Conforme disse no artigo anterior e para além da discordância de que falei no primeiro artigo desta série, também discordo do que Paulo Jorge Fernandes (PJF) escreveu no artigo "A fotografia e a edificação do Estado Colonial: a missão de Mariano de Carvalho à província de Moçambique em 1890" - pdf aqui. relativamente às fotos produzidas pela missão de demarcação de fronteira de 1890-91 chefiada por Freire de Andrade (FA).
Isso porque PJF defende que nessas fotos ".... mostrava-se o esforço político das autoridades portuguesas para estabelecer acordos com os principais régulos locais, estratégia de entendimento que visaria claramente testemunhar a capacidade de Portugal em administrar a colónia" enquanto que na esmagadora maioria das fotos produzidas pela comissão de Freire de Andrade (FA) e Mateus Serrano (MS) eu não vejo isso e o seu relatório, como tenho tentado demonstrar, é absolutamente oposto a essa ideia.
Para chegar a essa conclusão, PJF refere-se no seu artigo específicamente às quatro fotos da colecção do site actd.iict.pt relacionadas com Gungunhana e sua(s) esposa(s) que já vimos, mas há outra foto nessa colecção que desse ponto de vista é interessante e seria até mais eficaz se a intenção dos relatores FA e MS fosse de mostrar a "capacidade de Portugal em administrar a colónia" como PJF defende:
Isso porque PJF defende que nessas fotos ".... mostrava-se o esforço político das autoridades portuguesas para estabelecer acordos com os principais régulos locais, estratégia de entendimento que visaria claramente testemunhar a capacidade de Portugal em administrar a colónia" enquanto que na esmagadora maioria das fotos produzidas pela comissão de Freire de Andrade (FA) e Mateus Serrano (MS) eu não vejo isso e o seu relatório, como tenho tentado demonstrar, é absolutamente oposto a essa ideia.
Para chegar a essa conclusão, PJF refere-se no seu artigo específicamente às quatro fotos da colecção do site actd.iict.pt relacionadas com Gungunhana e sua(s) esposa(s) que já vimos, mas há outra foto nessa colecção que desse ponto de vista é interessante e seria até mais eficaz se a intenção dos relatores FA e MS fosse de mostrar a "capacidade de Portugal em administrar a colónia" como PJF defende:
FOTO 1
Legenda original: Marco da fronteira e embaixada do Gungunhana |
Não encontro no texto do relatório de FA e MS explicação para esta foto e sua legenda. Isso quer dizer que FA não deu grande importância ao acontecimento da foto tendo então perdido a oportunidade de "explorar" a foto e o acontecimento de forma a mostrar aos leitores que as relações com Gungunhana eram amigáveis, o que para PJF teria sido o interesse para FA ter efectuado as fotos relacionadas com Gungunhana.
Contrariando o que PJF diz ter sido a intenção das fotos da comissão (pelo menos de algumas) no texto do relatório FA e MS não escondem e pelo contrário, acentuam o antagonismo existente entre Portugal e Gungunhana. MS entre a fronteira e o litoral andou mais por terras de Gungunhana do que FA e cruzou-se por acaso com alguns dos seus indunas / vangumes com quem teve conversas pouco amigáveis. A seguir temos no relatório um exemplo revelador sobre quem era considerada a autoridade na zona, por isso eliminando o efeito que a foto de cima poderia criar no leitor de que se estava em território português e sem contestação: "... encontrámos um vanguune (VG, um vátua de posição social elevada) acompanhado de alguns (africanos);
MS: Chamei-o
— VG: Digam d'ahi o que querem.
— Olha que é o branco que chama, disseram os (africanos) (os auxiliares de MS).
— VG: E quanto me dá para eu lá ir?
— MS: Dou-te um tiro, disse preparando o revolver.
— VG: Eu não sou portuguez, replicou elle approximando-se, sou do Gungunhana e só elle me pôde mandar matar.
De nada servia colher informações d'este homem, que forçosamente me havia de enganar; limitei-me a perguntar para onde ia" e ele respondeu que era para Manjacaze.
