Leitura crítica de artigo de PJ Fernandes sobre as fotos da comissão de 1890 (2/3)

Continuando artigo anterior, lembro que Paulo Jorge Fernandes (PJF) escreveu o artigo "A fotografia e a edificação do Estado Colonial: a missão de Mariano de Carvalho à província de Moçambique em 1890" -  pdf aqui.
Como disse aí discordo da asserção de PJF de que as fotos de Manuel Romão Pereira para a missão de MC tenham "uma carga ideológica muito forte, ainda que não aparente" e ao serviço da "agenda política de MC".
Numa segunda parte do seu artigo, na página 199 do livro de Filipa L. Vicente, PJF estende a sua análise às fotos produzidas pela comissão de demarcação de fronteira de 1890-91 chefiada por Freire de Andrade (FA) que se realizou quase em simultâneo com a missão de MC mas em processos completamente separados - sobre a comissão ver longa série de artigos aqui.
É dessa comissão de 1890 que aqui falaremos e PJF afirma que na maioria as suas fotos tinham intuitos geográficos e etnográficos, o que é consensual, mas acrescenta que "para além do conhecimento do território e dos povos que o habitavam, mostrava-se o esforço político das autoridades portuguesas para estabelecer acordos com os principais régulos locais, estratégia de entendimento que visaria claramente testemunhar a capacidade de Portugal em administrar a colónia."  
Nesse ponto PJF refere específicamente a foto que foi tirada com Gungunhana e José Joaquim de Freitas de Almeida que vemos em baixo  Presumo que ela tenha sido tirada numa visita posterior feita por Freire de Andrade (FA) à das explorações iniciais dado que Matheus Serrano (MS), que esteve primeiro com Gungunhana (Ngungunhane e outras variantes) no relatório não refere a presença junto ao kraal africano do Conselheiro Almeida que desde 1889 era o intendente-geral em Gaza, refere só a presença do intendente permanente no local. Dessa visita feita por FA a Gungunhana em que presumo tivesse sido acompanhado por Almeida não são dados pormenores no relatório de FA, mas assumo que FA tenha utilizado as suas impressões para a sua redação final.
De relembrar que Gungunhana era dos chefes tradicionais africanos em Moçambqiue o que tinha mais território (ia do centro ao sul de Moçambique), mais poder político e mais força, mas nessa altura não estava em confronto aberto com Portugal e simbólicamente tinha até a bandeira portuguesa içada junto da sua habitação (ver NB 2 ao fundo quanto à sua relação com Portugal ao longo do tempo). 

Régulo Gungunhana e Mt.º Almeida (actd iict)

PJF no artigo menciona também as fotos seguintes referentes a Gungunhana que fazem parte da colecção dessa comissão. A primeira só com Gungunhana é da mesma altura que a de cima:
Gungunhana / Ngungunyne cerca de 1890 (ACTD album n3)

E presumo que a seguinte também seja, mas senão for a sua data precisa não é relevante para este caso:

Mulher do Gungunhana (ACTD album n3), outra aqui

O texto do relatório da comissão tem mais de 182 páginas de densa infomação e comentários e é o elemento essencial do que foi produzido. Foi escrito por FA, na maior parte, e por MS, ambos capitães do exército português na altura em missão civil e  lembremos então o que PJF escreve sobre ele: "mostrava-se o esforço político das autoridades portuguesas para estabelecer acordos com os principais régulos locais, estratégia de entendimento que visaria claramente testemunhar a capacidade de Portugal em administrar a colónia."  
Ora contrariando o que PJF indicia sobre a intenção da inclusão destas fotos no relatório, no texto FA e MS tornam claro a quem os lesse (o relatório foi divulgado ao público penso que a partir de 1892) que na sua opinião com Gungunhana (Gongunhama) e os seus vátuas não poderia haver nenhum "entendimento" e que Portugal estava a administrar mal Moçambique. Por ex. nas páginas 90 e 91 do relatório, FA relata o seguinte na linguagem que agora chocará e é inaceitável mas era corrente na altura: 
"Desde a fronteira do Transvaal a Inhambane que ouvíamos sempre as mesmas queixas (dos nativos). 
— Porque têm fome? Gongunhama roubou-nos tudo. 
— Porque estão abandonadas estas povoações? Fugiram todos quando chegou a gente do Gongunhama. 
— Quem queimou aquella povoação e deu cabo dos seus habitantesGongunhama (, e sempre o Gongunhama!) 
Dahi o desassocego dos cafres e o pouco cuidado com que tratam as suas culturas e, finalmente, a fome que sobrevem. Não é necessário cultivar, porque o Gongunhama vem depois colher, e tanto mais que não se não pode occullar o que a cultura produziu, por isso que pela dimensão do terreno arroteado calculam os vátuas a sua producção provável".
Continua FA pouco depois, mais genéricamente:
"O que contém o Gongunhama do nosso lado é o receio que tem de soffrer uma sorte análoga a do Cattiwayo ou do Secocuni (HoM: chefes nativos rebeldes derrotados pelos colonizadores na África do Sul poucos anos antes) e a certeza de que estando comnosco lhe tolerámos tudo, como o aniquilamento do regulo Biuguana, a guerra no Zavalla, as já habituadas incursões pelo interior de Inhambane, quasi até ás portas da villa, e tudo isto adoçado ainda com os numerosos presentes que de nós recebe. Com os seus repetidos ataques aos régulos da coroa, com ou sem permissão nossa, não importa isso porque o resultado é o mesmo, que influencia nos fica sobre os cafres?"
Dizia ainda FA na página 88 do relatório a respeito de Gungunhana:
"Não é por falta de repetidos roubos e assassínios commettidos em territórios portuguezes, e das repetidas instâncias que da colónia tenham sido feitas ao governo da metrópole, que essa familia de vatuas tem continuado livre a exercer o seu absoluto poder sobre aquellas terras."
Acrescenta FA na página 90 a respeito da atitude dos portugueses: "No Inharrime, pouco antes da nossa chegada, o commandante militar, ao saber da approximação dos vatuas (eram dois - HoM: um "ataque" afinal feito por só 2 pessoas) fugira deixando a bandeira içada e a artilheria carregada! Entretanto trouxera comsigo um rebanho de cabras, que lhe eram mais queridas que tudo quanto abandonava. Se os nossos representantes têem tanto medo dos vatuas e tão pouca confiança nos intendentes do Bilene, como nos poderemos admirar que os pretos reconheçam o Gongunhama como seu único senhor?"
Por seu lado MS, que deixa as análises mais profundas para o chefe FA, relata por exemplo do seu contacto mais próximo com Gungunhana:
"No mesmo dia 13 mandou o professor (HoM: o intendente de Portugal junto a Gungunhana) participar a minha chegada ao Gongunhama. 
MS: Então que é isso, perguntei, a intendência é que dá satisfações ao régulo? 
Intendente português: É para elle mandar o boi (para haver comida para MS e os seus auxiliares).
MS: Pois eu achava melhor dispensar os bois a ter tais deferências". 
Intendente: É costume . . . "
MS sublinhava assim que a seu ver, Portugal através do seu representante oficial se colocava em posição de subserviência em relação a Gungunhana. E mais geralmente, MS opinava a propósito do régulo de Zavala, o qual afirmava que não era súbdito de Gungunhana nem Português, "parece inacreditável; estamos senhores do paiz há trezentos annos e não temos força nem prestigio para dominar este povo que dista dois dias de Inhambane (HoM: um dos maiores pontos de presença portuguesa em Moçambique, a "terra da boa gente" do tempo de Vasco da Gama). É verdade que Ampapa, Ampoense, Matibane e outros povos estão a horas de Moçambique (HoM: MS refere-se à Ilha onde continuou ainda por uns anos a ser a capital da colónia) e de vez em quando põem-nos de ali para fora !" .
E podiamos multiplicar exemplos das queixas feitas pelos nativos contra Gungunhana e da sensação de impotência que os dois militares da comissão sustiveram, vendo chefes nativos e cidadãos oficialmente sob a bandeira de Portugal a serem abertamente tiranizados e violentados por um concidadão, ainda que autoridade tradicional. 
Se o objectivo de toda esta informação produzida por essa comissão é o que PJF qualifica como "visando claramente testemunhar a capacidade de Portugal em administrar a colónia" fico muito surpreendido. Muito pelo contrário, os dois relatores diziam que a situação de "paz podre" com Gungunhana que se vivia em Moçambique era insustentável e que era preciso uma posição firme do governo de Portugal nomeadamente no campo militar. A recomendação de FA é clara: "Tudo isto desapparaceria desde que aquelle regulo fosse batido, o que de certo se fará mais cedo ou mais tarde, se nos quizernios conservar n'esta parte da Africa oriental, Inhambane e Lourenço Marques. E não se julgue que seria difficil em extremo levar a cabo uma empreza d'estas: desde que nos revoltassemos com decisão contra o Gongunhama teríamos comnosco todos os régulos principaes de Lourenço Marques Marques e Inhambane que representam uma força importante". Pormenor interessante sobre a conjuntura e possível lapso freudiano de Freire de Andrade, é que mesmo para esse militar Portugal é que seria a parte revoltosa, o que significava que era Gungunhana a parte dominadora. 
Analisando agora o relatório da comissão e o seu efeito, o governo português permitiu então que esta forte crítica contra a política oficial pelo menos vigente até 1890 fosse publicada por dois dos seus funcionários pela Imprensa Nacional de Lisboa em 1894 (mas ele tinha aparecido antes penso que no boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, em parte pelo menos). Mas como por essa época os governos eram instáveis pode ter acontecido que o poder ao tempo em que o relatório saiu estivesse de acordo com sua mensagem, aproveitando-a então para críticar um governo anterior. De qualquer modo se o governo em 1894 teria já adoptado a política dura de confronto preconizada por FA e MS nada teria feito ainda para a implementar dado que Lourenço Marques esteve cercada durante meses na segunda metade de 1894 e que teve de resistir quase sem forças de defesa. De facto um reforço militar só chegou de Portugal depois de ataques directos à cidade terem sido repelidos in extremis e depois do cerco ter sido levantado pelos revoltosos. Sabemos que a partir daí essa política militarista contra os poderes africanos insubmissos foi seguida com firmeza pelo governo português mas não sei se tal foi directamente em reacção ao cerco à cidade ou se estava já em preparação e esse cerco a tornou mais urgente.

