Demarcação de fronteira com a ZAR em 1890 - artigo de MSP - Malasche e mudanças - II (33)

Prossigo a análise do artigo "The Lourenço Marques Frontier Limitation Committee and its pictorial records (Mozambique – 1891)" do académico Matheus Serva Pereira (MSP) sobre as fotos e o relatório da comissão com Freire de Andrade (FA) e Matheus Serrano (MS) de 1890 - série aqui. 
Depois das fotos que referi no artigo anterior que serão consideradas mais ou menos realistas, sobram-nos para analisar no artigo de MSP fotos em que a população africana é mais directamente representada, tenham sido elas seleccionadas por MSP para o seu artigo ou fazendo elas parte do conjunto da comissão e que eu ache apropriado associar. 
Será mais pertinente para estas fotos com população, embora também o seja para as da actividade da comissão no que respeita à questão da soberania nacional, o que MSP diz na introdução: "Understanding that every photograph is a choice based at the decision of the author, who, in turn, is impregnated by his or her own culture, I will first work to contextualize the production of this document"
Para a contextualização, MSP fala da situação histórica e política que levou aos trabalhos da comissão o qual na base parece-me feito de forma correcta mas em que há aspectos importantes de que discordo ou que me parecem incompletos, como irei explicando a seguir.
Falando sobre as fotos com populações dos locais por onde FA passou e para as quais a "subjectividade" potencial poderia a meu ver ser maior como disse no artigo anterior, diz MSP: "The photographs taken by Lourenço Marques Border Expedition, together with descriptions made in the report, demonstrate how the producers of these documents understood the act of shooting and what was being photographed" (surpreendente é pôr-se a hipótese de que isso não tivesse acontecido ...), "Although the text and photographs reflect the racist culture of the producers of them, the curiosity about culture differences does emerge" e que "Despite the racism present in the text and photographs, the descriptions of the local cultural practices and their communities implicitly appear"
Como MSP destaca estes pontos ou seja que serão estes os princípios que seguirá para analisar as fotos e como a sua contextualização como disse atrás na base está correcta, parece-me que MSP utiliza as "ferramentas" das novas abordagens sobre o valor documental das fotos de forma não dogmática, o que permite que haja pontos de contacto com análises alternativas ou mais tradicionais. 
Mas analizaremos caso a caso a contextualização histórica e política e o que podem ser os enviesamentos de MSP (e outros analizarão os nossos e por aí fora, pois somos todos de carne e osso e ninguém é o monopolista do conhecimento, perspicácia, inteligência e isenção).   
Vejamos as fotos sequintes sobre a povoação e população de Malache, resultantes de aí FA ter encontrado o chefe Novele que lhe providenciou comida e festa, esta a contragosto de FA. MSP inclui estas três fotos no artigo mais outra similar do batuque que vimos aqui:
web_n3283 Povoação de Malasche
web_n3284 Batuque em Malasche
web_n4013 Rapazes de Malasche
MSP não faz análise detalhada a estas fotos de Malasche sob o ponto de vista do "skepticism over the ability of these photographs to demonstrate issues other than those related to the culture of the(ir) producers" por isso ficamos sem saber se a seu ver eram realistas ou não. Não é muito claro mas penso que MSP tenta associá-las a outra vertente do seu pensamento que transcreveu no final da introdução ao seu artigo: "Finally, I will seek to demonstrate the importance of these documents to understand the changes that African people of southern Mozambique were experiencing with the growth of the Portuguese presence in the region, as well as what were their reactions to this process". Penso isso porque MSP anuncia essa "démarche" mas não torna claro como ela é executada, a menos que o tenha sido através destas fotos (e não há outras nas que ele mostra que me parecam tão relevantes). 
MSP explica, resumindo o relatório de FA (c. pág 71), que o chefe Novele de Malasche pretendia obter o apoio dos portugueses para resolver uma contenda com o seu "superior hierárquico" Masibi que a seu ver se tinha alinhado demasiadamente com Gungunhana / Ngungunyane e que ele pretendia substituir: "The dissatisfaction of Novéle with the wars caused by Gungunhana and his attitudes towards Freire de Andrade demonstrate how Novéle understood that the Portuguese presence in the region could be helpful to his own political interests, which were to reassume the independence that had been lost with the recent submission to the Gaza kingdom."
