Francisco Ferrão, Aires de Ornelas e Moçambique no tempo da monarquia

Mais umas curiosidades charadescas sobre as altas esferas estatais e empresariais de Moçambique do passado e suas personalidades, tendo como ponto de partida neste caso o desenho, foto ou postal seguinte que se encontra à venda no site delcampe,


FOTO 1
Lourenço Marques ... 1914
Neste objecto a azul está manuscrito o nome "Francisco Ferrão de Castello Branco" que não tenho a certeza se era a pessoa de que se mostrava o perfil mas pela FOTO 2 que se vê mais em baixo talvez fosse. No anúncio no site estava escrito "Portugal Lourenço Marques África silhouette efígie Francisco Ferrão de Castello Branco Governador Moçambique". Como fácilmente se pode ver aqui esse nome não consta da lista de Governadores-Gerais, que particularmente em 1914 foram primeiro Augusto Ferreira dos Santos e depois o General Joaquim José Machado, por isso a primeira pista na charada é essencial mas pouco concreta (e Francisco Ferrão também não foi Governador-Geral mais tarde).
O elemento mais completo que encontro sobre Francisco Ferrão é um relatório de 1927 que foi trabalhado pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto em 2009. Nele vê-se o seguinte: Os Serviços dos Negócios Indígenas e a recolha de informação etnográfica: ...  A Reforma Administrativa de 1907 tinha criado um Secretário dos Negócios Indígenas e sobrepô-lo a uma estrutura preexistente de controlo e administração da emigração para a África do Sul. O primeiro Secretário dos Negócios Indígenas foi Francisco Ferrão de Castelo Branco, que preferia chamar-se só Francisco Ferrão. Era jurista, e veio aparentemente ainda muito novo, com cerca de 25 anos (?), sob o mandato do Governador-Geral, A. Freire de Andrade. Pediu informações sobre as actuais províncias de Maputo e Gaza e fez um inquérito na zona dos Prazos, pondo a nu alguns abusos dos arrendatários. Estes não gostaram das acusações e responderam, fazendo provavelmente pressões através do lobby colonial em Lisboa, para que a instituição fosse abolida ou Ferrão se demitisse. Ferrão, irmão do Conde da Ponte (neste artigo podemos ver um seu ascendente de antiga família fidalga mas não consigo confirma que fosse irmão do conde), demitiu-se possivelmente ainda em 1909, e entrou depois como sócio na empresa Breyner & Wirth que era agente da WNLA (Wenela) em Moçambique (nota que apresento imediatamente a seguir mas é um tanto incompreensível). Entre 1910 e Outubro de 1914 não houve Secretário dos Negócios Indígenas, continuou apenas a Intendência de Emigração, a estrutura já referida que acompanhou a emigração para a África do Sul e para as Rodésias, São Tomé, etc. O decreto 953 de 15 de Outubro de 1914 recriou o Secretariado e dois dias depois António Augusto Pereira Cabral, que se tinha notabilizado com um trabalho sobre os africanos de Inhambane em 1910, foi nomeado Secretário. Cabral, depois com o título de Chefe da Repartição Central dos Negócios Indígenas chefiou os Negócios Indígenas durante 21 anos até 1935.
Nota (a referida em cima, um tanto incompreensível): Botte, 1985/6, III: 1, 133 e passim sobre a actividade na empresa Breyner & Wirth. Sobre a demissão, jornais poderiam talvez dar algumas dicas. O que é apresentado aqui é uma interpretação hipotética dos dados. Ribeiro 1940 não o refere, nem tão pouco aparece no Cod. 2531 depois de 1907. É possível que o próprio Secretário do Governo, ao tempo António Sousa Ribeiro, era contra Ferrão e o omitiu de propósito do texto do Anuário de 1940.
Fica-se daqui a saber que o Dr. Francisco Ferrão (FF) foi entre 1907 e 1909 Secretário dos Negócios Indigenas em Moçambique, um cargo elevado na Administração Pública, sendo nessa altura Freire de Andrade o Governador-Geral. Isso não é novidade no HoM pois neste artigo tinha aparecido a foto seguinte desse período:


FOTO 2
Castanho: Francisco Ferrão de Castelo Branco, Secretário dos Negócios Indigenas
Vermelho: Governador-Geral de Moçambique, Freire de Andrade
A FOTO 2 confirma assim as datas e o cargo de FF no governo de Freire de Andrade (pode ver-se aqui outra referência ao seu trabalho em 1909 no governo)
Puxando um pouco mais o fio à meada, neste site vê-se que foi vendido em leilão - por EUR 360 - um lote com espólio de "Francisco Ferrão de Castello Branco" com o texto acompanhante seguinte: 
- 6 Álbuns com mais de 500 fotografias de Moçambique, Portugal e Europa, da 1ª parte do séc. XX
- Maria Amália Vaz de Carvalho, 5 Cartas de correspondência com a esposa de Francisco Ferrão de Castelo Branco (HoM: MAVC foi uma intelectual portuguesa que não parece ter tido relação especial com África)
- Ayres de Ornellas, 15 Cartas de correspondência para Francisco Ferrão de Castelo Branco (Secretário dos Negócios Indigenas em Moçambique).
Por sorte esse anúncio facilita-nos o conhecimento do montinho de cartas que Ayres de Ornellas (Aires de Ornelas) enviou a Francisco Ferrão, destacando-se até uma de quando ele estaria ainda no posto acima referido em Lourenço Marques (LM), actual Maputo.


