Prossigo a análise do artigo "The Lourenço Marques Frontier Limitation Committee and its pictorial records (Mozambique – 1891)" do académico Matheus Serva Pereira (MSP) sobre as fotos e o relatório da comissão com Freire de Andrade (FA) e Matheus Serrano (MS) de 1890 - série aqui.
Continuando o artigo anterior sobre as fotos com elemento humano africano que fazem parte da colecção do ACTD e das quais MSP seleccionou algumas para ilustrar a sua tese, diz ele: "The native Africans who emerge in these photographs appear almost as one more element in the landscape. Men for the most part appear with animals or together working as a group; they are never named. They were workers who accompanied the expedition, carrying equipment through rivers, building boats and risking their lives, but nothing is recorded about their stories".
Comecemos pelo aspecto do "anonimato".
Relativamente aos chefes das aldeias com que FA e MS foram falando pelo caminho, alguns foram nomeados no texto pelo nome da localidade dado que me parece que era também tradicional não haver distinção entre o nome próprio do chefe e o da sua localidade. Noto ainda assim haver fotos dum régulo que é identificado nas legendas como Dovil saindo do anonimato mas cujo nome (nem como nome de localidade) não aparece claramente referido no texto pelo que não sei se diz respeito aos contactos da comissão de 1890 de FA e MS - vimos uma foto dele aqui e veremos outra aqui pois servem para ilustrar o tema em discussão na ausência de alternativas.
Sobre o chefe Matsuléle do Pafuri / Limpopo a que FA se refere muito no texto, na legenda da foto que me parece ser dele FA optou por legendá-la "(Africanos) do Limpopo traje de festa". Mas sendo ou não essa foto de Matsuléle, temos de perceber qual era o objectivo de FA, pois para o leitor europeu era interessante ficar a conhecer os costumes e vestimentos de africanos, sendo o nome do régulo irrelevante. Certamente que FA podia ter também colocado na legenda o nome mas não me parece que essa legenda distorça algo da realidade, risco que é no fundo a maior preocupação das "novas teorias" sobre a fotografia colonial. Pelo contrário, a legenda que FA optou por colocar na foto ajuda enormemente a compreender (o contexto da foto) e por isso a conhecermos a realidade através da imagem.
Continuando o artigo anterior sobre as fotos com elemento humano africano que fazem parte da colecção do ACTD e das quais MSP seleccionou algumas para ilustrar a sua tese, diz ele: "The native Africans who emerge in these photographs appear almost as one more element in the landscape. Men for the most part appear with animals or together working as a group; they are never named. They were workers who accompanied the expedition, carrying equipment through rivers, building boats and risking their lives, but nothing is recorded about their stories".
Comecemos pelo aspecto do "anonimato".
Relativamente aos chefes das aldeias com que FA e MS foram falando pelo caminho, alguns foram nomeados no texto pelo nome da localidade dado que me parece que era também tradicional não haver distinção entre o nome próprio do chefe e o da sua localidade. Noto ainda assim haver fotos dum régulo que é identificado nas legendas como Dovil saindo do anonimato mas cujo nome (nem como nome de localidade) não aparece claramente referido no texto pelo que não sei se diz respeito aos contactos da comissão de 1890 de FA e MS - vimos uma foto dele aqui e veremos outra aqui pois servem para ilustrar o tema em discussão na ausência de alternativas.
Sobre o chefe Matsuléle do Pafuri / Limpopo a que FA se refere muito no texto, na legenda da foto que me parece ser dele FA optou por legendá-la "(Africanos) do Limpopo traje de festa". Mas sendo ou não essa foto de Matsuléle, temos de perceber qual era o objectivo de FA, pois para o leitor europeu era interessante ficar a conhecer os costumes e vestimentos de africanos, sendo o nome do régulo irrelevante. Certamente que FA podia ter também colocado na legenda o nome mas não me parece que essa legenda distorça algo da realidade, risco que é no fundo a maior preocupação das "novas teorias" sobre a fotografia colonial. Pelo contrário, a legenda que FA optou por colocar na foto ajuda enormemente a compreender (o contexto da foto) e por isso a conhecermos a realidade através da imagem.
