Novas avenidas e nascimento do Bairro Central/Alto Maé - nova foto e os textos de Lisandra Mendonça (1/2)

FOTO 
Vista para poente ao centro de Lourenço Marques

A FOTO foi carregada do site da Northwestern University e é aqui usada com a devida vénia. O local a partir das árvores é logo acima do Jardim Público, que faz a transição entre a Baixa e a alta da cidade neste eixo inicial de desenvolvimento na "vertical" (ao estuário) da urbe depois de ter sido atravessado o pântano. Pela posição penso que se vê à direita o Consulado Britânico pelo que esta foto será de perto de 1895, data da sua conclusão. Não se vê na traseira a varanda em arcada dado que com as duas laterais só foi colocada em 1904 (a varanda à frente existiu desde o início, segundo o site room for diplomacy). À esquerda = a sul da Igreja Paroquial, de que se vê a traseira virada a nascente, vê-se pelo menos a abertura feita para a Av. D. Manuel (uma pequena parte dela foi depois Rua da Rádio e principalmente Av. 5 de Outubro, actual Josina).
Muita da informação que se segue neste artigo é de Lisandra Franco de Mendonça 
que nos últimos anos fez um profundo estudo sobre a Lourenço Marques do passado no âmbito da sua tese de doutoramento (carregar aqui) complementando-a com um artigo (carregar aqui) intitulado "As Obras de Saneamento e o Traçado Das Primeiras Avenidas em Lourenço Marques".

FOTO com marcas (clique para aumentar)
Ver legenda dos mapas em baixo para os pontos principais. Outros pontos:
Castanho claro: pântanos da Baixa e Maé, o primeiro em drenagem mais adiantada
Verde claro: hangar das oficinas dos Caminhos de Ferro (CF) sobre antigo pântano
Azul normal: Consulado Britânico em construção, 

vê-se a fachada da traseira virada a nascente = leste
Castanho escuro: Quartel do Alto-Maé de entre de 1889/1893
Verde escuro: grande edifício que penso foi uma missão anglicana no Alto Maé
e ficava da parte de cima da Av. 24 de Julho

Roxo (canto inferior direito): Estrada da Ponta Vermelha

Mostro agora dois mapas feitos com intervenção do major António José de Araújo, o engenheiro militar que iniciou a construção do CF para Pretória e que veio a dar nome à actual Rua Bagamoyo (mas que não fez parte da expedição da Obras Públicas de 1877). No plano à esquerda, a traço vermelho fino estão as suas ideias de como as novas ruas da cidade se iriam se sobrepor às pré-existentes que aparecem com traço acinzentado. No mapa à direita de cerca de oito anos depois e muito mais alargado estão os planos desenvolvidos em torno dessas ideias iniciais e que salvo alguns pormenores (algumas praças que não foram feitas) e modificações ulteriores (a praça da Independência que foi aberta em 1940, duas das avenidas que foram prolongadas até junto ao recinto do porto) foram implementados e produziram a cidade actual.

PLANO de 1887 E MAPA de 1895 DE A. J. ARAÚJO
Preto: limite norte do burgo original, para sul da linha de defesa e do pântano
Carmesim: plano da Av. D. Carlos, actual 25 de Setembro, em parte sobre 
a Rua da Linha mas na maioria sobre o pântano após o seu aterro
Amarelo: antiga Av. Aguiar, actual Samora. Tinha anteriormente sido por aí
um caminho para atravessar o pântano
Azul escuro: Av. D. Manuel, actual Josina
Laranja e branco: antiga e nova Estrada do Lidemburgo, 
saída da cidade para a África do Sul
Azul claro: artéria pré-existente de ligação entre as duas Estradas do Lidemburgo
Rosa: frente do Hospital, das primeiras grandes construções fora da ilha
Quadrado creme: Igreja Paroquial, construída entre 1878 e 1883
Cinzento: Av. Central, actual Marx. Tinha sido outra t
ravessia do pântano.
Vermelho grosso: Av. Gen. Machado, actual G. Popular
ainda não incluída no primeiro esboço (PLANO)

