Demarcação de fronteira com a ZAR em 1890 - Matheus Serrano até Iniant'chichi (26)

Neste artigo e no próximo falaremos com mais detalhe de José António Matheus Serrano (MS), o Condutor de Obras Públicas e na altura capitão do exército que participou em pelo menos duas das primeiras comissões de demarcação de fronteiras em Moçambique, em 1890 e depois em 1894 e aparece a seguir numa foto da colecção do ACTD da primeira delas. 
Como vimos repetindo, no relatório da comissão de 1890 a parte de MS é só relativa à sua exploração a partir do momento em que se separa de Freire de Andrade (FA). FA tinha aí coberto a fase comum com pelo menos três membros da comissão até Chicualacuala, depois com dois membros até Makiki e depois continuou a cobrir a sua missão individual até Inhambane. Devo dizer que me espanta a facilidade com que os dois, sendo militares e engenheiros por isso normalmente mais dados a relatos e factos, conseguiram através de escrita fluente e imaginativa tornar atractiva para o leitor comum a "narrativa". 
A foto seguinte deve ter antecedido de muito pouco a separação de FA e MS e dos respectivos grupos:

FOTO 1
Capitão [Matheus] Serrano e (africanos) que foram pelo Uahire ACTD)
Neste artigo vimos já o relato de MS de que FA "com grande receio (o) via partir para o desconhecido e sob os maus augúrios dos informadores" (ver NB 2). Como também dissemos num artigo anterior FA explica assim essa situação no seu relatório, pág. 59: "O Capitão Serrano resolveu aqui seguir ao longo do rio Ualuize, cujo curso estava pouco conhecido, e que não se sabia se ia à costa ou ao Limpopo, para o que levou comsigo provisões para dez dias e doze homens, deixando-me no dia 15 de outubro, depois das carretas nos terem novamente alcançado em Makiki".
Na foto temos MS e doze homens pelo que será o grupo que partiu à exploração do rio Ualuize. Desconheço a razão para a legenda mencionar Uahire dado que segundo MS o rio "tomava diversos nomes conforme os lugares por onde passa (M'ualuize, D'ualuize, Ualuize, Inhangude, Pongute ou Chengane", o último é o nome principal que tem agora, mas nenhum deles era Uahire. No entanto a legenda da FOTO 1 deste artigo referia-se ao Uahire ou Uahise (dois nomes que eram também dados como equivalentes aquie esse local pelo relato de FA deve ser uma margem do Ualuize. Como Uahise é bastante semelhante a Ualuize julgo então que os nomes de rio Uahire, Uahise e Ualuize mais os que MS disse em cima se equivalem
As aldeias da região em torno de Makiki tinham poucas palhotas e a sua população não excederia em média umas 10 pessoas.  Como se percebe muito bem pela descrição de MS, que aqui acompanharemos mais de perto, apesar ser de rica em vegetação e fauna, a razão para o seu despovoamento era a falta de água potável, problema que veio também a afectar os exploradores portugueses.
Para mais havendo pouca produção agrícola era muito difícil adquirirem à população a alimentação vegetal de que necessitavam para complementar a animal que podiam obter de caça e pesca. Os auxilares africanos foram aproveitando plantas comestíveis que conheciam mas certamente que não poderiam viver só / muito tempo com elas e era preciso administrar com cuidado por exemplo o arroz, milho e sal que a expedição transportava para que não se esgotasse antes de tornar vital. 
Olhando para a carta de Jeppe de 1892 mostrada a seguir podemos questionar porque motivo estando MS em Makiki (escrito aí Mokiki) se dirigiu ele para sul (= para a parte inferior da carta) procurar a "nascente" do rio Ualuize quando se vê que ela está para leste = à direita. Mas como já disse antes, temos de ter em conta que (e como FA disse na altura) não se conhecia bem a origem e direcção do rio Ualuize e que as informações locais que tinham até Makiki sobre a planície onde o rio nasceria era que "o Mabanini ficava para sueste (MS pag 108)". Recordo que a carta de Jeppe de 1892 é posterior à missão e integra os dados recolhidos pelos seus membros, na versão anterior que a missão terá consultado (e noutras cartas de que dispunham) essa zona devia estar vagamente representada e por isso os dados a partir dos quais FA e MS podiam ter tomado decisões eram circunstanciais. Não temos a versão da carta de Jeppe que a missão terá usado mas temos outras da mesma altura que devem mostrar o que era consensual para era zona e que mostraremos mais tarde
Como podemos ver na NB1 em baixo, relativamente à pág 106 do relatório, que logo a 16 de outubro, um dia depois de ter partido de Makiki (Mokiki, castanho claro na carta), MS foi informado pelo chefe de Chisseka / Cisseka (verde claro) que Mabanine (castanho escuro) ficava para nordeste e não para sul ou sueste. Todavia MS não pode imediatamente corrigir o rumo que levava porque para nordeste teria de atravessar uma densa floresta e para tal precisava de um guia que lhe indicasse o caminho por aí não tinha conseguido encontrar tal pessoa (mas pergunto, se o guia que MS tinha aí era de Machengua, que MS disse ser perto de Chisseca, então não conhecia essa floresta?). MS quis então ir para Iniant'chichi que ficava no caminho para sul, com a esperança de encontrar lá um novo guia e seguir de lá para Mabanine. A 17 de outubro após passarem por várias lagoas secas e encontrarem a lagoa Tinhane (Timbanhe na carta, azul e verde) com água amarela e espumosa mas que os auxiliares puderam beber (tinham andado a usar da que transportavam racionada), marchando um pouco mais o grupo de MS chegou a Iniant'chichi (vermelho). Tinha sido uma aldeia mais importante que as anteriores por onde passaram desde Makiki mas estava abandonada.
Olha-se a seguir para a carta de Jeppe de 1892 mostrando, como temos dito, que MS se separou de FA seguindo de Makiki para sul e marquei aí os pontos assinalados no texto de cima: .

