Demarcação de fronteira com a ZAR em 1890 - caminhos de expedições na carta de Jeppe (11)

Continuo a seguir a comissão de demarcação da fronteira entre Portugal (Moçambique) e a ZAR (Zuid-Afrikaansche Republiek ou SAR dos boer) de 1890, chefiada por Freire de Andrade (FA) e Von Wielligh e a explorar o que se passava um pouco à volta nessa época pioneira. 
No artigo anterior vimos que se tinha chegado ao campo 26 para se construir o marco T, o último que foi erigido. No relatório da comissão portuguesa FA informa que a 1 de agosto de 1890, quando estavam nesse campo já a norte do rio Singuetsi / Singwedsi, Von Wielleigh lhe veio dizer que não lhe parecia necessário que a sua comissão seguisse até ao fim da fronteira no Pafuri (ver aqui no google maps). A razão técnica dada foi que sendo a fronteira em linha(s) recta(s) e o terreno um plateau com pequenas ondulações era fácil defini-la. 
Disse ainda Von Wielleigh que como não se sabiam as coordenadas do Pafuri, para se orientar correctamente a linha de fronteira tinha de se ir primeiro até essa extremidade da linha para depois se fazer a marcação voltando de lá para o marco T (a palavra marcação presta-se a confusão pois pode ser numa carta mas penso que aqui quer dizer com marcos físicos no terreno). Isso demoraria tempo e os boer desde o rio dos Elefantes que tinham esperado em vão por carretas de reforço de mantimentos e por isso não podiam continuar. Note-se que carne podia ser caçada e peixe "dinamitado" nos rios (embora segundo FA tal fosse rareando à medida que foram progredido para norte) mas víveres para acompanhamento escasseavam nessa região e isto aplicava-se tanto aos membros da comissão sul-africana de origem europeia como aos seus auxiliares africanos (na maioria suázis sendo nessa altura a Suazilândia um protectorado da ZAR).
A comissão portuguesa que também pretendia partir do Pafuri para a costa e não estaria interessada em se demorar muito nessa zona voltando do Pafuri ao marco T e erigindo novos marcos, por "sentido de missão" aceitou continuar sózinha. Como tal poderia ser considerado estranho a nivel internacional FA sublinha no relatório que a partida dos boer não foi motivada por disputa entre as duas partes.  
FA não diz qual foi a solução para evitar a ida e volta entre o marco T e o Pafuri mas parece-me ter sido esse o motivo para não se ter colocado aí marcos. Como Van Wielleigh tinha dito, se eles fossem colocados à ida com base numa estimativa errada das coordenadas do Pafuri esses marcos ficarem desalinhados da "boa" linha e para corrigi-la tinha de se fazer um ângulo e a fronteira deixaria de ser a pretendida recta. Por outro lado os marcos serem colocados à vinda do Pafuri para o marco T era o caminho e tarefa que a comissão portuguesa queria evitar. Assim deve ter sido acordado entre FA e Von Wielleigh que a comissão portuguesa iria medir as coordenadas ao Pafuri, o que permitiria fazer cartas com a fronteira correctamente definida, mas que a sua linha recta ficaria virtual (até novas ordens) nessa secção final de cerca de 89 km de comprimento ("achismo" HoM). Óbviamente que a consequência de não terem sido colocados marcos foi que aí a linha de fronteira (e ela ser em recta ou não era irrelevante porque não haveria segundas referências mesmo junto aos dois extremos) ficou imperceptível para quem não tivesse instrumentos geodésicos e dado que ela era definida artificialmente sem respeitar obstáculos naturais 
O trabalho das duas comissões em comum no terreno terminou então por volta de 1 de agosto de 1890 pelo que durou quase 2 meses dado que a primeira reunião tinha sido feita perto de Ressano Garcia a 2 de junho de 1890. 
Como tinha dito antes parece ter havido ligação próxima entre a elaboração da carta de Jeppe de 1892 disponibilizada pela Universidade de Illinois  e a demarcação de 1890. Para além do facto de ser a fronteira resultante a razão principal para a produção da carta e de termos visto no artigo anterior que ela mostra o caminho seguido e os pontos de paragem (campos) pelo menos da comissão boer, veremos agora outro pormenor dessa possível relação:


CARTA DE 1892 COM A FRONTEIRA MARCADA
T: último marco nos Libombos
Verde claro: caminho de regresso da comissão (escrito em alemão)
Carmesim e vermelho: caminho e campos da(s) comissão / comissões
ao longo da planície na base a oeste dos Libombos
Preto: linha de fronteira até ao marco T (o último que foi erigido 
e que ficou na margem norte do Singwedsi)
A verde claro temos então um "caminho de regresso da comissão" que só pode ser a da ZAR dado que a portuguesa seguiu do marco T para o Pafuri e a partir daí os três membros restantes separam-se em explorações individuais a caminho da costa. 
Esta carta mostra então que depois de chegar ao campo 26 na margem norte do rio Singuetsi / Singwedsi / Singuedeze / Shingwidizi (que seria próximo do campo 26 português que vimos na TABELA esteve à latitude 23°13'24.0"S), que a comissão da ZAR voltou para trás até ao campo 25 e daí seguiu para sudoeste afastando-se dos Libombos. Presumo que tenham seguido algum tempo juntos mas depois Erasmus deve ter ido para Lydenburg onde residia, os outros especialistas para a sua base em Pretória e os auxiliares para a Suazilândia. 
Vemos também nessa parte da carta de Jeppe registados os caminhos de ida e volta de Berthoud em 1891 (o ano entre a marcação da fronteira e a publicação da carta). Berthoud era um missionário suíço que andou por essas paragens mas não me parece que tal fosse de interesse muito alargado pelo que presumo que o motivo para Jeppe mostrar tais caminhos seria o de indicar a potenciais viajantes ocidentais (e compradores da carta) os que tinham sido testados anteriormente com sucesso.
Deve ter sido também com esse objectivo que Jeppe mostra os percursos completos individuais de Elvino Mezzena (EM) e Matheus Serrano (MS), o primeiro desde o ponto em que se emancipou da comissão de fronteira e o segundo desde o ponto em que se separou de FA já depois do fim dos trabalhos principais no Pafuri. A inclusão destes dois percursos e com tanto detalhe na carta reforça também a ideia de que Jeppe teve contacto estreito com os elementos da comissão:


CARTA DE 1892 a leste do Xai-Xai perto da costa do Índico
Azul: parte final do percurso de Matheus Serrano
Vermelho: parte final do percurso de Elvino Mezzena

Castanho: povoação principal de Gungunhana / Ngungunyane
MS pelo que se vê nesta parte da carta veio ao longo do rio Chengane (ou Chengana aqui, o nome alternativo na carta Luize parece que desapareceu) que é afluente do rio Limpopo  e EM veio ao longo do Limpopo (aqui e sobre o nome Inhampura ver a NB em baixo). Passaram os dois separadamente por Manjacaze onde como está marcado ficava o kraal - povoação principal do régulo / soba / imperador Gungunhana, que se bem me lembro era um local onde temporáriamente a corte se instalava e que era (sempre) chamado Manjacaze. Pelas coordenadas da carta esse "kraal" principal estava aqui o que é relativamente perto da actual Manjacaze pelo que deve ter sido esse o último desses locais. EM depois seguiu daí para LM, actual Maputo e MS para o lado de Inhambane, zona onde se voltou a encontar com Freire de Andrade, o chefe da comissão portuguesa. Como imagino que poucos no mundo estivessem interessados em MS e / ou EM ou nas suas explorações repito que penso que elas aparecem na carta como informação sobre caminhos viáveis na área por ela coberta. 
Noutro artigo falarei mais específicamente dos acampamentos da comissão portuguesa e voltarei às fotos de 1890.
NB: sobre o Inhampura cerca da página 55 do relatório aparece o seguinte como fazendo parte dum relatório do comerciante João Albasini: «A bahia do Inhampura é muito própria para o negócio para o interior por causa dos transportes ; uma escuna pôde ir 200 milhas pelo rio acima, mas a distancia a que podem chegar pequenos barcos ignora-se." Isso só pode ser relativo a eese rio pelo que em 1861 Inhampura talvez fosse mais usado que Limpopo.

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