Comparando os dois desenhos parece-me que no plano à esquerda (
retirado da tese de Lisandra) a Av. D. Manuel estava prevista ser um pouco mais para baixo = sul do que foi desenhado no MAPA de 1895. O que veio a ser a actual Av. Manganhela, que no mapa à direita foi colocada mesmo no fundo da encosta junto ao limite norte do pântano na zona do jardim, também não aparecia no plano à esquerda. Dá assim ideia que em vez das duas avenidas horizontais (paralelas ao pântano e ao estuário) previstas inicialmente para o espaço disponível entre o pântano e o nível do Hospital e Igreja, se decidiu depois colocar três avenidas com a respectiva redestribuição. Noto também que só no mapa se pode ver a Av. General Machado que acabou por ser uma via estrutural na cidade saindo de junto à zona do Porto até à alta da cidade, atravessando o subúrbio e chegando ao Aeroporto.
A FOTO é assim importante por quatro motivos pelo menos e relacionados com um período crítico do desenvolvimento da zona de transição entre a Baixa e a alta da cidade:
1.  Mostrar o início da passagem do traçado pré-existente para o de quadrícula ou retícula na zona da cidade acima do jardim e onde se pode dizer que começa a cidade alta. Vemos assim na foto a Av. D. Manuel já aberta e como ela iria ficar desalinhada com a Igreja Paroquial e com o Hospital - e vice-versa -  que (também) por isso acabarão mais tarde por ser demolidos. Segundo Lisandra estes dois edifícios foram construidos dentro dum plano hexagonal cujo centro ficaria para a zona dos depois SMAE (de autoria do Eng. Ferreira Maia da expedição das Obras Públicas) mas que entretanto foi substituído pelo plano de quadrícula (Eng. A.J. Araújo) mas tal não é muito evidente. 
2. Mostrar a posição estratégica do Quartel do Alto Maé protegendo a nova cidade de investidas pelo interior (a ocidente). De notar que a Baixa do lado ocidental tinha a protecção natural da zona pantanosa que não permitia avanços rápidos e compactos de forças rebeldes. A sua construção iniciou-se em 1887, em 1891 foi parcialmente ocupado e em 1895 foi concluido pelo que a foto deve mostrá-lo pelo menos já próximo do estado final.
3. Mostrar (nas manchas esverdeadas) que para lá das traseiras do Hospital crescia o primeiro povoamento fora da ilha inicial que tinha ficado saturada. A zona mais próxima deve ser actualmente parte do bairro Central e a parte mais afastada parte do bairro do Alto-Maé mas parece-me que inicialmente era toda chamada Alto Maé. Penso que se vê casas também depois do Quartel que marco com mancha verde mais escura. A localização perto do Hospital em termos de deslocação para o centro comercial da cidade era a melhor mas como Lisandra explica, esta zona sofria os efeitos nocivos do pântano que lhe ficava relativamente próximo. Note-se que o pântano para lá das traseiras do Hospital (pântano do Maé) era mais largo do que para cá da sua frente (pântano da Baixa) e foi este o primeiro a ser saneado. Por isso os terrenos neste bairro Central deviam ser mais baratos, a zona foi habitada pelas classes menos abastadas e as construções foram na maioria de madeira e zinco e eram muito mais simples que as contemporâneas da Ponta Vermelha e Polana (ver um exemplo de cerca de 1900). 
4. Mostrar o que se passava a sudoeste da cidade no prolongamento da Baixa para montante do estuário e onde começava o pântano do Maé. Viam-se aí na orla ocidental da ilha inicial algumas construções do porto e caminhos de ferro. Um pouco antes disso está a abertura para a futura Av. General Machado (marcada a traço vermelho grosso na foto e no mapa de 1895) mas não se consegue ver na foto se ela tinha já subido a encosta para norte e atingido o nível da nova Av. D. Manuel. De facto vimos aqui no mapa de 1906 (zona da circunferência castanha) que ela inicialmente teve um intervalo não construído entre o pântano e a encosta.
Em baixo temos textos muito detalhados de Lisandra Franco de Mendonça sobre o desenvolvimento das novas avenidas abrangidas nos mapas. Do seu artigo, com pequenos cortes, esta é a informação mais importante principalmente com as datas de construção (a partir de 1887 e TODAS NOS ANOS DE 1880): 
"(1) a Av. Aguiar (atual Samora Machel), a avenida/alameda mais ampla da cidade, principiada em 1887 passou a delimitar, a poente, o Jardim actual Tunduru e foi calcetada recebendo para cima de duas centenas de árvores; 
(2) a General Machado (atual Guerra Popular), principiada em 1887, no seguimento da praça da Estação e que após a demolição do baluarte “31 de Julho” e da linha de defesa, foi nivelada, calcetada e arborizada; 
(3) a Augusto de Castilho (atual Vladimir Lenine), que marcava o limite a nascente da malha urbana foi principiada junto à velha cerca em 1888; 
(4) a Fernão de Magalhães, principiada em 1888; 
(5) a Álvares Cabral (atual Zedequias Manganhela), principiada em 1888, seguindo da avenida Augusto Castilho para poente sobre o antigo esgoto que marcava o limite sul do Jardim; 
(6) a D. Carlos (atual 25 de Setembro), iniciada em 1888 entre a Av. Aguiar (actual Samora) e a Augusto de Castilho (actual Lenine);
(7) a D. Manuel (atuais rua da Rádio e avenida Josina Machel), iniciada em 1 de julho de 1888, estava regularizada até ao Quartel do Alto Maé em dezembro de 1888; e 
(8) a Henrique de Macedo (atual avenida da Zâmbia), iniciada em 1888 a poente-norte do Quartel do Alto Maé, entre as avenidas Pinheiro Chagas (atual Eduardo Mondlane) e D. Manuel (atual Josina Machel)."
Continuando o texto de Lisandra Franco de Mendonça: 
"As obras nas avenidas, todavia, prosseguiram com enormes dificuldades. Uma grande parte dos terrenos na área afeta estavam aforados, obrigando a pesadas indeminizações aos enfiteutas. As dificuldades técnicas e financeiras no acesso a materiais de construção justificaram também que grande parte das ruas e avenidas permanecesse até ao final do século XIX com piso em areia, à espera de macadamização, condicionando a edificação nos novos quarteirões (Relatório de 1901)."
Da tese de Lisandra Franco de Mendonça, página 127 do pdf: "A falta de condições para concluir as obras nas novas ruas e avenidas, deixadas com o piso em areia, à espera de macadame, condicionou a edificação nos novos quarteirões às portas da velha cidade, vista a dificuldade em transportar materiais de construção naquelas condições (Relatório de 1901)."