Depois do "anonimato" dos chefes nas legendas das fotos, passemos agora ao "anonimato" dos auxiliares da expedição portuguesa. Isso é uma realidade mas vejo nesse caso também um sentido práctico dado que, para o que foi mesmo material e relevante em 1890, tanto FA e MS manifestam no texto sempre preocupação pessoal com os auxiliares que reconheciam como fundamentais para o bom desenrolar da missão. As muitas fotos dos auxiliares podem ser distribuidas em 3 categorias:
- grande grupo africano "junto" com os membros europeus, nestas há alguma separação "espacial" entre as duas partes mas a única descriminação de tratamento será os europeus estarem do lado mais próximo na foto;
- grande grupo africano em fotos semelhantes às anteriores mas sem os europeus;
- pequeno grupo ou auxiliares africanos individualmente, em trabalho.
Nos dois primeiros casos seria "impossível" registar os nomes dos auxiliares nas legendas das fotos, no terceiro caso seria exequível mas irrelevante e fastidioso para os leitores europeus. Penso que MSP na análise devia ter tido mais em consideração o objectivo do que FA e MS estavam a escrever e fotografar. Tratava-se essencialmente dum relatório oficial técnico-científico e/ou para divulgação no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (uma associação de pesquisa e divulgação científica) no qual enumerar trabalhadores que na esmagadora maioria tinham actividades indiferenciadas não seria normal, fosse para uma actividade em África ou noutro continente qualquer (ver NB 1).
Ainda sobre o "anonimato" é também de notar que só numa foto da comissão portuguesa é identificado um europeu, Matheus Serrano e em muitas outras em que tal até seria útil (por exemplo aqui) não é feito. Inclusivamente numa foto que concluímos ser de si próprio FA não colocou o seu nome na legenda nem referiu expressamente no texto que era dele, parecendo-me daí que era seu princípio não nomear pessoas nas fotos.
Quanto aos "africanos fazerem parte da paisagem" e tratando primeiro dos auxiliares da comissão, noto por exemplo que há fotos que podiam ter sido puramente da "paisagem" mas nas quais os africanos aparecem deliberadamente quando não era essencial aparecerem. Isso demontra que como é óbvio FA distingue bem os "africanos" da "paisagem" pelo que o que MSP diz parece no geral bastante exagerado. Explicarei isso melhor com as duas fotos seguintes que não foram escolhidas por MSP para o seu artigo mas que fazem parte do conjunto da comissão que ele analisou:
Então quanto aos "africanos fazerem parte da paisagem", nestas fotos e nas duas outras que se viram aqui, FA podia ter simplesmente mostrado o animal que seria estranho aos olhos europeus (a "paisagem"), mas FA quis incluir na foto também o "caçador africano". Note-se que FA podia ter-lhes pedido que se retirassem pois haver "um caçador" de caça não era dado novo para o leitor europeu. Penso assim que FA achou importante mostrar específicamente "estes caçadores", daí fazendo-os sobressair da "paisagem" e pelas seguintes razões:
1. FA estava a prestar-lhes atenções "individuais", registando-os para a posteridade (eles certamente terão ficado satisfeitos por não terem sido excluidos das fotos).
2. Na FOTO 2, FA estava a mostrar que em África, em 1890, os caçadores usavam espingarda, valorizando então aos olhos europeus a capacidade do africano se adaptar à "modernidade";
Penso que esta pequena análise demonstra que ao tentar-se julgar "moralmente" o passado tudo é complexo e subjectivo, MSP tenta sublinhar o "anonimato" africano nas fotos que seria um aspecto negativo das fotos da comissão, mas para estas duas fotos que padecem desse anonimato eu revelo / relevo dois aspectos positivos que poderão ter resultado de opções subjectivas de FA e que se sobreporão ao problema do anonimato.
Quanto ao texto, sobre os auxilares africanos há inúmeras passagens sobre eles e principalmente FA, que era novo em África, descreve em detalhe os seus costumes, a sua alimentação, os seus comportamentos e o seu trabalho, o que revela muito interesse da sua parte. Mas de facto trata-os mais como sendo um grupo, pouco é dito sobre eles individualmente. No entanto as referências de FA aos vogais da comissão, embora óbviamente nominais, são muito poucas e curtas e únicamente sobre aspectos profissionais, o que terá nos dois casos a ver com o tipo de relatório. Por isso para mim, olhando com os olhos actuais, o problema no relatório, para além da linguagem inaceitável de que já falei, é que FA via as idiosincracias dos africanos muito negativamente, a falta de mais referências pessoais ou a anonimidade dos auxiliares africanos não era o problema de fundo.
Continuo a análise ao artigo de MSP no próximo artigo falando mais específicamente sobre sobreserviência e autenticação de poder.
