Leitura crítica de artigo de PJ Fernandes sobre a missão de MC e fotos de MRP de 1890 (1/3)


Mariano Cyrillo de Carvalho (MC)


1. A foto de cima foi feita por Manuel Romão Pereira (MRP) a Mariano Cyrillo de Carvalho (MC), o chefe da expedição (ou missão) realizada em 1890 para inventariar os recursos económicos e elaborar propostas para o desenvolvimento de Moçambique. O fotógrafo MRP que estava já radicado em Moçambique foi contratado para essa missão e as suas fotos (ou parte delas) aparecem aqui no CPF (111) e aqui no ACTD IICT (116)
Paulo Jorge Fernandes (PJF) escreveu um artigo no livro de Filipa L. Vicente "O Império da Visão. Fotografia no Contexto Colonial Português (1860-1960)" e chamado "A fotografia e a edificação do Estado Colonial: a missão de Mariano de Carvalho à província de Moçambique em 1890" -  pdf aqui. Contém factos interessantes sobre MC e essa missão paga pelo Estado Português que na base seria para recolher informação sobre Moçambique e levá-la para Portugal e Europa para que se conhecesse o território e suas gentes, o que Portugal lá fazia e que por isso sustentasse que Moçambique fosse português nesse período do Ultimato Inglês. Seria esse então o interesse nacional da missão mas PJF diz que MC era um politico de peso em Portugal (embora tivesse caído momentâneamente em desgraça) e que no fundo o objectivo a que ele conduziu essa missão não era patriótico mas sim de satisfazer a sua agenda política relativa ao desenvolvimento das colónias e a delas retirar pessoalmente benefícios económicos no futuro.
É sobre as fotos de MRP que PJF elabora muito da sua tese sobre esse assunto e na página 210 em conclusão escreve: "Estas imagens (de MRP) revelam mais do que o olhar do fotógrafo sobre a realidade colonial. Mostram, acima de tudo, a intenção (HoM: para quando o assunto fosse debatido políticamente em Portugal, o que viria a acontecer em 1891-92) de defender um plano integrado de desenvolvimento do futuro Estado colonial em Moçambique (HoM: que seria o plano de MC). Sob este ponto de vista, são fotografias com uma carga ideológica muito forte, ainda que não aparente, porque estão ao serviço de uma ideia política concreta".
Este "ainda que não aparente" obriga-me então a um esforço extra para saber se a tal "carga ideológica" existirá mesmo ou não nas fotos de MRP. Vejamos então as duas primeiras com que PJF parece justificar o seu argumento.
Legenda original de MRP: “Edifício da Alfândega de Lourenço Marques”, 1890
Acrescento de PJF: O projecto de Mariano de Carvalho contemplava uma reforma
da Pauta Alfandegária do território.


PJF explica a seguir à foto o que MC de particular propunha para a alfândega, uma pauta comum nos portos ingleses e portugueses para evitar concorrência entre eles, ideia essa que era mal vista pela maioria dos políticos portugueses (e supostamente pelo povo).
Como o argumento de PJF era a de que as "fotografias... estavam ao serviço de uma ideia política concreta" assumo que PJF insinue que MC com essa foto quisesse chamar a atenção (ou mais à atenção?) pública, mas de forma não aparente, para a reforma aduaneira por si proposta.
Factos são que esse edifício da Alfândega tinha sido construido poucos anos antes, tinha sido um dos primeiros feitos pelo Estado para os serviços públicos em LM, era arquitectónicamente interessante e aparece em foto de Fowler tirada uns 2 ou 3 anos antes de MRP. Fowler que era funcionário do concessionário da linha de caminho de ferro Mac Murdo fotografou principalmente a construção da linha mas também algumas partes da cidade donde a linha partiria, o que era uma cobertura informativa (contexto do projecto) perfeitamente natural nesses casos.
Alfândega fotografada por Fowler para a companhia dos CF de Mac Murdo