NB 1: Na FOTO para o fundo vê-se a Av. D. Manoel e como o consulado britânico não estava ainda concluído ela será de cerca de 1895. 
O que quererá Lisandra dizer no ponto 4.(7) em cima com essa Av. D. Manoel estar "regularizada até ao Quartel do Alto Maé em dezembro de 1888"?:
- que o seu terreno natural tinha sido nivelado e compactado e as bermas e passeios bem definidos (mas mesmo assim haverá muitos graus possíveis para estes termos)? 
- que teria sido macadamizada (definição no priberam: "sistema de pavimento ou calcetamento de ruas ou estradas por meio de brita e saibro que se recalca com um cilindro") aqui o método é mais bem explicado: a fundação da estrada é escavada com cerca de 20 cm de profundidade (deixando-se valas laterais para escoamento da água), nessa "caixa" são colocadas camadas de pedra que são sucessivamente compactadas por rolo compressor ou compactador ou cilindro. Ao fundo coloca-se a pedra mais grossa (brita) para constituir uma camada de 10cm de altura e por cima dela colocam-se duas camadas de pedra gradualmente menor ficando cascalho fino por cima. 
A FOTO não permite esclarecer bem que tipo de pavimento tinha a avenida e mesmo nesta sua foto mais próxima vê-se que o piso estava compactado e que os lancis dos passeios estavam feitos, mas também não sei dizer se aí estava macadamisada ou não (parece que sim mas...). Ver mais aqui sobre os planos de desenvolvimento dessa zona.
Diz Pereira de Lima que a rua NS da Conceição na Baixa foi macadamizada em 1892 (mas não sei se foi ela a primeira em LM com esse tipo de pavimento) e que tal só aconteceu em 1904 à D. Carlos/República/25 de setembro e que a aplicação de asfalto para a cobertura superior só surgiu na cidade em 1914. 
Lembro também uma foto da Av. Aguiar em trabalhos e onde aparecia um cilindro junto à esquina a sudoeste do jardim. Devia então estar-se a fazer o macadame e como ela é dita ser de 1895 essa data coadunar-se-ia com operação semelhante para a Rua NS da Conceição em 1892. Em 4.(1) Lisandra diz que a "Av. Aguiar ...principiada em 1887 ... foi calcetada"  mas não se fica a saber em que ano foi calcetada e se isso seria o mesmo que macadamização que era um processo mais mecânico. 
Volto a este tema no artigo que dá sequência a este.

NB 2: No plano de 1887 vê-se os lotes de terreno compactos que rodeavam as duas estradas de Lidemburgo. Pode aí ver-se que a abertura da D. Manuel (linha azul escura) da direita para a esquerda (de que só desenhei a primeira parte) cortou muitos deles quase a meio e na diagonal.
Visão da evolução na década seguinte à da FOTO no texto de Lisandra Franco de Mendonça: 
"Até ao final da primeira década do século XX, a cidade pouco tinha crescido. Para além da Baixa antiga, a ocupação dos quarteirões limitava-se à área entre as avenidas Augusto de Castilho (atual Vladimir Lenine) e General Machado (atual Guerra Popular). A poente da General Machado, entre as avenidas D. Carlos (atual 25 de Setembro) e Fernão de Magalhães, os quarteirões, desenhados sobre o pântano do Maé, permaneciam desocupados. A edificação continuava para noroeste, no Alto Maé, ocupado pelas classes menos favorecidas e onde prevaleciam as habitações em madeira e zinco. .... A oeste do Quartel do Alto Maé continuaram a existir áreas pantanosas pelo século XX adentro, tornando insalubre e pouco valorizado o bairro a oeste da avenida Central."

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