Olhando para outro aspecto, em percentagem do total, nas fotos tiradas pela comissão de FA e MS e sem contar com aquelas em que aparecem os auxiliares africanos, há poucas com populações locais. Na maioria a sua legenda não informa muito e foram tiradas de longe. A seguinte é uma das melhores pela técnica e conteúdo e tem a particularidade de nomear os sujeitos fotografados dizendo que se trata do régulo Dovil e seus indunas (fotos originalmente aqui e aqui com a família). Mas como para outras fotos desse tipo não encontro esse nome no texto do relatório e daí não tenho a certeza se foi feita pela comissão original de FA e MS ou por uma sua continuação mais para norte pois nas fotos do ACTD presumo haver certa mistura de áreas. Mas sendo donde for, esta foto - que para simplificar assumiremos ter sido tirada por FA - mostra onde quero chegar:
Na base temos então uma foto etnográfica perfeita, mostrando um ancião simpático e a classe dirigente da sua tribo ou clã que vivia de forma tradicional. Não sabemos se aceitaram uma proposta dos portugueses para serem fotografados ou se o terão pedido, sabemos que anos mais tarde um régulo recusou ser fotografado dado recear que a partir da foto Gungunhana o acusasse de ser amigo dos portugueses.
Poderei dizer que esta foto mostra que em 1890 Dovil continuava o seu modo de vida pacato de sempre. Daí poderia deduzir, para esta ou outra foto deste tipo, e como diz PJF em geral, que a intenção de FA ao tirá-la era de "testemunhar da capacidade de Portugal em administrar a colónia" pois dela transparece que Portugal assegurava, pelo menos, a paz e tranquilidade a Dovil.
Mas também poderei dizer que a foto mostra que Dovil e as suas gentes não tinham "beneficiado" nada por terem sido colonizados. Isso mostraria a "incapacidade de Portugal" para melhorar a vida de Dovil e daí retiraria um grande argumento a favor da presença portuguesa nessas terras. Teria então FA ao tirar esta foto tido intenção anti-colonialista e de que ninguém suspeitava até agora? Seria estranho mas impossível ninguém o poderá dizer ... Resumindo, se já é complexo ver a realidade que uma foto mostra, agora tentar adivinhar as intenções subliminares de quem a fez acho que é entrar no domínio da "magia". Ver na série sobre artigo de M Serva Pereira algumas ideias adicionais para o debate sobre a definição do "bom contexto" para a análise de fotos antigas, pois há pontos comuns entre os argumentos desse académico e de PJF.
Devo ainda acrescentar que a meu ver se corre grande risco de esquecermos os aspectos prácticos quando no século XXI (21) hiper-intelectualizamos estas fotos e subjectivamente tentamos adivinhar as suas intenções. Por isso devemos ter em conta que FA e MS eram simples militares de engenharia, fizeram uma trabalhosa marcação da fronteira com os boers com tomada de dados que durou quase três meses, prosseguiram depois individuamente e durante vários meses (mais de três e meio para FA) viagens por territórios inóspitos e cientificamente desconhecidos, tiraram as fotos com máquina(s) arcaica(s) e durante a viagem foram ainda escrevendo os apontamentos para os relatórios. Tiveram ainda que tratar de assuntos maiores ou menores com os chefes locais e organisar e motivar os seus auxiliares e tudo isto no mato africano e sempre com muitas dificuldades de locomoção, logística, alimentação, saúde e descanso. Daí, acho que pensarmos agora que (e isso aconteceu no final do século XIX, não no mundo moderno) estes militares teriam ainda a mente ocupada a preparar sofisticadas operação de propaganda é também exagerar as suas capacidades. Para mais e talvez como eles já suspeitariam que iria acontecer (e provávelmente os terá até desmotivado ...) segundo Serva Pereira as fotos parece que ficaram perdidas "num caixote" e só reapareceram há poucos anos.
