Demarcação de fronteira com a ZAR em 1890 - MS de Iniant'chichi ao Ualuize e a Magimani (27)

Continuo o artigo anterior sobre a missão individual de exploração do capitão Matheus Serrano (MS) que se seguiu à actividade da comissão de demarcação de fronteira entre Portugal (Moçambique) e a ZAR (Zuid-Afrikaansche Republiek SAR dos boer, parte da actual África do Sul) em 1890.
Primeiro na FOTO 1, MS que parece estar com idade semelhante àquela com que o vimos na foto do grupo à partida de Makiki. De facto aqui ele tinha o mesmo posto de capitão do exército que tinha ao tempo da comissão e por isso teria à volta de 30 anos de idade (essa era a idade do também capitão Freire de Andrade (FA), nascido em 1859). 
Não sei como contava o tempo de serviço para estes militares que alternavam posição nas fileiras com o funcionalismo público civil mas certamente continuavam a progredir de posto, dado FA e MS terem chegado ao posto máximo de general, tal como o Major Machado que a partir de 1877 e da sua participação na expedição das Obras Públicas já como civil muito pouco tempo mais terá tido de serviço militar efectivo. 
Como disse antes não encontro biografia de Matheus Serrano por isso não sei por exemplo que participação teve ele nas campanhas militares portuguesas no sul de Moçambique de 1894 - 1897 em que os seus colegas de comissão que por circunstâncias várias estavam lá, Freire de Andrade (na engenharia militar da campanha e sob fogo no combate de Magul) e Caldas Xavier (no comando efectivo da força no combate de Marracuene), tiveram actuação muito destacada, óbviamente do lado português. 


FOTO 1
José António Matheus Serrano (ACTD)
Esta foto tem a informação de que é do "Capitão da Guarnição da Província de Moçambique (actualmente General Reformado)". 
Usando a foto de cima e a outra dele também em uniforme vista no artigo anterior, penso que se pode confirmar estar MS também na foto que já vimos da comissão no Pafuri.


MONTAGEM
a. provávelmente MS no Pafuri mas não se consegue ver bem a face característica
b. e c. fotos de MS em uniforme

