Carros eléctricos: selecção e formação da companhia seguindo Salomão Vieira (1/6)

Voltamos ao tema dos carros eléctricos em Lourenço Marques (LM) ou Delagoa Bay, actual Maputo juntando mais informação que está no Boletim n. 9 do Arquivo Histórico de Moçambique de Abril de 1991 e num artigo de Salomão Vieira que em 1997, certamente na sequência da sua investigação escreveu o livro "Os Eléctricos de Lourenço Marques" que em parte está visível no google books.

FOTO 1
Linha de carro eléctrico em LM na Av. Aguiar, actual Samora 
vista da Baixa para a alta, ao lado do prédio Pott 

Esta imagem pode dar a sensação de "déjà vu" pois é uma variante de conteúdo reduzido da FOTO 1 que vimos aqui de Santos Rufino publicada em 1929. Aparece um carro eléctrico ao fundo junto ao ponto onde o declive na encosta para o planalto de LM aumenta. Mais acima não havia a actual praça da Independência e por trás viam-se as instalações da central geradora de electricidade para os carros eléctricos da Av. 24 de Julho.
Conforme Salomão Vieira (SV) escreveu, em Julho de 1900 foi publicitado o concurso para a concessão da rede de carros eléctricos / tramways de LM. Houve dois concorrentes e a proposta preterida foi a de John Horn Shaw, procurador dum JHC Henderson. O contrato inicial com o candidato seleccionado, Francisco de Mello Breyner, foi assinado em LM em Novembro de 1900. Só foi aprovado pelo poder central no final de 1901 e foi já em 1902 que foi celebrado o contrato definitivo com a Câmara Municipal de LM. Este era por 50 anos mas sob certas condições podia ser terminado pelas autoridades ao fim de 20. Não seria permitida nova concessão de "tramways eléctricos, a vapor ou de tracção animal para o transporte de passageiros e suas bagagens", o que seria a concorrência maior previsível nessa altura em que não se imaginaria o desenvolvimento que os automóveis particulares viriam a ter depois. 
Em Janeiro de 1903 foi criada em Londres a companhia Delagoa Bay Develoment Corporation (DBDC) de âmbito largo e incluindo a actividade relacionada com carros eléctricos. De acordo com o site delagoabayworld a DBDC fazia parte do conglomerado Henderson’s Transvaal Estates, Limited cujas activos maiores seriam minas de ouro na África do Sul e de carvão no Reino Unido. O presidente dessa "holding" e presumo seu accionista de relevo era John Crosby Aitken (JCA) Henderson, que não era exactamente o JHC Henderson preterido no concurso em LM de 1900 mas a similitude de iniciais é tão grande que devia ser a mesma pessoa. 
Voltando ao artigo de SV, durante 1903 (terá sido entre Maio e Junho de 1903 e no livro posterior SV deve ter sido mais preciso) F. Mello Breyner transmitiu o seu contrato de concessão à DBDC certamente a troco de boa maquia e SV mostra-se um tanto perplexo / irónico com o sucedido. Para mais dá a ideia de que SV não se apercebeu de que F. Mello Breyner tinha "curto-circuitado" o resultado do concurso pois o concorrente preterido em 1900 era já "a" DBDC (senão acho que a reacção de SV teria sido a de revolta ...). Segundo a Câmara as duas propostas ao concurso respeitavam o caderno de encargos e eram quase equivalentes tendo o contrato sido atribuído a F. Mello Breyner específicamente por ele ser "o que maior garantia e interesse oferece ao Munícípio" e no fim de contas ele usou o que seria essa vantagem para o bem público em proveito próprio. De notar que segundo Alfredo Pereira de Lima (APL) no livro "Edifício Históricos", D. Francisco de Mello Breyner era um "fidalgo de velha cepa" (seus antepassados aqui relativamente ao seu irmão Tomás) e tinha sido em 1888 Presidente da Câmara de LM (o primeiro?).
Ainda sobre esse assunto, Salomão Vieira questiona-se porque haveria no contrato de concessão cláusulas relativas à sua transmissão para outras entidades e particularmente para estrangeiras, estipulando elas que a Câmara tinha de as aprovar e que as leis e tribunais a aplicar ao contrato seriam portugueses. Parece claro que a Câmara estava de sobreaviso mas nas circunstâncias também nada podia fazer porque na adjudicação do contrato não podia prejudicar F. Mello Breyner por ser português e por suspeitar de que o seu interesse era simplesmente o de o trespassar depois a estrangeiros. E quando F. Mello Breyner concretizou a cedência da concessão à DBDC a Câmara tinha de ter em conta que qualquer acto inamistoso contra essa companhia podia, exagerando aqui um tanto, criar um "casus belli" do Império Britânico contra Portugal. 
Tal tipo de intermediação lucrativa não foi caso único pois Alfredo Pereira de Lima no livro "Pedras Que Já Não Falam" refere concessionários portugueses de terrenos na Catembe que em 1895 pretenderam transferir esse direito para estrangeiros. Mas esse trespasse teria grandes repercursões político / económicas internacionais o que levou o Governo Português a anular a concessão, tendo certamente que indemnizar os envolvidos. 
Portugal nessa altura estava extremamente dependente do investimento estrangeiro para poder desenvolver infraestrutura moderna mas essas negociatas da classe dirigente e a perda de soberania nacional que acarretavam contribuiram para o desprestígio da Monarquia. Mas deve também ser acrescentado que após queda do regime em 1910 os fundos nacionais para investimento continuaram ser escassos e que pelo menos na República actual a famosa "ética republicana" deixa muito a desejar.
D. Francisco de Mello Breyner era e continuou a ser depois um grande empresário local de que falei por exemplo neste artigo, o que mostra que pelo menos tinha raízes na terra e aí reinvestiu o que terá ganho na negociata dos carros eléctricos, pelo que no fim de contas o mal foi relativamente limitado.
Agora outra foto já conhecida mostrando um carro eléctrico circulando a meio da Av. Aguiar, actual Samora mais ou menos na posição do que aparecia na FOTO 1 e também cerca de 1929.