Resumindo, e como aconteceu para a "carga ideológica com a agenda política de MC nas fotos de MRP", também discordo da interpretação de PJF sobre a intenção "propagandística" das fotos da comissão, nomeadamente das relacionadas com Gungunhana. Para mim fazem parte do seu relatório únicamente para ilustrar o texto, dado que Gungunhana e as suas forças são constantemente referidos nos relatos dos contactos dos seus dois membros com as populações (e claramente como sendo um antagonista dos interesses portugueses) e dado que MS se encontrou com Gungunhana no seu kraal (e achou-o alcoólico e indisciplinado mas urbano, arguto e bem informado).
NB 1: A única vez em que FA recebeu uma visita "estruturada" de alguém de posição elevada e relacionado com Gungunhana foi em Chicualacuala e a conversa entre eles parece normal no contexto cultural luso-africano e dado que o embaixador de Gungunhana (na altura nominalmente um "leal súbdito" do rei de Portugal) tem um comportamento polido mas também não é submisso. Mas nessa passagem do relatório FA não indica que tenha ido com esse grupo à fronteira, onde nessa zona mais a norte (definida por uma linha recta entre o marco T e o Pafuri - por aqui) nem tinham sido instalados marcos, por isso é dificil relacionar essa visita e o resto do texto de FA com a foto de cima.
FA descreve assim o encontro com esse grupo de ngunis, que não deve então ser o da primeira foto mas não sabemos de certeza: "No dia seguinte recebíamos no nosso campo a visita do Chicualla-Cualla acompanhado de um vatua que o Gungunhana ali tinha mandado, ou que pelo menos se dizia tal e que trazia comsigo uns seis pretos. Era um rapaz ainda novo, chamado Peto, filho de Mudomane, um dos grandes secretários do Muzilla, pae de Gongunhama. Trazia na cabeça uma rodella ou salehichão á moda dos vatuas, muito polida, emquanto que o restante cabello é cuidadosamente rapado. Viram as carretas, depois do que veiu ter comnosco pedindo-nos para lhe mostrarmos as nossas armas Colt, que pela rapidez e certeza do tiro lhe causaram a maior admiração, dizendo-nos então «que bem via que a gente branca era muito esperta, pois guardava as armas boas, vendendo-lhes a elles só as que não prestavam». Trazia comsigo algum pombe e milho de presente, desculpando-se pela sua pobreza de não poder trazer mais."
NB 2: A FOTO 1 poderá estar relacionada com o que MS relata da sua conversa posterior com Gungunhana em que este lhe diz que sabia que os portugueses e os boer tinham andado a marcar a fronteira (teria sido através da sua embaixada da foto?) e que o deviam ter chamado a participar pois era parte interessada. MS secamente respondeu a Gungunhana que ele ficaria a saber do resultado da marcação e este sorriu em retorno.
NB 3: Esta foto deste artigo mostrando um chefe africano do Limpopo que suponho ser Matsuléle (vou supor que sim para ilustrar melhor) poderia ser umas das que FA teria feito de forma a que como supõe PJF ".... mostra(r) o esforço político das autoridades portuguesas para estabelecer acordos com os principais régulos locais, estratégia de entendimento que visaria claramente testemunhar a capacidade de Portugal em administrar a colónia".
Ora se essa fosse mesmo a intenção de FA, no texto ele não deixaria certamente de o vincar e nas páginas 45/46 o que se vê é FA relatar os seus contactos com o chefe Matsuléle mas numa base de encontro entre pessoas de culturas diferentes e de relação comercial de igual para igual pois FA precisava de adquirir mantimentos (e até não foi completamente bem sucedido). FA não refere aí qualquer pendor patriótico pró-português que o chefe pudesse ou dissesse ter ou que FA o tenha convencido a ter. Por isso dessa passagem do texto ficava a ideia que as populações nem saberiam o que era Portugal e que não tinham respeito pela suas autoridades (não esqueçamos que FA representava o rei de Portugal na demarcação da fronteira) e que para FA vincá-lo às populações não era assunto premente.