Presumo então que o edifício tenha sido fotografado por Fowler principalmente pelo seu interesse arquitectónico mas não excluo que ele tivesse também a intenção de mostrar que havia uma alfândega no porto de LM dado que esse serviço estava relacionado com a linha férrea internacional para o Transvaal que Mac Murdo construía. Por isso para os privados Fowler e/ou Mac Murdo essa foto do edifício da alfândega poderia ter uma "carga informativa e económica" média mas não teria a "carga ideológica" forte que PJF atribui à de MRP .
Como vemos com este exemplo os observadores actuais podem atribuir a duas fotos semelhantes "cargas" diferentes conforme avaliem os contextos em que as fotos foram produzidas. Como isso é relativamente fácil de fazer, para não parecer superficial a quem se endereçe essa interpretação da "carga" da foto, ela terá de ser muito bem explicada. Seria então legítimo perguntar a PJF porque tinha esta foto de MRP uma "carga ideológica muito forte". Como pode PJF garantir que era intenção de MRP / MC que o leitor do seu relatório ligasse esta foto à sua proposta de reforma alfandegária? Acha PJF provável que um leitor normal fizesse essa ligação? Se MRP / MC quisessem dar à foto essa intenção não lhe teriam dado uma legenda mais "insinuante" em vez da puramente descritiva que deram? 
Questões e respostas que PJF podia ter explicado melhor para as fotos que usa como exemplo no seu texto mas facto é que com ou sem a reforma aduaneira proposta por MC o edifício fotografado por MRP era e continuaria a ser usado pela Alfândega. Por isso acho que a teoria de PJF sobre a agenda "escapotada" de MC para a missão poderá ser (ou não) muito válida, mas que a sua aplicação à foto de cima me parece forçada.  
E essa minha conclusão é a mesma para a segunda foto do texto na qual PJF coloca também um acrescento à legenda original para a tentar ligar à sua tese: 
Legenda original de MRP: “Prazo Mahindo – Frente exterior do recinto fortificado”
Acrescento de PJF: A  Zambézia tinha sido identificada por Mariano de Carvalho 
como zona de rico potencial económico.
Quanto à foto em si acho que era uma construção interessante pela grandiosidade para esses tempos, pelo ar de fortaleza militar e que com a bananeira e as palmeiras transmitiria boa informação a quem a visse e só isso justificaria que fizesse parte dum estudo / reportagem sobre Moçambique. 
PJF com o acrescento à legenda original tenta explicar quais seriam as razões para que a foto de cima tivesse "forte carga ideológica" ainda que não aparente. Ora era amplamente conhecido que a Zambézia tinha rico potencial económico e que estava repartida em prazos e dava-se o caso de o de Mahindo ser dos mais conhecidos (MRP fez-lhe pelo menos 15 fotos). Por isso não era necessário que MRP / MC incluissem essa foto no relatório para o lembrar ao leitor e a partir daí para que ele pelo menos se interessasse pelos planos pessoais de MC  Quer dizer, tal como penso que acontecia com a foto da Alfândega penso que esta foto tinha "carga informativa e económica" e que se PJF quer associar-lhe uma "carga ideológica" provinda de MRP / MC muito forte teria de ser muito mais persuasivo do que foi.
Há mais duas fotos de MRP no artigo de PJF para as quais ele as associa o que seriam as intenções "subliminares" de MC, o que também acho discutível mas talvez menos do que para as de cima e não as vou detalhar aqui.

