Pe. Sacramento, Naylor, Rufino, jornal e lotaria: padre em LM depois do Transvaal (2/10)

Prossegue a série de artigos sobre parte importante da vida económica e social da cidade de Lourenço Marques (LM), actual Maputo entre a segunda e a terceira década do século XX e continuo com os elementos biográficos possíveis de obter na net do padre José Vicente do Sacramento.
Padre José Vicente do Sacramento

A foto de cima é reproduzida do site da Junta de Freguesia de Castelo no concelho da Sertã no centro de Portugal donde o padre era natural e está acompanhada da informação seguinte (e que podemos ir julgando com o que aqui iremos vendo): "Natural do Castelo, 1864 - 18/02/1933. Figura ímpar a nivel eclesiástico, social e político". De informação da igreja (aqui) sabe-se que o padre foi enviado como missionário para Moçambique em 1893, por isso quando tinha cerca de 29 anos de idade.
Vamos aqui tentar ver mais da sua vida após ter deixado o Transvaal onde viveu alguns anos. No estudo "Síntese histórica da imprensa moçambicana: Tentativa de interpretação"  Antonio HOHLFELD e James Machado dos SANTOS explicam: "De retorno a Lourenço Marques, (o padre) torna-se funcionário do jornal ("O Africano"): redige, traduz, auxilia na área administrativa. Em 1912, a maçonaria decide indicar um secretário de redação, José dos Santos Rufino, que logo se torna grande amigo do religioso, ainda que este, a essas alturas, já explorasse a agricultura em uns campos próximos. Não deixara, contudo, de colaborar com o periódico". 
Vê-se daqui como Santos Rufino, identificado como membro da maçonaria, conheceu o padre. Sabe-se também que membros dessa organização ("entre outros, o capitão Francisco Roque de Aguiar, presidente do Capítulo da instituição; o Dr. Jaime Ribeiro, militante socialista, e José Corrêa da Veiga") cobriam as perdas financeiras do jornal "O Africano" e certamente tentariam influenciar a sua linha editorial. 
Aqui Roque de Aguiar em foto do FB Obras de Alfredo Pereira de Lima
Francisco Roque de Aguiar, militar da Polícia em LM,
maçónico e um dos mecenas de "O Africano"

Como veremos o principal redactor do jornal era João dos Santos Albasini, pessoa de fé católica e advogado da justiça social e dos direitos dos mais fracos. Não sei até que ponto poderia haver conflito ideológico entre os seus princípios e os da maçonaria, mas entre pessoas moderadas como parecia ser o caso não devia haver grandes problemas. 
José dos Santos Rufino