Para mais o que FA acrescenta aí é: "Pouco depois foram estas povoações mandadas queimar pelo Gongunhanha por nos terem fornecido géneros, e mortos aquclles dos pretos que não poderam fugir.". De novo insisto na mesma tecla, acho que quem ler esta passagem do relatório de FA e souber que Gungunhana era um régulo sujeito ao Rei de Portugal e que Matsuléle, a vítima, provávelmente viveria em território português (ou pelo menos entre Portugal e a ZAR), esse leitor certamente que não concluiria positivamente da "capacidade de Portugal em administrar a colónia" como PJF diz que era a intenção, acho que concluiria exactamente pelo contrário.
NB 4: Gungunhana na práctica actuava como se ele fosse o único poder local embora evitando confrontar-se com os portugueses. Essa dualidade podia ser mantida sem grande esforço pois devido à quase ausência de portugueses nas terras por ele dominadas, por um lado os portugueses podiam fingir que não viam a tirania que ele exercia sobre outros nativos e por outro lado não havia potenciais conflitos de interesses / pontos de atrito entre Gungunhana e os portugueses.
Gungunhana não fazia tudo sózinho, tinha uma estrutura sob ele com muita gente, tinha aliados noutras tribos, etc e como FA e MS dizem no relatório os subordinados de Gungunhana podiam distorcer as suas instruções e apareciam também oportunistas locais sem nada a ver com Gungunhana mas que se aproveitavam do terror que ele inspirava.
Não analiso este assunto do ponto de vista moral, olho simplesmente para quais eram as posições em confronto e tendo em conta factos que me parecem lógicos. Reforço ainda que a linguagem do relatório da comissão que aqui transcrevo agora é chocante e inaceitável, mas não podemos / devemos reescrever a história. Lembro também que no relatório de FA e MS seguimos só um lado do que eles viveram, haveria muitos outros lados mas perdemos as suas "narrativas"
MS: Chamei-o
— VG: Digam d'ahi o que querem.
— Olha que é o branco que chama, disseram os (africanos) (os auxiliares de MS).
— VG: E quanto me dá para eu lá ir?
— MS: Dou-te um tiro, disse preparando o revolver.
— VG: Eu não sou portuguez, replicou elle approximando-se, sou do Gungunhana e só elle me pôde mandar matar.
De nada servia colher informações d'este homem, que forçosamente me havia de enganar; limitei-me a perguntar para onde ia" e ele respondeu que era para Manjacaze.
Olhando para outro aspecto, em percentagem do total, nas fotos tiradas pela comissão de FA e MS e sem contar com aquelas em que aparecem os auxiliares africanos, há poucas com populações locais. Na maioria a sua legenda não informa muito e foram tiradas de longe. A seguinte é uma das melhores pela técnica e conteúdo e tem a particularidade de nomear os sujeitos fotografados dizendo que se trata do régulo Dovil e seus indunas (fotos originalmente aqui e aqui com a família). Mas como para outras fotos desse tipo não encontro esse nome no texto do relatório e daí não tenho a certeza se foi feita pela comissão original de FA e MS ou por uma sua continuação mais para norte pois nas fotos do ACTD presumo haver certa mistura de áreas. Mas sendo donde for, esta foto - que para simplificar assumiremos ter sido tirada por FA - mostra onde quero chegar:
FOTO 2
ACTD: [Régulo] Dovil, secretários e feiticeiro |
Poderei dizer que esta foto mostra que em 1890 Dovil continuava o seu modo de vida pacato de sempre. Daí poderia deduzir, para esta ou outra foto deste tipo, e como diz PJF em geral, que a intenção de FA ao tirá-la era de "testemunhar da capacidade de Portugal em administrar a colónia" pois dela transparece que Portugal assegurava, pelo menos, a paz e tranquilidade a Dovil.