Quanto ao texto, PJF escreve na página 205: " Seja como for, e esse será outro aspecto a destacar, Manoel Romão Pereira e Mariano de Carvalho procuraram retratar (com as fotos) as regiões política, económica, social e demograficamente mais relevantes para o processo de afirmação da presença portuguesa na África Oriental e que coincidiram, embora de forma não inocente, com as zonas de passagem e que seriam alvo da visita do antigo ministro da Fazenda." 
O que me chama a atenção na frase (e PJF fá-lo certamente intencionalmente) é o "não inocente". Pergunto eu, mas que tem de estranho aparecerem no estudo de MC  / MRP fotos dos pontos mais relevantes de LM, da Zambézia, Ilha de Moçambique, etc? MC tinha sido encarregado (e suponho que específicamente pago) pelo Governo Português para reportar sobre o território e suas gentes e actividades e para dar ideias para o futuro, e MRP tinha sido pago para fotografá-lo. Do site de rerum natura vê-se que de acordo com a nomeação do ministro Ressano Garcia MRP “devia percorrer os territórios de Lourenço Marques, Inhambane, Gaza e Alto Zambeze, tirando photografias dos edifícios, monumentos, fazendas mais importantes, povoações, estações de caminhos de ferro, e bem assim dos typos das diferentes raças, régulos e indivíduos mais importantes de cada um dos paízes, e bem assim de todos os sítios, regiões ou accidentes naturais que mereçam ser reproduzidos.” Eles teriam então de visitar e fotografar aquilo que era mais importante em Moçambique (ou que teria mais potencial de o vir ser no futuro) e não é nada de estranho que o tenham feito. Quer dizer era obrigatório que os locais que por exemplo vimos nestas duas fotos tivessem sido fotografados, se MC quisesse inculcar nelas a sua agenda teria de ser através de pormenores que se somassem aos aspectos "informativos, sociais e económicos" que elas deveria ter para respeitar o "caderno de encargos" do governo e PJF não identifica nelas os pormenores que indiciariam a "carga ideológica de MC". 
Assim, para além de nos explicar como as fotos que foram feitas por MRP com a "carga ideológica de MC" se distinguiriam das que teriam sido feitas sem ela e preferencialmente para o mesmo objecto fotografado, acho que PJF teria também argumentos para defender a sua tese de que havia uma "agenda" nas fotos do estudo de MC se nos demonstrasse que: 
a. determinados locais importantes de Moçambique não tinham sido fotografados / incluidos no estudo de MC porque não se coadunavam com a sua "agenda" pessoal;
b. havia locais ou situações incluidos no estudo de MC únicamente para suportar a sua "agenda" pessoal.
E como isso não é demonstrado por PJF, parece-me que a maioria as fotos de MRP que estão no estudo foram lá incluídas pelo motivo oficialmente anunciado (o de dar a conhecer Moçambique ao Governo Português e presumo depois às massas populares, o de deixar pistas para o futuro), isto é de forma inocente em relação ao que seria a "agenda" pessoal de MC. 

2. Na mesma linha de minha discordância, noto que diz primeiro PJF no texto da página 206: "Em muitas imagens surgem fotografias de moçambicanos, maioritariamente homens, cujo trajar denotava a adopção do islamismo, realidade sobretudo mais sensível fora de Lourenço Marques". PJF acrescenta depois que MC era contra a "expansão da fé muçulmana em Moçambique" pelo que daqui se deduziria que a intenção de incluir essas fotos no estudo seria a de levar quem lesse o relatório a concluir que o islão dominava Moçambique e por isso que havia necessidade de o controlar o que levaria a apoiar as ideias defendidas por MC.
Problema é que acho que muito pouca gente (culta ou não) em 1890 na Europa seria capaz de distinguir numa foto (ou ao vivo) um cristão, um muçulmano ou um animista africano simplesmente pelo traje, sem haver menção mais específica do seu contexto. Para mais as legendas originais que vejo aplicadas às fotos de MRP para MC aparentemente não tinham conotação religiosa e daí que a intenção "religiosa" que MC teria tido com essas fotos não teria tido resultado práctico. Ainda por cima, segundo PJF as fotos foram pouco divulgadas e sendo MC um político "moderno", fundador até dum jornal que ainda hoje subsiste, se ele desse tanta importância às fotos para veicular a sua "agenda" como PJF diz que dava, então MC ou ter-se-ia esforçado mais para as divulgar ou seria um político inepto (o que pelos vistos não era dado o destaque que alcançou nessa carreira).
Segundo problema sobre essa suposta ligação das fotos de pessoas ou com elas às ideias de MC sobre as religiões em Moçambique é que a seguir diz PJF: "Já o registo etnográfico também seria alvo dos dois visitantes europeus tirando 20 fotografias onde aparecem retratados os diferentes grupos étnicos que habitavam o território, dos macondes do Norte aos Vátuas (Landins), mais frequentes a sul do rio Save". Como disse, PJF dizia antes que a maioria dos fotografados "era" muçulmana, mas neste texto dá a entender que a escolha foi mais ou menos representativa da diversidade da população (e por acaso ou não as duas tribos aí mencionadas nem são muçulmanas). Perguntaria eu então a PJF sobre estas fotos: houve intenção deliberada de MC/MRP em fotografar "demasiados" muçulmanos? Ou houve a intenção de representar a diversidade de populações e por isso das suas religiões? É preciso notar-se também que em 1890 a capital de Moçambique era a Ilha de Moçambique e que havia outros núcleos importantes em volta da ilha. Ora a população dessa região é  macua e tem religião muçulmana, por isso é natural que em muitas das fotos de MRP tiradas nos locais mais representativos de Moçambique desses tempos apareçessem muçulmanos. 