Houve então alguma mudança causada pela chegada de FA à aldeia, mas será que estas fotos mostram algo de "changes that African people of southern Mozambique were experiencing with the growth of the Portuguese presence in the region, as well as what were their reactions to this process" como MSP aparentemente pretendeu fazer? 
Penso que não. Destas três (mais uma) fotos, duas são de situações em que a presença de FA terá tido influência menor e duas (a de cima e a do outro artigo) são de batuque(s) organizado(s) em sua honra. Em que é que este batuque seria diferente se em vez de FA tivesse aparecido na aldeia um régulo poderoso que pudesse ajudar Novele a substituir Masibi (e eventualmente a afrontar Gungunhana de quem Masibi era vassalo) e que lhe prometesse mais liberdade do que tinha tido até então? Certamente esse régulo teria tido direito ao "mesmo" batuque que FA teve. Por isso não acho que estas fotos resultantes da passagem de FA por Malasche, para mais demasiadamente banal, passageira e acidental para ter algum efeito histórico, mostrem qualquer "mudança" ao que era "tradição". Daí, para mim a demonstração que MSP teraá pretendido fazer com elas falha.
De qualquer modo seria digamos quase impossível MSP conseguir demonstrar fosse através de fotos ou doutros elementos um processo de mudança que já viesse de trás, dado que nessa altura a presença portuguesa pelos locais recônditos por onde andou a comissão de FA e MS fisicamente não existia. Os únicos significados que Portugal teria para as populações da regiões atravessadas, seriam das passagens nos locais mais frequentados de comerciantes portugueses, de bandeiras que autoridades tivessem oferecido aos régulos ou de recordações de passagens antigas de algum administrador ou cobrador de impostos. Sendo assim afectadas tão ao de leve, porque teriam então essas populações sentido necessidade de mudar / reagir? 
Foto do mesmo tipo das de Malasche, que segundo MSP mostrariam o interesse de FA pelo "outro" e em que as "local cultural practices and their communities implicitly appear"  (e questiono, "implicitamente" porquê? nas fotos parece-me "explicitamente" ...) será a dos suazis dançandoos auxiliares da comissão sul-africana. Mas como MSP fala como vimos em cima da "importance of these documents to understand the changes that African people ... were experiencing with the growth of the Portuguese presence in the region, as well as what were their reactions to this process", MSP poderia por exemplo ter tentado explicar o que teria mudado nestes batuques (para além de quem estivesse a ser saudado pelo grupo de dançarinos) desde o passado pré-colonial até situação colonial vivida e fotografada por FA em 1890, mas não o tenta fazer.
Este é então um ponto sério que considero inconsequente nas intenções anunciadas por MSP, não consegue demonstrar-nos que o relatório e as fotos mostram "mudanças na população" e "reações à colonização" (mais do que epidérmicas).
Continuarei a análisar no próximo artigo como Matheus Serva Pereira (MSP) tratou as fotos do ACTD e o(s) relatório(s) da comissão com Freire de Andrade (FA) e Matheus Serrano (MS) no seu artigo de 2015.

Algumas notas:
NB 1: Só quando FA estava a chegar perto de Inhambane, um dos poucos pontos no litoral onde havia relação mais antiga entre os portugueses e os locais, começam a aparecer no relatório mais referências à presença portuguesa mas mesmo assim, fora dessa povoação, não me parece que a possível influência portuguesa tivesse sido capaz de alterar a tradição.
NB 2: Como se vê da amostra de três fotos em cima e comparando com o conjunto, FA tirou em Malasche mais fotos da população do que em qualquer outro local habitado. Isso aconteceu certamente porque passou lá vários dias sem a companhia de outros membros europeus da comissão e teve assim contactos mais próximos com os habitantes mas, minha explicação prosaica, provávelmente também porque como estava a chegar ao fim da expedição já não teria tanta preocupação em guardar filmes como tinha tido até aí.

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