Mas também poderei dizer que a foto mostra que Dovil e as suas gentes não tinham "beneficiado" nada por terem sido colonizados. Isso mostraria a "incapacidade de Portugal" para melhorar a vida de Dovil e daí retiraria um grande argumento a favor da presença portuguesa nessas terras. Teria então FA ao tirar esta foto tido intenção anti-colonialista e de que ninguém suspeitava até agora? Seria estranho mas impossível ninguém o poderá dizer ... Resumindo, se já é complexo ver a realidade que uma foto mostra, agora tentar adivinhar as intenções subliminares de quem a fez acho que é entrar no domínio da "magia". Ver na série sobre artigo de M Serva Pereira algumas ideias adicionais para o debate sobre a definição do "bom contexto" para a análise de fotos antigas, pois há pontos comuns entre os argumentos desse académico e de PJF.
Devo ainda acrescentar que a meu ver se corre grande risco de esquecermos os aspectos prácticos quando no século XXI (21) hiper-intelectualizamos estas fotos e subjectivamente tentamos adivinhar as suas intenções. Por isso devemos ter em conta que FA e MS eram simples militares de engenharia, fizeram uma trabalhosa marcação da fronteira com os boers com tomada de dados que durou quase três meses, prosseguiram depois individuamente e durante vários meses (mais de três e meio para FA) viagens por territórios inóspitos e cientificamente desconhecidos, tiraram as fotos com máquina(s) arcaica(s) e durante a viagem foram ainda escrevendo os apontamentos para os relatórios. Tiveram ainda que tratar de assuntos maiores ou menores com os chefes locais e organisar e motivar os seus auxiliares e tudo isto no mato africano e sempre com muitas dificuldades de locomoção, logística, alimentação, saúde e descanso. Daí, acho que pensarmos agora que (e isso aconteceu no final do século XIX, não no mundo moderno) estes militares teriam ainda a mente ocupada a preparar sofisticadas operação de propaganda é também exagerar as suas capacidades. Para mais e talvez como eles já suspeitariam que iria acontecer (e provávelmente os terá até desmotivado ...) segundo Serva Pereira as fotos parece que ficaram perdidas "num caixote" e só reapareceram há poucos anos.
Resumindo, e como aconteceu para a "carga ideológica com a agenda política de MC nas fotos de MRP", também discordo da interpretação de PJF sobre a intenção "propagandística" das fotos da comissão, nomeadamente das relacionadas com Gungunhana. Para mim fazem parte do seu relatório únicamente para ilustrar o texto, dado que Gungunhana e as suas forças são constantemente referidos nos relatos dos contactos dos seus dois membros com as populações (e claramente como sendo um antagonista dos interesses portugueses) e dado que MS se encontrou com Gungunhana no seu kraal (e achou-o alcoólico e indisciplinado mas urbano, arguto e bem informado).
NB 1: A única vez em que FA recebeu uma visita "estruturada" de alguém de posição elevada e relacionado com Gungunhana foi em Chicualacuala e a conversa entre eles parece normal no contexto cultural luso-africano e dado que o embaixador de Gungunhana (na altura nominalmente um "leal súbdito" do rei de Portugal) tem um comportamento polido mas também não é submisso. Mas nessa passagem do relatório FA não indica que tenha ido com esse grupo à fronteira, onde nessa zona mais a norte (definida por uma linha recta entre o marco T e o Pafuri - por aqui) nem tinham sido instalados marcos, por isso é dificil relacionar essa visita e o resto do texto de FA com a foto de cima.
FA descreve assim o encontro com esse grupo de ngunis, que não deve então ser o da primeira foto mas não sabemos de certeza: "No dia seguinte recebíamos no nosso campo a visita do Chicualla-Cualla acompanhado de um vatua que o Gungunhana ali tinha mandado, ou que pelo menos se dizia tal e que trazia comsigo uns seis pretos. Era um rapaz ainda novo, chamado Peto, filho de Mudomane, um dos grandes secretários do Muzilla, pae de Gongunhama. Trazia na cabeça uma rodella ou salehichão á moda dos vatuas, muito polida, emquanto que o restante cabello é cuidadosamente rapado. Viram as carretas, depois do que veiu ter comnosco pedindo-nos para lhe mostrarmos as nossas armas Colt, que pela rapidez e certeza do tiro lhe causaram a maior admiração, dizendo-nos então «que bem via que a gente branca era muito esperta, pois guardava as armas boas, vendendo-lhes a elles só as que não prestavam». Trazia comsigo algum pombe e milho de presente, desculpando-se pela sua pobreza de não poder trazer mais."