Canto superior direito da CARTA DE JEPPE de 1892 (clique para aumentar)
disponibilizada pela Universidade de Illinois
Branco: percurso individual de MS, perseguindo o rio Ualuize 
mas caminhando inicialmente para sul - sudeste
Cinzento: percurso individual de FA, passou por Mabanine, seguiu um pouco
 o rio Ualuize e finalmente virou a leste na direcção de Inhambane
Castanho claro: Makiki (Mokiki), ponto de partida de MS
Verde claro: Siseca (ou Sisseca ou Chisseca), povoação a sul de Makiki
Azul e verde: lagoa de Tinhane / Timbanhe com água mas de má qualidade
Vermelho: Iniant'chichi, povoação abandonada - verl(assen) - para sul de Makiki
Castanho: Mabanine ou Banhine genéricamente, 
zona mista com lagoas e charcos e com áreas secas
Laranja: rio Ualuize, actual Chengane nasce nas lagoas da Mabanine
Outras cores: não são relevantes para esta parte do artigo
Jeppe identificou na legenda e escrevendo por exemplo acima de Riqueta a missão que marcámos a cinzento como sendo do capitão (Freire) d'Andrade, o que está correcto pelo que sabemos do relatório mas como sendo em conjunto com o Major (Caldas) Xavier, o que deve ser engano porque sabemos que este tinha iniciado dias antes a descida de bote pelo rio Limpopo
A informação pessoal que temos de Matheus Serrano (e que completaremos em artigos seguintes) é muito pouca e vem do livro "A Engenharia Portuguesa" do Eng. Lopes Galvão e publicado em 1940. Já dissemos daí que ele tinha participado com o Major Machado no estudo inicial da linha férrea para Pretória em 1882/83 e fica-se a saber que foi chefe de secção em LM das Obras Públicas e Governador Interino do Distrito.  Pelas legendas das fotos do ACTD vê-se que terá atingido o posto de general mas não encontro mais dados sem ser aqui o de que teve um filho em LM em 1889, quer dizer um ano antes da FOTO 1. Podemos ver um seu retrato quando era ainda capitão, o posto que tinha durante a comissão:


FOTO 2
José António Matheus Serrano - 
Capitão da Província de Moçambique (ACTD web_n6864)
O resumo do relato de MS para o percurso depois de Iniant'chichi continua no artigo seguinte.