FOTO 2
Ao fundo o Prédio Pott / Avenida Buildings,
o que aparece do lado esquerdo = oeste na FOTO 1

No próximo artigo falarei sobre o início dos trabalhos na rede.

NB 1:
Salomão Vieira no seu artigo tentou perceber quem eram as companhias anglo / sul africanas com Delagoa Bay no nome e se haveria relação entre elas e assim escreveu: 
"Como a Delagoa Bay (DC) são inúmeras as companhias sediadas em LM cuja designação começa por Delagoa Bay ...  A titulo de exemplo: Delagoa Bay Agency Company Limited, Delagoa Bay Engineering Works Limited, Delagoa Bay Harbour Agency. 
Por sua vez a Delagoa Bay DC aparece ... com tantas designações que somos tentados a pensar que teria havido mais que uma entidade a gerir o sistema dos eléctricos: Delagoa Bay Electric Tramways (era o que estava no carro de regas), Companhia dos Tramways Eléctricos, Empresa dos Tramways Eléctricos, Companhia dos Eléctricos. empresa dos tramways, Direcção dos Tramways Electricos, Companhia dos Carros, Companhia de Tracção Eléctrica (na minha opinião esta devia ser da geradora)."

FOTO 3
Cerca de 1929 este carro tinha escrito Tramways Eléctricos de LM, mais uma variante

Em relação a companhias com DB no nome eu também tinha tido dúvidas e passo a passo tinha chegado a conclusões equivalentes às de SV como escrevi neste artigo: "A  Delagoa Bay Lands Syndicate (DBLS) era apresentada como uma companhia de investidores sul africanos representados em Moçambique pelo menos cerca de 1920 pelo empreendedor Leão Cohen e foi a primeira proprietária do Hotel Polana. Apesar do mesmo DB que se referia ao nome da cidade, suponho que a DBLS não era a mesma companhia da DB Agency - Agência Delagoa Bay (vimos a sua sede na Baixa aquipor essa ser uma sociedade por acções sediada em Londres. 
Existia também no panorama comercial da cidade a Delagoa Bay Development Corporation (DBDC), concessionária dos eléctricos, cujo Director Geral em 1907 era A. L.N. Bonn e também a Delagoa Bay Water que era subsidiária da DBDC.". 
neste artigo eu tinha escrito que não sabia a relação entre estas firmas com DB no nome pois podiam simplesmente partilhar o nome da cidade onde exerciam a actividade:
"Delagoa Bay Land's Syndicate - parece-me mais do ramo imobiliário pois tinha os terrenos da Carreira de Tiro e Sommerschield e construiu o Hotel Polana. 
Delagoa Bay Agency - era comercial e ligada a serviços nos transportes e parece-me era uma firma separada.  
Delagoa Bay Development Corporation/Company que foi a concessionária da água, dos eléctricos e dona do Capitania Building. 
Delagoa Bay and East African Railway - for o concessionária da linha de caminho de ferro até à fronteira da África do Sul. Foi nacionalizada em 1887 e era dirigida pelo Coronel McMurdo."

NB 2: 
Ainda segundo o acima referido artigo do site delagoabayworld, em Março de 1905 a DBDC emitiu dívida para o financiamento da expansão da sua concessão de fornecimento de água a LM. Segundo o prospecto, os seus interesses em Moçambique eram para além da companhia das águas (water works, ver aqui a sede e aqui a rede na Ponta Vermelha, aqui e aqui diz-se que a Câmara tentou rescindir o contrato de concessão em 1917 mas o que aconteceu nâo sei), a dos eléctricos como temos visto e tinha também investido em acções da companhia dos telefones, no prédio Capitania Building(s) que tinha acabado de construir e em terrenos. Era a já mencionada Henderson’s Transvaal Estates, Limited que garantia a dívida da DBDC.
Como disse algures nesta série em 1910 a DBDC tomou o controlo da concessão do fornecimento de energia eléctrica à cidade. Em 1947 e tendo essa concessâo expirado os Serviços Municipalizados de Água e Electricidade (SMAE) adquiriram à DBDC os equipamentos que estavam operacionais. A concessão dos eléctricos tinha terminado anos antes de 1936 tendo a exploração sido continuada até esse ano pela Câmara e presumo que a da água tivesse terminado antes de 1947. O Capitania Building devia estar decrépito e/ou abandonado e deve ter sido vendido e os seus outros bens também e por isso a companhia DBDC foi extinta em 1951 e algum dinheiro foi pago aos acionistas como se vê aqui:
DBDC extinta em 1951
Como se pode ver aqui a DBDC dos eléctricos foi extinta no início dos anos 50 enquanto que a DB Agency que operava nas actividades portuárias continuou por mais tempo.

NB 3:
Contribuindo para o "fog of war" sobre o tema diz este interessante artigo de Maria Eugénia Matta que o verdadeiro fundador da DBDC foi Baltazar Freire Cabral ligado ao BNU e com sócios ingleses. Em termos de nomes tal corresponde à escritura da DBDC mas em termos de preponderância dos envolvidos à primeira vista parece que não.

NB 4:

Este livro no google "The International Impact of the Boer War, Keith M. Wilson" tem também grande detalhe sobre a situaçâo económica e política de LM desde 1890 até pelo menos ao período depois da instauração da república em 1910 "
Este livro no google "The Oldest Ally: Britain and the Portuguese Connection, 1936-1941,  Glyn Stone" aborda também esses temas.

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