NB 2: A FOTO 1 poderá estar relacionada com o que MS relata da sua conversa posterior com Gungunhana em que este lhe diz que sabia que os portugueses e os boer tinham andado a marcar a fronteira (teria sido através da sua embaixada da foto?) e que o deviam ter chamado a participar pois era parte interessada. MS secamente respondeu a Gungunhana que ele ficaria a saber do resultado da marcação e este sorriu em retorno.
NB 3: Esta foto deste artigo mostrando um chefe africano do Limpopo que suponho ser Matsuléle (vou supor que sim para ilustrar melhor) poderia ser umas das que FA teria feito de forma a que como supõe PJF ".... mostra(r) o esforço político das autoridades portuguesas para estabelecer acordos com os principais régulos locais, estratégia de entendimento que visaria claramente testemunhar a capacidade de Portugal em administrar a colónia".
Ora se essa fosse mesmo a intenção de FA, no texto ele não deixaria certamente de o vincar e nas páginas 45/46 o que se vê é FA relatar os seus contactos com o chefe Matsuléle mas numa base de encontro entre pessoas de culturas diferentes e de relação comercial de igual para igual pois FA precisava de adquirir mantimentos (e até não foi completamente bem sucedido). FA não refere aí qualquer pendor patriótico pró-português que o chefe pudesse ou dissesse ter ou que FA o tenha convencido a ter. Por isso dessa passagem do texto ficava a ideia que as populações nem saberiam o que era Portugal e que não tinham respeito pela suas autoridades (não esqueçamos que FA representava o rei de Portugal na demarcação da fronteira) e que para FA vincá-lo às populações não era assunto premente.
Para mais o que FA acrescenta aí é: "Pouco depois foram estas povoações mandadas queimar pelo Gongunhanha por nos terem fornecido géneros, e mortos aquclles dos pretos que não poderam fugir.". De novo insisto na mesma tecla, acho que quem ler esta passagem do relatório de FA e souber que Gungunhana era um régulo sujeito ao Rei de Portugal e que Matsuléle, a vítima, provávelmente viveria em território português (ou pelo menos entre Portugal e a ZAR), esse leitor certamente que não concluiria positivamente da "capacidade de Portugal em administrar a colónia" como PJF diz que era a intenção, acho que concluiria exactamente pelo contrário.
NB 4: Gungunhana na práctica actuava como se ele fosse o único poder local embora evitando confrontar-se com os portugueses. Essa dualidade podia ser mantida sem grande esforço pois devido à quase ausência de portugueses nas terras por ele dominadas, por um lado os portugueses podiam fingir que não viam a tirania que ele exercia sobre outros nativos e por outro lado não havia potenciais conflitos de interesses / pontos de atrito entre Gungunhana e os portugueses.
Gungunhana não fazia tudo sózinho, tinha uma estrutura sob ele com muita gente, tinha aliados noutras tribos, etc e como FA e MS dizem no relatório os subordinados de Gungunhana podiam distorcer as suas instruções e apareciam também oportunistas locais sem nada a ver com Gungunhana mas que se aproveitavam do terror que ele inspirava.
Não analiso este assunto do ponto de vista moral, olho simplesmente para quais eram as posições em confronto e tendo em conta factos que me parecem lógicos. Reforço ainda que a linguagem do relatório da comissão que aqui transcrevo agora é chocante e inaceitável, mas não podemos / devemos reescrever a história. Lembro também que no relatório de FA e MS seguimos só um lado do que eles viveram, haveria muitos outros lados mas perdemos as suas "narrativas"
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