou dono da lotaria, mesmo que não estivesse directamente implicado nessa ilegalidade (ou pelo menos chico-espertísse) não podia argumentar que a desconhecia pois com o seu jornal expressamente favorecia o seu desenvolvimento. Ora é bom de notar que a lotaria de LM / Moçambique era uma concessão oficial, não era uma qualquer empresa clandestina sem controle e se a África do Sul reclamasse do contrabando o Estado Português teria de intervir. Mesmo se esquecermos a parte do apoio do jornal, o padre como concessionário saberia a que distribuidor(es) tinham sido vendidos os bilhetes que as autoridades sul-africanas detectariam no seu país e seria fácil cortar o fluxo. Tendo isto em conta e como já disse no artigo 2 desta sérieparece-me que essa estratégia de venda da lotaria na África do Sul só duraria até que este país a detectasse, e não sei se foi devido à sua reacção que como vimos o padre encerrou o jornal ainda em 1919. O que terá realmente acontecido, terá a lotaria entrado com sucesso na África do Sul, terá isso levado as suas autoridades a reclamar ao governo de Moçambique e terá este forçado o padre a terminar o contrabando? Questões interessantes para as quais não tenho resposta.
Há mais alguma informação no texto "Pioneiros da imprensa em Moçambique João Albasini e seu irmão" de Antonio Hohlfeldt e Fernanda Grabauska que dizem o seguinte sobre o padre Sacramento: "Durante a I Grande Guerra, o sacerdote se associa a Rufe Nylor e se torna concessionário da loteria de Moçambique, o que o torna milionário. Em 1919, Nylor regressa à Europa e o padre Vicente fica sozinho com o negócio...". De notar que a fonte original da informação agora disponível na net deve ser o livro de Ilídio Rocha  "A Imprensa de Moçambique: história e catálogo (1854-1975)", aqui o anúncio, que não pude consultar. 
Vamos agora tentar conhecer melhor o sócio do padre na lotaria de LM durante cerca de dois anos, o referido Rufe Nylor. O seu nome oficial completo era Rupert Theodore NAYLOR mas era mais conhecido por Rufe ou Rufus NAYLOR ou NYLOR. Era australiano e quanto ao facto de ser judeu, como L.A. Guirro e outros autores lusófonos o classificavam, faço notar que nos textos em inglês nunca vim essa referência e que nos dados biográficos disponíveis também nada me indica que ele fosse crente dessa religião ou que pretencesse a esse grupo social.
Para visualizarmos de quem se trata, o que nenhum dos estudos que consultei tentou fazer, primeiro uma foto de Rupert Naylor (1882–1939) reproduzida dum FB australiano e que terá acompanhado o seu epitáfio que terá sido publicado no jornal "The Sydney Morning Herald": 
Personalidade das corridas, Rufe Naylor em Sidney em 1934. 
Terá sido com o Pe. Sacramento o 1o concessionário da lotaria de LM

Naylor faleceu por volta de 25 de Setembro de 1939 e o epitáfio num jornal que terá acompanhado a foto de cima é o seguinte: "racing identity Rufe Naylor photographed in Sydney, 30 July 1934. Rupert Theodore (Rufus) Naylor's career was "colourful", to say the least. In addition to managing the Empire Theatre in Sydney and promoting mechanical-hare greyhound racing (corrida de galgos com lebre mecânica), boxing and cycling, he lived for a time in South Africa where he started a newspaper, entered politics and was charged with bribery. Back in Sydney (by way of India) he worked in radio and fought a long battle against the A.J.C. after it banned him from the track".
Este texto assinala que a carreira de Naylor foi "colorida", no mínimo. Isso deve ter dois significados, um que foi diversificada e em áreas interessantes e outro que andou nas margens da legalidade ou das regras empresariais. Pelo resto da informação que iremos vendo vê-se que as duas possibilidades estão cobertas: quanto à primeira, vemos aí e completar-se-à depois, esteve activo no cinema (exploração de salas e distribuição), em competições desportivas, nas apostas, em casinos, agênciamento de artistas, imprensa escrita e radiofónica, na política e viveu em pelo menos cinco países diferentes; quanto à segunda, a zona "cinzenta", por exemplo na África do Sul foi condenado pelo menos num caso e acusado de corrupção noutro e na Austrália foi banido pelo Australian Jockey Club (AJC) de assistir às corridas de cavalos. 