Continuo agora com o sumário do relato da missão individual de MS a partir da localidade de Iniant'chichi onde MS e o seu grupo tinham chegado a 17 de outubro vindos do norte e donde esperavam partir para nordeste à procura da fonte do rio Ualuize (ver mais do original em NB1 em baixo). Como dissemos MS tinha levado o grupo a caminhar para sul na esperança de encontrar nessa aldeia um guia que os levasse a atravessar a floresta que os separava de Mabanine onde provávelmente estaria a nascente do rio. Estando essa aldeia abandonada não o conseguiram mas no entanto o guia que os tinha acompanhado até aí aceitou continuar, embora não conhecesse o terreno daí para a frente. Nesse mesmo dia 17 de outubro MS instruiu o guia para procurar caminho na direcção Este - Nordeste tendo ele próprio ido para Este e retornando cada um deles pelo caminho do outro. 
Junto a Iniant'chichi encontraram água de qualidade razoável na lagoa Baunje e partiram daí a 18 de outubro passando pela povoação abandonada de Marovisse com uma lagoa da qual com sacrifício puderam beber água. Marchavam como se vê na carta de Jeppe ainda para leste mas pouco depois flectiram para nordeste tendo encontrado nessa direcção uma floresta de árvores espinhosas e sem caminhos trilhados. A 19 de outubro continuaram essa rota tentando seguir em linha recta, estava calor e tinham dificuldade em encontrar água potável pelo que tinham de beber a da ração. A 20 encontraram um bosque cerrado que tiveram de rodear e mesmo assim tendo de cortar ramos para poderem passar. Os carregadores já não tinham outro recurso senão beber água salobra e suja de poças. Não tinham comprado mantimentos desde a partida no dia 15 pelo que iam gastando os que carregavam. Na manhã do dia 21 de outubro MS receava dificuldades acrescidas mas à noite o guia e o caçador do grupo regressaram duma das missões exploratórias informando que tinham encontrado Mabanine. O grupo partiu na manhã do dia 22 de outubro e foi ainda nesse dia que entraram nessa enorme planície e podemos ver em baixo por que ponto isso aconteceu na carta de Jeppe. 
Na grande planície de Mababine continuou a dificuldade de encontrarem água doce pois os rios da região arrastam solos muito mineralizados. Apesar disso parece que MS encontrou menos dificuldades que Freire de Andrade (FA), as quais devem ter sido exacerbadas pela espera pela deslocação das carretas na altura já só puxadas por burros. 
MS continuando a caminhar para noroeste na planície continuou à procura das lagoas que estariam na origem do rio Ualuize e encontrou uma com cerca de 2 a 3 k de comprimento de largura e cujo comprimento se perdia de vista, devia ser a lagoa de Bembe (carmesim na carta). A vegetação e o terreno da planície eram semelhantes à que tinham visto em Makiki, árvores espinhosas, trepadeiras, palha e areia solta e viam-se grandes animais selvagens. 
No dia 24 de outubro continuaram a avançar pela margem direita dessa lagoa e pela primeira vez desde que tinham estado em Cisseca a 16 de outubro encontraram um habitante, o chefe da povoação de Bacelle (verde na carta) com 7 pessoas. Por perto estava a lagoa de Chicarre (azul escuro na carta) donde viram sair o rio Ualuize, o "santo graal" para Matheus Serrano. O rio, agora Chengene, "nascia" na ponta a nordeste das planície com lagoas de Mabanine como se pode ver no google maps
MS pode observar que as suas águas eram salgadas e quanto ao prosseguimento da expedição segundo o chefe Bacelle só daí a dois dias de marcha seria possivel encontrar povoações nas margens que tivessem comida em excesso para vender, mas como veremos foi bastante optimista. O grupo de MS viu uma fogueira em Makiki que ficava a 2 dias de viagem e que devia ser do grupo de FA que ainda lá estaria.
A 26 de outubro MS e o seu grupo sairam de Bacelle guiados pelo chefe da povoação para leste até encontrarem o Ualuize que seguia para sudeste. Nessa zona o rio confundia-se com lagoas, a sua largura variando entre partes de 500 a 600 metros e outras de um metro. Numa dessas MS detectou corrente fraca pelo que confirmou tratar-se de um rio. Certamente MS terá logo observado que nessa direcção ele não pertencia à bacia hidrográfica do Save, que ficava mais para norte, o que era já uma resposta essencial a dúvidas antigas. A 27 de outubro, mais à frente no curso do rio MS notou que a corrente tinha aumentado pelo que concluiu que teriam passado por mais nascentes do rio (de facto se fosse só o declive no terreno que tivesse feito aumentar a velocidade da água o seu curso seria mais mais estreito porque estaria limitado pelo fornecimento da água a montante). 
A 28 de outubro estiveram na localidade em Majimane (Magimane) da qual tinhamos já falado aqui por FA ter por lá passado também, mas notemos que MS estava aí a passar em primeiro lugar. 
Pode-se visualizar o percurso de MS com a carta de Jeppe, que poderia ter sido feita a partir da sua leitura do relatório e um pouco de criatividade. Todavia como ela indica as altitudes do terreno que não constam do relatório, pelo menos esses dados tiveram de ser dados por MS ou por alguém a seu mando a Jeppe. Note-se que o mesmo se passou com a localização dos campos ou acampamentos do grupo de MS pois ela não consta do relatório de MS (que não tem a tabela dos campos ou outras datas e coordenadas no percurso como a preparada por FA para o comum e depois para o individual) e está na carta:  