3. Quanto ao valor da tese que MC defendia de "um plano integrado de desenvolvimento do futuro Estado colonial em Moçambique" escreve PJF mais para o fim da página 210: "(as fotos de MRP) Encontram-se, todavia, do lado errado da História, porque os acontecimentos a partir de 1894-1895 viriam a consagrar outro tipo de solução, remetendo o processo de construção do Estado colonial para uma lógica militar e nacionalista que, em bom rigor, viria a ser predominante até 1974."
Vejamos isto com atenção: eu não sei que plano de desenvolvimento MC defendia mas não devia ter nada a ver com os nativos em termos de os integrar na economia sem ser em posição sub-alterna ou então MC estaria uns 50 anos adiantado em relação aos outros políticos e pensadores do seu tempo. Então podemos dizer que as revoltas nativas teriam acontecido com ou sem o plano de MC, o qual de qualquer maneira para ter algum efeito nas aspirações nativas não seria antes dos 3-4 anos seguintes. Mas uma vez essas revoltas "subjugadas" (uns 4 anos depois de MC desenhar o seu plano) o que teria impedido que ele fosse aplicado já que ele certamente se dirigia à burguesia colonial e não aos nativos? Dá-me ideia que PJF está a confundir a situação de Moçambique colonial desse tempo (onde não havia nem nunca houve uma burguesia não autóctone com aspiração secessionista) com as do Brasil e dos Estados Unidos onde realmente o poder "metropolitano" tinha duas opções, (i) desenvolver a colónia para responder às aspirações da burguesia de forma a que esta conservasse a ligação à "mãe-pátria" ou (2) reprimir as suas aspirações com mão pesada, pela via policial e/ou militar. 
Quanto à "lógica nacionalista" isto é anti-britânica que era defendida pelos oponentes de MC e que ocupavam as posições de poder em Portugal, apesar da retórica destes políticos de facto com o correr do tempo Portugal e a Inglaterra foram sempre encontrando na práctica soluções para as suas disputas. Naturalmente nessa relação a balança pendia para o lado do mais forte mas dado o contexto internacional a Inglaterra também não podia abusar do seu poder. Como em muitos campos os dois paises eram muito inter-dependentes, mesmo sem ter havido a influência que segundo PJF seria "pró-britânica" de MC parece-me que os interesses políticos e económicos da Inglaterra nunca foram significativamente afectados em Moçambique apesar de diversas crises entre os dois países e que foram mais ou menos passageiras.

4. Resumindo, discordo que as fotos de MRP tenham "carga ideológica" superior ao que seria de esperar para uma primeira reportagem fotográfica sobre um território ultramarino e encomendada pelo governo colonial para efeito de informação e claro de propaganda, nomeadamente quanto à sua permeabilidade à "agenda política de MC".

PS: Para completar a análise da tese defendida por PJ Fernandes poder-se-ia tentar comparar as fotos tiradas por MRP mostrando a reparação e extensão da linha de caminho de ferro (por exemplo as castanhas aqui) em 1889, quer dizer sem a influência de MC, com as que ele tirou para a missão/expedição de MC em 1890. Poder-se-ia desse modo tentar detectar se no segundo grupo há alguma "carga ideológica muito forte, ainda que não aparente" especial como PJF argumenta.


NB: Noto que na página 202 do artigo de PJF deve haver um erro que altera o pensamento de PJF (falta o CONTRA?) sobre a evolução de MC a respeito de certo aspecto das suas posições: "Tratava-se também da confirmação de que o político que tão duramente tinha advogado (CONTRA?) a alienação do espaço ultramarino no passado recente a entidades privadas tinha-se agora convertido à “política dos interesses” como forma de administrar os bens públicos em contexto colonial".


Leitura crítica de artigo de PJ Fernandes continua aqui e aqui sobre outro grupo de fotos.

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