Pe. Sacramento, Naylor, Rufino, jornal e lotaria: "O Olho de Hertzog" factos e fantasia (4/10)

 "O Olho de Hertzog"  
Moçambique no rescaldo da (primeira) Grande Guerra

O livro da editora Nzila / Leya "O Olho de Hertzog" tem o padre José Vicente do Sacramento como uma das suas personagens. Como o seu autor é o historiador JP Borges Coelho presumi que sobre ele (e outros personagens marcantes da época mas pouco desenvolvidos nos estudos académicos que seguimos nesta série) o livro pudesse ter elementos resultante de pesquisa em fontes mais alargadas que as anteriormente conhecidas. 
Procurei assim nele por novos dados mas tendo óbviamente em conta que se trata duma obra de fiçcão com a História como pano de fundo. De facto no livro o início da acção em Lourenço Marques (LM), actual Maputo que deve acontecer para o final de 1918 / início de 1919 (ver NB 1) deixa-nos logo de sobreaviso sobre o grande peso do que é ficcionado. Refiro-me à chegada do navio Ferreira cujos passageiros têm de passar a uma galera a remos (pág 16) para chegar a terra enquanto que o navio podia simplesmente ter acostado à ponte-cais Gorjão fazendo-se o desembarque pela escada de portaló. Esses momentos de criatividade devem fazer parte do que o autor disse na apresentação da obra em 2010 ter sido o seu divertimento na "viagem da escrita"
O livro teve sucesso literário pois recebeu o prémio Leya 2009 e pode ver-se aqui uma critica elogiosa e bem fundamentada da académica Sueli Saraiva. Pode não transparecer do que dele extrairei aqui mas a sua estrutura narrativa é complexa e a escrita é refinada e muito imaginativa, quer dizer é uma obra erudita e mesmo assim alcançou sucesso de público tendo atingido pelo menos a quarta edição em Portugal.
Quanto ao padre Sacramento, o livro na pág 86 (e repetirei aqui alguma informação dado que consta dos elementos biográficos já antes mencionados e dos que veremos a seguir) apresenta-o inicialmente como vivendo muito pobre, com frio e mal alimentado numa cabana miserável perto de Johannesburgo. Aparentemente tinha nessa altura como única ocupação escrever artigos "de denúncia da condição dos mineiros moçambicanos" para o periódico laurentino "O Africano" dirigido por João dos Santos Albasini, que é outra das personagens da vida real que aparecem na ficção e sendo pelo menos em parte ficcionado. Sobre ele há informação na wikipedia e um artigo muito completo de Jeanne Marie Pevenne.
João dos Santos Albasini (wikipedia),
cidadão de LM relacionado com o padre Sacramento