NB 1: excertos do relatório de MA, da partida de Makiki até à chegada a Iniant'chichi:
MS da pág 103 para a 104: "Eu concebera ir reconhecer até á sua foz o rio Ualuize, que na carta do ministério da marinha vem pontuada, que o mappa do Transvaal, de Jeppe, nem sequer menciona, mas que Rita Montanha atravessou no seu regresso a Inhambane. Este rio devia ser importante, visto derivarem para elle os pequenos rios Umchlanganini, Mundji (aparece em Jeppe como Tundji), Gueguatzi e Umt'shefu determinados por Erskine em 1872. Os informadores diziam que estes rios iam dar a uma enorme planicie, onde as aguas se espalhavam, chamada Mabanini (castanho escuro) ou Banhini; o M'ualuize, D'ualuize, Ualuize, Inhangude, Pongute ou Chengane, taes são os differentes nomes que em diversos sítios toma o rio que me propuz seguir, suppoz-se que deveria ter origem nesta planície e seguir para o Limpopo, apesar de alguns informadores dizerem que d'aquella planície corriam as aguas para o Save".
pág 106: em Chisseca (Sisseca na carta, verde claro): "Interroguei em que direcção ficava Mabanini, que me foi indicada para nordeste, ... e prosseguimos em direcção a Iniant'chichi (vermelho na carta), esperançado em encontrar ali alguém que se prestasse a seguir-me, apesar de terem affirmado que aquella povoação estava abandonada. ....
Como o guia Chetimela disse que só podia prestar os seus serviços até Iniant'chichi, por nunca ter ido mais alem, quiz arranjar a que um dos homens d'aqui me acompanhasse; não foi possivel. A primeira proposta que fiz responderam logo que não. ....
pag 106: "Custava-me, é certo, seguir na mesma direcção, sul, quando a que mais me convinha era a nordeste, para o Mabanini; além, porém, de não encontrar n'esta direcção, segundo as informações, caminho algum, por ser o paiz coberto completamente pela grande floresta Kuati, que para nordeste se prolonga até Mabanini, e portanto não haver povoações onde podesse conseguir um guia, tinha toda a conveniência em ir a Iniant'chichi, onde, como já disse, o esperava achar."
pág 107: "Passámos junto às pequenas lagoas Manhune, Chinasso, Inhaboé, Sabacangua e Chantorna (as cinco estão na carta, marquei Timbanke que aparece a seguir para sul a "verde e azul"), indo acampar junto de outra sem nome que como aquellas, estava completamente enxuta." 
pág 108: Em 17 (de outubro) fiz levantar mais cedo o acampamento para chegar depressa a Iniant'chichi. ....  Pouco depois chegámos a Iniant'chichiSenti, porém, invadir-me o receio pelo futuro, ao ver a povoação completamente abandonada e os campos incultos! Tinha de avançar confiado unicamente nas informações que aos haviam dado até Makiki. Ali disseram-nos que o Mabanini ficava para sueste; no ponto onde agora estava devia seguir a direcção este-nordeste para encontrar aquella planície o mais perto possivel ; bem podiam as aguas correr a este e marcharmos por muito tempo ao seu encontro (o que MS devia querer dizer é que se o rio corresse para este, quer dizer para a zona de Inhambane podia ser mais difícil de ser encontrado pelo grupo do que se corresse para sul ou sudeste, quer dizer se fosse afluente do Limpopo. Noutro artigo tentaremos explicar melhor que se FA e MS por um lado estavam "perdidos" por outro não o estavam completamente).  

NB 2: Transparece do diálogo entre FA e MS que a missão de MS seria mais perigosa que a de FA e penso que as razões são que FA iria continuar a seguir um rio (o Tundgi) enquanto MS ia para uma região onde segundo os informadores faltaria água e mantimentos e iria à procura de um rio para o qual a informação era vaga e que estaria longe de qualquer modo. Por outro lado FA continuava a companhado por Hiron, o empresário das carretas, e por Loforte, o chefe dos carregadores, que lhe podiam dar ajuda se ele necessitasse por exemplo em caso de ferimento ou doença enquanto, que MS partiu só com carregadores africanos suponho que menos capazes por exemplo de lhe prestarem primeiros socorros de tipo ocidental.

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