O comerciante e editor Santos Rufino já referido aqui com certo detalhe foi então um dos pilares financeiros de "O Africano" tendo exercido cargos de relevo como se pode ver no cabeçalho dos seus números 2 e 5 do ano I, respectivamente de 12 de janeiro e 10 de fevereiro de 1912. Destas datas presume-se que o jornal nessa época teria periodicidade entre uma e duas semanas. Estas edições tinham 8 páginas e eram todas escritas em português, tenho ideia que haveria uma folha separada em ronga, lingua em que aparecem alguns dos anúncios. Não entendo porque razão aparece escrito "Suplemento" sob o nome no cabeçalho quando parece ser o corpo principal do jornal e porque aparece ano 1 em 1912 quando segundo César Braga-Pinto o jornal nasceu em1908:
Director e Editor: João e José (Santos) Albasini
Administrador: José dos Santos Rufino
Director e Administrador: José dos Santos Rufino
Editor: José Albasini
Penso que foi um dos autores luso-moçambicanos Pereira de Lima ou Alexandre Lobato que terá dito que João Albasini tinha sido inicialmente director mas que "por cansaço" tinha passado depois à posição subalterna de editor no segundo número. No entanto os estudos académicos recentes sobre a imprensa de Moçambique que vimos referindo apresentam-no sempre como sendo o principal redactor. Os irmãos João e José Francisco eram ambos funcionários públicos.
Fechando o parêntesis mais específico a respeito de "O Africano" e voltando ao padre já em LM, diz o texto "Pioneiros da imprensa em Moçambique de António Hohlfeldt e Fernanda Grabauska (como Holfeld é também co-autor do estudo "Síntese histórica" que citámos em cima deve ter-se assegurado não haver contradição de maior)"Diante das dificuldades (no Transvaal, de colaborar no conteúdo do jornal e de o vender tendo em conta que seu "tom" desagradava às autoridades sul-africanas), o sacerdote desistiu da empreitada, fixou-se em Lourenço Marques e foi trabalhar em O Africano, redigindo matérias e ajudando na administração da publicação". E depois passa a outros aspectos que seguiremos também: "Aproximando-se de José dos Santos Rufino, (o padre) tornou-se também agricultor nos terrenos da “velha Carlota”, situados nos subúrbios da cidade. Durante a I Grande Guerra, o sacerdote se associa a Rufe Nylor e se torna concessionário da loteria de Moçambique, o que o torna milionário. Em 1919, Nylor regressa à Europa e o padre Vicente fica sozinho com o negócio, resolvendo então comprar o jornal O Africano, nele incluindo uma página em língua inglesa, onde divulga os resultados da loteria, evitando, assim, infringir as leis do Transvaal". 
Ficámos agora a saber o básico do quadro que tento cobrir nesta série envolvendo o padre, Naylor, Rufino, o jornal e a lotaria de Moçambique e este último texto introduz um novo elemento, o de que o padre e Nylor foram sócios no seu início. Da lotaria falámos aqui mostrando a sala de extração em 1929 e a partir dum bilhete (fracção) dito que ela tinha sido estabelecida por portaria oficial de fevereiro de 1917 (o que é compatível com o "durante a I Grande Guerra", ou seja no período entre 1914 e 1918 do texto de cima). Como outra investigadora, a já mencionada Isadora Fonsecadiz literalmente que foi em 1919 que o padre obteve a concessão, tal levaria a crer que ele a tivesse adquirido do primeiro concessionário, mas com dados completos parece-me que em 1919 o padre passou de sócio a único proprietário. Um elemento novo do texto "Pioneiros" é que o jornal "O Africano" servia para divulgar os resultados da lotaria no Transvaal e voltaremos a isso a mais tarde.
Sobre esta fase da vida do padre e da evolução de "O Africano", no artigo "A imprensa NegraV. Zamparoni (investigador muito capaz mas militando vincadamente à esquerda como denota aqui) explica: "O padre Sacramento era um capitalista influente em Lourenço Marques que com o dinheiro acumulado no Rand, torna-se proprietário das "Lotarias da Província", exercendo uma atividade especulativa e decerto lucrativa, numa cidade moldada pelo jogo nos casinos, bordéis e cabarés onde se consumia e gastava o ouro e libra inglesa. Ultra-colonialista, vai se tornar defensor da expressão política da burguesia colonial, particularmente quando, na maior crise do fim da Guerra Mundial, compra o jornal (O Africano) para utilizá-lo na mobilização pública, reinvindicando a autonomia de Moçambique em relação a Portugal, em 1919, pouco tempo antes do jornal deixar de existir.".