NB 1: Quanto ao anonimato dos auxiliares no texto, lembro-me duma pequena excepção em que FA diz o nome dum auxiliar que comia mais carne do a que preparava para o grupo. FA fez a observação de que tal comportamento não levantou reparos dos colegas, o que não aconteceria caso fossem todos europeus. Mas mesmo nesse caso, o que interessou esse nome para os leitores em comparação com a observação etnográfica que lhes terá chamado a atenção?
- grande grupo africano "junto" com os membros europeus, nestas há alguma separação "espacial" entre as duas partes mas a única descriminação de tratamento será os europeus estarem do lado mais próximo na foto;
- grande grupo africano em fotos semelhantes às anteriores mas sem os europeus;
- pequeno grupo ou auxiliares africanos individualmente, em trabalho.
Nos dois primeiros casos seria "impossível" registar os nomes dos auxiliares nas legendas das fotos, no terceiro caso seria exequível mas irrelevante e fastidioso para os leitores europeus. Penso que MSP na análise devia ter tido mais em consideração o objectivo do que FA e MS estavam a escrever e fotografar. Tratava-se essencialmente dum relatório oficial técnico-científico e/ou para divulgação no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (uma associação de pesquisa e divulgação científica) no qual enumerar trabalhadores que na esmagadora maioria tinham actividades indiferenciadas não seria normal, fosse para uma actividade em África ou noutro continente qualquer (ver NB 1).
Ainda sobre o "anonimato" é também de notar que só numa foto da comissão portuguesa é identificado um europeu, Matheus Serrano e em muitas outras em que tal até seria útil (por exemplo aqui) não é feito. Inclusivamente numa foto que concluímos ser de si próprio FA não colocou o seu nome na legenda nem referiu expressamente no texto que era dele, parecendo-me daí que era seu princípio não nomear pessoas nas fotos.
Quanto aos "africanos fazerem parte da paisagem" e tratando primeiro dos auxiliares da comissão, noto por exemplo que há fotos que podiam ter sido puramente da "paisagem" mas nas quais os africanos aparecem deliberadamente quando não era essencial aparecerem. Isso demontra que como é óbvio FA distingue bem os "africanos" da "paisagem" pelo que o que MSP diz parece no geral bastante exagerado. Explicarei isso melhor com as duas fotos seguintes que não foram escolhidas por MSP para o seu artigo mas que fazem parte do conjunto da comissão que ele analisou:
FOTO 1
Um gougônhe ou boi do mato (ACTD web_n4010) |
FOTO 2
Javali ACTD web_n3276 |
1. FA estava a prestar-lhes atenções "individuais", registando-os para a posteridade (eles certamente terão ficado satisfeitos por não terem sido excluidos das fotos).
2. Na FOTO 2, FA estava a mostrar que em África, em 1890, os caçadores usavam espingarda, valorizando então aos olhos europeus a capacidade do africano se adaptar à "modernidade";
Penso que esta pequena análise demonstra que ao tentar-se julgar "moralmente" o passado tudo é complexo e subjectivo, MSP tenta sublinhar o "anonimato" africano nas fotos que seria um aspecto negativo das fotos da comissão, mas para estas duas fotos que padecem desse anonimato eu revelo / relevo dois aspectos positivos que poderão ter resultado de opções subjectivas de FA e que se sobreporão ao problema do anonimato.
Quanto ao texto, sobre os auxilares africanos há inúmeras passagens sobre eles e principalmente FA, que era novo em África, descreve em detalhe os seus costumes, a sua alimentação, os seus comportamentos e o seu trabalho, o que revela muito interesse da sua parte. Mas de facto trata-os mais como sendo um grupo, pouco é dito sobre eles individualmente. No entanto as referências de FA aos vogais da comissão, embora óbviamente nominais, são muito poucas e curtas e únicamente sobre aspectos profissionais, o que terá nos dois casos a ver com o tipo de relatório. Por isso para mim, olhando com os olhos actuais, o problema no relatório, para além da linguagem inaceitável de que já falei, é que FA via as idiosincracias dos africanos muito negativamente, a falta de mais referências pessoais ou a anonimidade dos auxiliares africanos não era o problema de fundo.
Continuo a análise ao artigo de MSP no próximo artigo falando mais específicamente sobre sobreserviência e autenticação de poder.
NB 1: Quanto ao anonimato dos auxiliares no texto, lembro-me duma pequena excepção em que FA diz o nome dum auxiliar que comia mais carne do a que preparava para o grupo. FA fez a observação de que tal comportamento não levantou reparos dos colegas, o que não aconteceria caso fossem todos europeus. Mas mesmo nesse caso, o que interessou esse nome para os leitores em comparação com a observação etnográfica que lhes terá chamado a atenção?
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