FOTO 3
Canto inferior esquerdo: envelope endereçado a FF parece que em 1909, 
ao tempo da monarquia, presumo que escrito pela mão de Aires de Ornelas
Penso ainda que se pode relacionar outras fotos que estiveram à venda no leilão com essa informação prévia. No conjunto seguinte, a castanho insiro no canto superior esquerdo a imagem de Francisco Ferrão da FOTO 2 e circundo a verde e azul claros duas fotos "novas": 


FOTO 4 (clique para aumentar)
Castanho claro: nas fotos "azul claro" e "verde claro" 
e a partir da FOTO 2 parece-me estar Francisco Ferrão 
Branco: deve ser Aires de Ornelas, o correspondente de Francisco Ferrão da FOTO 3
Outras cores: ver correspondência em baixo na FOTO 6
A partir da foto "azul claro" podemos também intuir que Francisco Ferrão deve ter iniciado o curso teológico - jurídico (direito) da Universidade de Coimbra em 1901-1902 (as fotos de grupo serão de encontros de alunos à medida que os anos foram passando) e por isso em 1907 ele devia ser jurista recém formado e bastante jovem como diz o relatório de 1927 mostrado em cima. 
Quanto a Aires de Ornelas é personagem influente da história de Moçambique sob administração portuguesa e no HoM por exemplo ele aparecia noutra foto do artigo da FOTO 2. Depois de ter sido quadro militar em Moçambique nas campanhas iniciadas em 1894 (aqui sentado à direita), foi em 1905 Governador do Distrito de LM mas por pouco tempo tendo a partir de 1906 sido nomeado como Ministro da Marinha e do Ultramar em Lisboa e como tal em 1908 acompanhou o Príncipe Real na inédita visita ao território africano. Aires de Ornelas aparecia também de óculos e bigode numa foto de 1908 deste artigo e como indiquei aí estava mais gordinho do que tinha sido antes, tal como na FOTO 5 seguinte tirada na mesma visita e publicada na revista Ilustração Portuguesa:


FOTO 5
Branco: Ministro Aires de Ornelas à civil ao lado do Príncipe Real
e com militares, em visita ao campo da batalha de Marracuene
É por saber que Aires de Ornelas engordou um tanto depois de passar à vida civil, que assumo que seja ele que esteja na foto "verde claro" da FOTO 4 e onde me parece que está também Francisco Ferrão, pois não esqueçamos que essa foto faz parte do espólio deste. Ela terá sido tirada em 1908 aquando da estada em LM em 1908 de Aires de Ornelas e num local que é o mesmo da FOTO 2 e pode-se comprovar com a FOTO 6 que se trata do bem conhecido palácio do Governador e por onde Francisco Ferrão se devia mover à vontade (aqui outras imagens):

FOTO 6
Três marcas similares às da foto "verde claro" da FOTO 4, embora possam ser
em posição diferente em torno do palácio (residência do Governador)
A República em Portugal foi implantada em 1910 e Aires de Ornelas que era convicto monárquico não aderiu ao novo regime (não virando a casaca como muitos outros) embora tivesse continuado na arena pública. 
Quanto a Francisco Ferrão, como vimos no relatório de 1927, em 1909 tinha-se demitido do funcionalismo público e passado para o sector privado em LM, cidade onde devia continuar em 1914 como indicará a FOTO 1. Como se diz em cima a empresa Breyner & Wirth para onde foi (em 1909 ou depois, mas quando?) representava a WNLA, a organização de patrões sul-africanos que recrutava em Moçambique trabalhadores para o Transvaal e cujo interlocutor principal no Estado Português era a Secretária dos Negócios Indigenas. Quer dizer Francisco Ferrão passou os contactos e conhecimentos adquiridos no funcionalismo público para o sector privado e não sei se nessa altura haveria algum periodo de "nojo" para tais transferências. 
Este artigo com dados de MH Bramão confirma que Francisco Ferrão entrou para sócio da Breyner & Wirth mas não esclarece quando, se foi logo em 1909 ou pouco ou muito depois. Indica também que por volta de 1969 presumíveis familiares de Francisco Ferrão seriam ainda sócios dessa empresa (D. Helena Ferrão, Álvaro Ferrão de Castelo Branco, Manuel Ferrão de Lencastre e João Ferrão de Castelo Branco) sendo o último um dos gerentes em África, pelo que visívelmente a sua família continuou ligada a Moçambique.
Num à parte e no que respeita ao leilão do espólio de Francisco Ferrão, pergunto-me éticamente quem tem coragem de vender o que lhe foi deixado por antepassados, que era estritamente pessoal e cujo valor monetário não deve ser relevante para assegurar a sobrevivência de alguém. Também me questiono, mas a nível de geração de conhecimento, quem terá comprado esse lote e se estará disposto / preparado para aproveitar e tornar públicos os elementos históricos que parece conter (e de aqui usei só o que estava visível no anúncio). Por exemplo acho que seria relevante para a História saber-se de que tratavam as cartas enviadas por Aires de Ornelas a Francisco Ferrão, dado que Ornelas seria uns 16 anos mais velho do que Ferrão e tinha (tido) posição hierárquica no Estado muito superior e que na relação profissional entre eles no Estado havia o Governador-Geral.

NB: O 1º Tenente da Armada, 9º Conde da Ponte, D. Manuel Maria José Ferrão de Castelo-Branco foi Ajudante de Campo do Ministro Aires de Ornelas pelo menos em 1907 durante a visita do Príncipe Real a Moçambique, o que era assim mais um ponto a ter em conta no relacionamento entre Aires de Ornelas e Francisco Ferrão. Mais tarde o Conde da Ponte foi presidente da Companhia Nacional de Navegação e condecorado..

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