Ora aparecem-nos aqui duas justificações diferentes para a compra pelo padre em 1918 de "O Africano", de forma a utilizar o conhecido título de imprensa para o seu interesse pessoal:   
- 1. a de Holfeldt e Grabauska: de que se trataria dum estratagema do padre relacionado com a entrada do (também seu) negócio da lotaria no mercado sul-africano onde para haver compradores da lotaria era essencial a divulgação dos bilhetes premiados, que são sempre listas extensas. Ora na África do Sul as lotarias estavam ou proibidas ou muito resingidas, por isso se a de Moçambique lá conseguisse entrar exploraria o enorme potencial desse mercado e sem concorrência local;
- 2. a de Zamparoni: de que tinha a ver com a aspectos sociais (ver aqui na pág. 16 relativo à nfp 56) a ou políticos em Moçambique e Portugal que o padre defendia e pretendia veícular pelo jornal; 
Quanto a (1), o aproveitamento da entrada do jornal na África do Sul sob a capa de se dirigir aos mineiros moçambicanos mas para servir para os compradores dos bilhetes conhecerem os resultados das extrações, parece-me que o caso não seria assim tão simples. Como seria vendida a lotaria de LM na África do Sul, primeiro os bilhetes tinham de lá entrar de contrabando e como seriam depois distribuidos? Quem faria isso ?  Que confiança teria o comprador com um sistema de comercialização tão obscuro? Como podia quem lá fosse premiado levantar os prémios em LM e tranferir os montantes para contas na África do Sul em rands, em termos de disponibilidade de divisas e de não ser detectado pelas autoridades? Parece-me que se na África do Sul a lotaria era ilegal ou quase, não teria levado muito tempo a que as suas autoridades tivessem percebido o que se passava e tomado medidas para contrariar os planos do padre mas os autores que seguimos aqui não falam disso - nartigo 5 desta série volto a este assunto
Podia dar-se o caso das justificações (1) e (2) se poderem combinar, mas o que eu vejo é certa contradição entre elas pois se o objectivo do padre fosse o (1), ele não se devia preocupar muito com o seu conteúdo do jornal o que vai contra a justificação (2). Mas como Zamparoni diz, não parece ter havido grandes resultados ou consequências das estratégias que o padre tivesse idealizado dado que o jornal foi encerrado ainda em 1919, quer dizer elas terão sido aplicadas no máximo durante um ano. 
Note-se que após a venda de "O Africano" ao padre em 1918, para o final desse ano os irmãos Albasini criaram o jornal "O Brado Africano" que continuou a existir durante muito tempo. Não sei de que lado ficou Santos Rufino nessa altura, se do lado dos irmãos como até aí tinha estado ou se do lado do padre de quem entretanto se tinha tornado amigo e talvez mais até. De facto sobre os tempos posteriores a 1919 em Pioneiros da Imprensa Antonio Hohlfeldt e Fernanda Grabauska dizem que "o sacerdote, ... transladou-se para Portugal,.... sendo substituído na loteria por .. José dos Santos Rufino" e este manteve esse negócio da Lotaria Provincial talvez até aos anos 40, época em que o Estado terá retomado a concessão e sobre isso reflectiremos um pouco mais no artigo 8.
Resumindo, os elementos biográficos que recolhi (os apresentados até ao fim deste artigo e mais alguns que aparecerão depois) sobre o padre José Vicente do Sacramento e que parecem mais consolidados são:
- nasceu em 1864 no centro de Portugal;
- foi como missionário para Moçambique em 1893;
- terá trabalhado como missionário no território pelo menos até 1904;
- exerceu assistência religiosa aos trabalhadores moçambicanos e geria escolas de português no Transvaal como assalariado do estado português;
- durante um certo tempo foi também correspondente e distribuidor no Transvaal da publicação de LM "O Africano";
- em 1914 regressou a LM e terá tido uma exploração agrícola e outros negócios, parecendo ter abandonado a vida religiosa (veremos mais dessa parte depois);
- em 1917 foi-lhe outorgada pelo Estado a concessão da Lotaria Provincial com o sócio Nylor;
- em 1918 comprou a publicação de LM "O Africano";
- em 1919 passou a ser o único sócio da lotaria;
- nos anos 20 torna-se benemérito da igreja (veremos essa parte depois);
- em 1923 tinha regressado a Portugal mas pode de tempos em tempos ter viajado até Moçambique (veremos essa parte depois);
- em 1928 terá estado na África do Sul;
- c. de 1929 era ainda proprietário da grande vivenda em LM. Não sei quando a psse da lotaria terá passado para Santos Rufino;
- em 1933 faleceu em Portugal.
Especialmente sobre a lotaria, o padre e Nylor veremos mais no próximo artigo.

Comentários