NB 1: Poder-se-ia argumentar que o artigo de PJF e o livro de Filipa L. Vicente onde está inserido é sobre fotografia e por isso que não se deveria ter em conta o texto do relatório, que como mostro em cima para mim é totalmente contrário às conclusões de PJF. Não analisei que principio foi seguido para os outros artigos desse livro e se há consistência ou não nesse aspecto, mas pelo que percebo da "nova metodologia" antes de se analisar uma foto tem de se definir o seu contexto. Ora se uma foto faz parte or acompanha um relatório,  haverá para essa foto alguma fonte para o contexto mais relevante do que o relatório? Acho que não e dai se o contexto derivado desse texto indica uma certa leitura da foto seriam precisos argumentos muitos fortes (outras facetas de contexto muito relevantes) para que essa leitura não fosse a considerada a mais provável.

NB 2: Em relação às fotos de Gungunhana e esposas em 1890, deve-se recordar que ele tinha sido colocado no poder com a ajuda de Portugal e que não hostilizava Portugal directamente, a sua tirania era exercida contra os povos africanos que com ele não tivessem afinidades. Mesmo quando o conflito do Sul de Moçambique se agudizou na segunda metade de 1894 com o referido cerco dos povos da Terras da Coroa a LM, Gungunhana não os apoiou militarmente. Mas a seguir, com a chegada de reforços Portugal lançou as suas forças para fora da cidade o que fez alguns dos rebeldes refugiarem-se junto de Gungunhana. Portugal fez-lhe um ultimato para os entregar, Gungunhana recusou e por isso entrou no caminho do conflito mas até à última tentou dialogar com Portugal embora nessa altura fosse já tarde demais.

Continua no artigo seguinte, mais geralmente sobre as fotos da Comissão de Demarcação de 1890.

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