Foi também já referido que "O Africano" (cuja periodicidade de publicação variou entre uma, duas ou três vezes por semana) era escrito nas línguas portuguesa e ronga, a africana local de LM e que tinha certa índole reivindicativa especialmente de direitos dos nativos, isso em tempos republicanos e muito antes de Salazar. 
Segundo o livro e também os elementos biográficos que já mencionámos, Albasini retribuia os textos escritos pelo padre para o jornal oferecendo "uns quantos exemplares" que ele fazia vender nos "compounds" aos mineiros (e no livro isso acontece através dum certo Rapsides), o que dava para o padre amealhar algum dinheiro. Mas os proprietários das minas não gostavam do "tom de protesto" do jornal e proibiram a sua distribuição pelo que assim se encerra no livro essa fase da vida do padre. 
Depois vê-se na pág 142 do livro que ainda na África do Sul o padre com um sócio, Rufus Naylor, personagem também real de quem falaremos noutros artigos, envolveu-se em apostas sobre duas ou três corridas de atletismo e que os rendimentos lhe deram para juntar uma pequena fortuna. A seguir os dois passam a promotores de combates de boxe e a agenciar as apostas respectivas. Tentaram trapacear o terceiro combate para maximizar o seu ganho mas o seu pugilista Rapsides, que tinha na ficção começado por ser vendedor dos jornais, passado a ser corredor de atletismo e estava agora a ser boxeur também de sucesso, não possuia dotes de actor e ao fingir perder o combate (contra as expectativas gerais) foi desmascarado.
Dai o novo negócio ter corrido muito mal para o duo (ou trio) e ainda segundo o livro, seguiu-se uma visita da polícia ao padre que resolveu deixar tudo o que tinha na África do Sul. O livro menciona específicamente o dinheiro (mas pergunto, não havia bancos em Jo'burg para o guardar, se o padre tinha sido tão pobre antes teria ganho assim tanto só com essas apostas?), a cabana (mas pergunto, se tinha ganho dinheiro não podia ter já alugado ou comprado uma casa?) e o negócio das apostas (nisso estou de acordo que estava desacreditado para poder continuar, ou pior seria mesmo uma actividade ilegal, não sei) e regressa a LM. 
Comparando estão estes elementos aparentemente biográficos do livro (mas muito recambolescos para serem factuais) principalmente sobre o padre com outros recolhidos pelos académicos de que falámos nos artigos anteriores nota-se o seguinte:
- com o estudo "Síntese histórica da imprensa moçambicana: Tentativa de interpretação" de Antonio HOHLFELD e James Machado dos SANTOS", vê-se que se alinham a respeito da situação de miséria inicial ao tempo do Transvaal. No entanto o livro justifica a expulsão do padre da África do Sul como sendo consequência (indirecta) da batota no combate de boxe enquanto que o estudo justifica-a com o conteúdo do jornal desagradar às autoridades;
- com a dissertação "Entre Narros & Mulungos" de Zamparoni, que apresenta os elementos biográficos mais elaborados que encontramos na net,  vê-se que há discordância no que respeita à situação económica do padre no Transvaal em que segundo esse investigador o padre tinha rendimento substancial do seu cargo oficial e das escolas e não refere a contribuição da venda do jornal e/ou dos espectáculos e apostas desportivas. Outra grande diferença é que no livro o padre deixou o Transvaal sob a dita pressão policial enquanto que Zamparoni atribui a mudança à diminuição dos seus rendimentos provenientes das referidas ocupações.  
Custa-me a crer na versão do livro de JP Borges Coelho (e de HOHLFELD / SANTOS) do padre como estando na miséria pois mesmo que conjunturalmente ele tivesse tido problemas teria recursos para rápidamente os ultrapassar. O padre, que presumo estivesse desligado na práctica da igreja, era uma pessoa com vasta formação, teria bons conhecimentos pessoais em diversos sectores de actividade no Transvaal, na altura estava com cerca de 50 anos de idade por isso apto para o mercado de trabalho e assim, apesar de algum percalço que pudesse ter tido, parece-me que teria podido encontrar na pujante economia sul-africana trabalho remunerado que lhe permitisse viver com o mínimo de conforto. Para mais sabemos nós que após o seu regresso a Moçambique o padre provou no meio empresarial ser inteligente, dinâmico e mesmo ter "toque de midas" pelo que não é crivel que se tivesse deixado cair na pobreza no Transvaal. 
Por isso JP Borges Coelho pode ter miserabilisado essa fase da vida do Pe. Sacramento de modo a tornar mais credível a fase seguinte ainda no Transvaal, a de organizador de apostas. Não sei se JP Borges Coelho se baseia em informação da época, mas Zamparoni não o menciona. Alguns dos outros autores referem essa fase ligeiramente, mas terão esses autores lido o livro (de 2010, por isso anterior a algum dos estudos) e acreditado que essas passagens eram verdadeiras sem tentar confirmação alternativa? Seria deplorável, mas ... 
Resumindo, na ausência de outra confirmação e sobre a vida do padre no Transvaal parece-me que do livro de JP Borges Coelho (descrevendo primeiro a situação de pobreza com o jornal e depois de riqueza com as apostas e a associação com Naylor) não se pode retirar informação muito segura mas ...
O livro relata depois o padre a viver em LM e não o consigo confirmar por elementos biográficos mas talvez possa dar para fazermos uma ideia do que ela foi pós c. de 1914.. JP Borges Coelho retrata-o na pág 139, isto para o final de 1918 ou início de 1919, como homem de negócios florescente(s) e com um grande escritório alugado no Hotel Clube e coloca-o aí a descrever os seus negócios na altura. Seriam o Turf Club (Turfe são corridas de cavalos, organizadas essencialmente para promover apostas) "capaz de ombrear com os melhores da Europa", as "hortas que dão de comer a meia cidade" e os galgos de corrida importados. JP Borges Coelho coloca-o também a afirmar que estava a construir um bairro social mas não o localiza e por isso, tal como para os três outros elementos não posso tentar verificar se existiu ou não. 
Quando ao que seria a instalação mais notória, o Turf Clube que teria um grande circuito, não sei onde terá sido (ver NB 2) e assim não consigo localizar o que de mais concreto JP Borges Coelho faz o padre dizer no livro e por isso em certificar-me se será verídico ou não, na ausência de mais informação que o corrobore - ver este artigo sobre a praça de touros do Turf Club c. de 1929 cujo local deveria ser o mesmo da pista de corrida de cavalos. 
Teria sido pouco antes da cena do padre no escritório que ele se teria juntado de novo ao antigo sócio Rufus Naylor (segundo o relato do livro, mas como disse na vida real não sei se teriam tido alguma relação durante a presença do padre no Transvaal) tendo os dois obtido a exploração da Lotaria Provincial de Moçambique, o que será um facto real, e os tornou milionários. Outra informação que veremos depois é de que Naylor teve um casino em Moçambique (que no entanto não consigo identificar emlhor) e isso pode estar ligado ao que JP Borges Coelho acrescenta no livro de que o par se lançou "em novos empreendimentos que incluíam as apostas, a corretagem", voltando aí a referir a "sociedade de corridas de cavalos, o Turf Club" .
Em linha com elementos biográficos doutros autores escreve também JP Borges Coelho (pág 90) que em LM o padre se amantizou, depois do regresso da África do Sul, com Carlota Especiosa da Paiva Raposo, uma viúva mestiça, o que foi relevante em termos económicos dado ela ser grande proprietária de terrenos onde o padre criou "as hortas" da qual retirava proventos significativos (ver NB 3). Dona Carlota estará provávelmente na seguinte PHOTOGRAPHIA TIRADA NA CATEMBE, DEPOIS D´UM ALMOÇO OFERECIDO por ela na Catembe em 1900:

Foto tirada na Catembe em 1900 com Dona Carlota

No livro a Dona Carlota é descrita como sendo fisicamente avantajada pelo menos em comparação com o pequeno padre pelo que será a senhora de certa idade mais forte de pé à direita com um xaile pelos "ombros", mas para confirmar seria preciso comparar com outra sua foto (ver NB 4 e NB 5).
Voltando ao livro, o padre Sacramento e Nylor / Naylor só voltam a aparecer (e os dois juntos) nas páginas 343 e 344. Estavam num bar do Hotel de Paris, "vestidos integralmente de linho creme com o chapéu a condizer" e fica-se a saber que Nylor, "o nababo das lotarias", partia nesse dia para a Europa. E daí para a frente nenhum dos dois regressa à narrativa engendrada por JP Borges Coelho tendo por isso tido uma presença irrelevante na narrativa pois não interagem com outros personagens. Dá ideia que o autor, tendo em conta que na sua vida verdadeira eles terem sido "larger than life", inicialmente antevia-lhes potencial dramático mas que a certa altura se esqueceu deles ...
No próximo artigo (5/10) começaremos a falar mais desse Rufus Nylor / Naylor, o sócio do padre Sacramento, de quem encontro pouquíssima informação no que está publicado em português relacionado com LM nessa época mas de que há bastante informação de origem anglófona.