Numa notícia de 28.6.1931 do jornal Truth de Sidney, cerca de três anos antes da foto de cima e oito antes do falecimento, primeiro o articulista em relação ao banimento pelo AJC achava estranho que apesar disso Naylor pudesse continuar a ser agenciador de apostas (bookmaker, bookie),  isto é gerindo fundos relacionados com as apostas. O jornal, muito negativo sobre Naylor, depois dá mais detalhe sobre a fase africana. Ele chegou em 1908 à África do Sul onde teve carreira variada, nas corridas de cavalos e desporto profissional e em publicidade empresarial e confirma que teve uma concessão do governo português para a lotaria em LM, mas não diz quando foi. Em 1910 pediu licenca para agenciador de apostas na África do Sul que lhe foi recusada. Em 1917 foi condenado em Jo'burg a multa de GBP 150 por realizar uma lotaria o que era ilegal no país e por não a ter pago foi condenado a 5 meses de trabalho forçado. Tinha também sido condenado por declarações falsas. Em 1919 foi preso e acusado de violação de leis da lotaria. Foi libertado sob fiança e aproveitou para se escapar da África do Sul onde ficou sob mandato de captura mas não foi pedida internacionalmente a sua extradição. Veremos depois que entre a África do Sul e a Austrália Naylor esteve alguns anos no Ceilão (Sri Lanka) e Índia, países na altura parte do Império Britânico. 
Podemos reparar nesse resumo do jornal Truth de Sidney que não há dados sobre o período entre 1910 e 1917 mas veremos detalhadamente no artigo 7 do que se ocupou ele entre esses anos, no último dos quais regressou à África do Sul (e pouco depois foi condenado) e no que nos interessa mais em que terá concorrido e lançado a lotaria em LM.
Os anos de Naylor na África do Sul no negócio das apostas, já de si uma actividade onde o risco de se descambar para a marginalidade é grande, mostram-nos que Naylor nalguns casos sentiu-se atraido por ela. 
Voltando ao romance histórico o "Olho de Hertzog" e ao que ele possa servir para melhor conhecermos Naylor, como dissemos no artigo 4  o autor JP Borges Coelho coloca Naylor (com o padre Sacramento) na África do Sul a tentar trucar um combate de boxe para beneficiar nas apostas. Será que o autor, sabendo das actividades e dos problemas que Naylor teve nesse país quis criar casos concretos para exemplificar essa fase da sua vida ou será que encontrou esses dados em pesquisa que terá feito? Será que Naylor e o padre eram já na África do Sul, até 1914, associados? JP Borges Coelho menciona depois a sociedade entre os dois na lotaria de LM, o que parece ter acontecido, e surge no livro uma curta cena em LM em que Naylor anuncia que iria regressar à Europa o que de facto aconteceu (foi para o Ceilão / Índia mas pode ter feito trânsito pela Europa). Mas como dissemos antes JP Borges Coelho fala também que o par em LM estava envolvido em "empreendimentos que incluíam as apostas, a corretagem" e numa "sociedade de corridas de cavalos, o Turf Club" que nâo consigo confirmar. Em suma relativamente a Naylor no livro há partes confirmadas, outras parecem ficção e outras que  deixam dúvida sobre a veracidade, mas de qualquer modo ele é personagem bastante secundária na trama.
Focando-nos mais na concessão da licença da lotaria em Moçambique que terá acontecido em 1917, não sabemos se ela foi atribuida ao padre e a Naylor antes ou depois da condenação deste na África do Sul mas pelo que dissemos Naylor não parecia pessoa muito idónea para estar num negócio em que a confiança, do público e do Estado, é um factor essencial.  Teria sido iniciativa do padre convidar Naylor sabendo da sua experiência (problemática é certo) no negócio das apostas e lotaria na África do Sul? Ou teria a ideia da exploração duma lotaria em LM partido de Naylor e teria ele convidado o padre deixando a este a função de motivar as autoridades portuguesas a emitir a licença / lançar o concurso e a tornar a sua participação (de Naylor) no empreendimento mais aceitável do que se se candidatasse sózinho? 
Recordo que o percurso do padre não era absolutamente limpo no campo da honestidade pois tinha sido acusado de cobrar aos alunos aulas que o Estado já lhe pagava para dar, mas o que para nós agora poderia parecer pior, o padre ter estado envolvido em jogos de apostas e fraude, deve ter sido fantasia do romance "O Olho de Hertzog". De qualquer modo nessa altura encontrar candidatos à exploração da lotaria sem qualquer mácula no curriculo devia ser difícil pelo que esse problema do padre com o Estado, se não tivesse sido ultrapassado, não terá sido considerado factor de exclusão pelas autoridades. Na falta de dados mais concreto só podemos fazer suposições e perguntas: como terá sido emitida a licença para a lotaria, por iniciativa do governo ou pressão externa? Como terão as candidaturas do padre e de Naylor sido analizadas pelo governo de Moçambique? Para a atribuição terá havido concurso e terá este sido competitivo? 
E como terá reagido a sempre mordaz e incisiva imprensa de LM à concessão feita a Naylor? Do cenário assim traçado talvez se entenda melhor porque o padre escrevia para "O Africano" e porque comprou o jornal, que chegou a ser o de maior tiragem em LM, em 1918. De qualquer forma é de notar que não me consta que tenha havido problemas de segurança e confiança na operação da lotaria de LM, que dizer que uma eventual mácula anterior nos seus operadores não teve consequências.
Presumo que estas ideias e perguntas poderiam servir de pistas para investigadores bolseiros que estejam interessados no tema. ...
No próximo artigo falaremos mais de Naylor, especialmente nos primeiros anos.

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