NB 1: No livro, quando a acção começa a decorrer em LM o que como dissemos teria sido para o final de 1918 / início de 1919, Albasini aparece a lançar o seu novo projecto de imprensa o "O Brado Africano". Isso corresponde à realidade pois em 1918 Albasini e o irmão tinham vendido "O Africano" e por coincidência ao padre Sacramento.
NB 2: As fotos da Praça de Touros em 1929 dos álbuns de Santos Rufino foram legendadas como sendo também do Turf Club, mas essa arena não podia servir para as corridas de cavalos. Por isso, é de esperar que a pista estivesse ao lado ou em redor dessa praça, que de facto e sendo em madeira não temos a certeza se seria instalação fixa ou desmontável. Como acima se refere que o padre Sacramento / Turf Club organizavam corridas de galgos, será que isso acontecia dentro da praça ? Vimos que corridas de galgos se realizavam no campo do Sporting (actual CD Maxaquene) na Baixa, mas tal aconteceu muito mais tarde do que a época de que falamos aqui - fotos aqui
NB 3: O livro "Recordando o Passado" que nos foi referido por Paulo Azevedo, o autor da obra Photographos Pioneiros de Moçambiquenuma curta passagem sobre o padre diz que este se dedicou à agricultura antes de ter ido para a África do Sul e que essa actividade foi pouco próspera. Parece ser então mas uma descrepância entre "O Olho de Hertzog" e a realidade.
NB 4: Antonio Hohlfeldt e Fernanda Grabauska no artigo Pioneiros, presumo que baseados em Ilidio Rocha, escrevem que Dona Carlota era "filha de importante negociante do Transvaal e de Lourenço Marques, António de Paiva Raposo, e que se casou com Gerard Pott, sendo, pois, pais de Karel Pott". Ne entanto este pequeno texto é confuso (quem casou com Gerard Pott?, quem eram os pais de Karel Pott?), problema que foi também notado por Bruna Triana que diz que outras fontes dizem que a mãe de Karel Pott foi Angelina Moyasse mas disso também não tenho a certeza.
De facto vê-se no Geni que o holandês Gerard Pott fundador duma família mestiça em LM e falecido em 1928 não teve nenhuma Carlota entre as suas sete esposas, todas nativas (número da tese The Contraband King de Shiko Boxman). Nessa grande familia só há uma Carlota, que é filha de Gerard Pott (fundador) e de Sara vulgo Chinchingáne. Essa Carlota é meia-irmã de Karel (Monjardim) Pottum advogado falecido em 1953, mas terá havido outro Karel Pott que era o único neto de Gerard ainda vivo em 2014 segundo Shiko Boxman. Não é certo quando esta Carlota Pott terá nascido mas pelo que se vê nestes dados não está relacionada com a Dona Carlota do tempo do padre (estimando que em 1915 ela teria uns 50 anos de idade ela teria nascido em 1865, Gerald Pott nasceu c. de 1860 e terá chegado a Moçambique pouco antes de 1879, ano de nacimento do seu primeiro filho em Quelimane).
Disto tudo não sei se a ligação estabelecida no artigo Pioneiros entre Dona Carlota e algum dos Pott existiu ou não, mas se tiver existido não seria de estranhar pois pelo que se vê havia muitas ligações entre as famílias mestiças de LM mais destacadas desse tempo.
NB 5: No livro "O Olho de Hertzog" aparece outra Carlota referida nas págs 19 e 133, Carlota Fornazini de Sousa Teixeira, que seria co-proprietária com o marido Cândido de Sousa Teixeira dum bar Pavillion na praça 7 de março. Parecia não ser exactamente em relação a esse estabelecimento mas neste artigo tinha sido referido que Fornasini tinha sido o primeiro concessionário de kiosk = quiosk na praça. Como disse antes é difícil detectar no livro quando JP Borges Coelho adere totalmente à História ou quando se baseia nela para criar ficção.

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