Canto superior direito da CARTA DE JEPPE de 1892 (clique para aumentar)
disponibilizada pela Universidade de Illinois
Cinzento: percurso individual de FA, atravessando Mabanine, passando por Majimane virando mais à frente na direcção de Inhambane
Branco: percurso individual de MS, a partir de Mabanine 
seguindo o rio Ualuize para sul - sudeste
Castanho claro: Makiki (Mokiki), ponto de partida do grupo de MS
Vermelho: Iniant'chichi, povoação abandonada
Carmesim: lagoa de Bembe
Verde: aldeia de Bacélle
Azul escuro: lagoa Chicarre ou Schicárr 
Castanho escuro: Mabanine ou Banhine genéricamente
Laranja: rio Ualuize, actual Chengane nascendo nas lagoas da Mabanine
 (na de Chicarre, ligada à Bembe)
Púrpura: Magimane na margem esquerda do Ualuize
Azul claro: rio Tundgi ou Mundgi, era um dos tributários das lagoas
Outras cores: não são relevantes para esta parte do artigo
Em Majimane (Magimane) MS e o seu grupo beberam alguma água numa lagoa mas não havia comida para comprarem, contráriamente ao que o guia até aí, o chefe Bacelle, tinha previsto. O chefe Majimane avisou que seguindo pela margem do rio a povoação mais próxima ficava a 5 dias e que não haveria água potável até lá pelo que MS e o seu grupo de 12 homens teriam de viver das rações. 
Como no artigo anterior, para complementar o relato da missão mais duas/três fotos de Matheus Serrano, tiradas muitos anos depois dos trabalhos que temos vindo a acompanhar. Das legendas  presumo que MS era militar do quadro de Moçambique, quer dizer nunca regressava à "Metrópole" salvo presumo para gozo de licença. 
Nesta foto presumo que MS seria ainda tenente-coronel embora na legenda posterior fosse indicado o posto posterior de general:


FOTO 2

 José António Matheus Serrano. Tenente Coronel
do quadro de Moçambique. General reformado
(ACTD web_n6824)
NB1: Mais excertos do relatório de MA, recomeçando a partir da parte final da última citação do artigo anterior e de após a chegada a Iniant'chichi:
pág 108: "Em 17 (de outubro) ....no ponto onde agora estava devia seguir a direcção este-nordeste para encontrar aquella planície (de Mabanine) o mais perto possivel ; bem podiam as aguas correr a este e marcharmos por muito tempo ao seu encontro".
pág 110: "Andamos agora ás apalpadellas ; alem de não haver caminho, seguimos através uma densa matta do arvores curtas, mas muito espinhosas. De vez em quando faz-se uma pequena paragem para ver o que há adiante ou ao lado ; tenho receio que me falte a agua até ao Mabanini (castanho escuro, zona geral) .... Não devo estar muito distante do Mabanini. ... De Iniant'chichi deve existir algum caminho para Mabanini, mas esse caminho desappareceu-nos na lagoa Marrovisse por de ha muito não ser trilhado." 
pág 111: na manhã de 19 de outubro "Estou realmente assumindo uma responsabilidade tremenda; não o mostro para que os homens m'o não conheçam, mas comprehendo, depois de tantas e tão más informações, que estou correndo grave risco de encontrar sérios embaraços na empreza que encetei . . . Em caso extremo cortarei ao norte (direcção donde ele tinha partido para sul mas mais a oeste) até encontrar novamente o caminho das carretas (porque FA com elas seguia por aí)."
".... Em 20 (de outubro) levantámos o campo e resolvi então seguir sempre em linha recta. Avançámos perfeitamente bem durante uma hora, mas depois dei de frente com um bosque de grandes arvores espinhosas enlaçadas por milhares de trepadeiras formando um bosque tão cerrado que me vi obrigado a rodeal-o em parte, passando ainda assim com o emprego do machado, da fouce e de facas".
pág 112: "Em 21 (de outubro) acordei fraquíssimo, quasi nem força tinha para me vestir ; arrastei-me, comtudo, no proseguimento da marcha, não sem deitar fora o chá que havia tomado antes. E nao é desanimo o que sinto, nâo, pelo contrario, quando algum obstáculo se offerece faço-o estudar pelo guia e vou eu também. Apesar de fraco raras vezes descanso. No emtanto sinto avolumar-se-me no espirito o receio pelo futuro da expedição. 
O Gongunhama fez a viagem com a sua gente a marchas forçadas, morrendo ainda assim muitos dos que o acompanhavam. Vejo que o paiz é completamente deshabitado e que o Mabanini se vae distanciando. Anceio chegar ali para saber o que nos aguarda".
pág 113: "O guia .., no seu regresso com o caçador, deu-me uma noticia que nos animou bastante: tinham encontrado o MabaniniNa manhã de 22 (de outubro) partimos, emfim, em busca do decantado Mabanini ... Foi, pois, com grande alegria que, depois de ter atravésado algumas lagoas seccas, desembocámos no Mabanini". 
da pág 113 para a 114: "É difficil apreciar á simples vista a extensão d'esta enorme plani- 
ie, coalhada de pequenas lagoas de agua salgada; entre norte e leste e entre oeste e sul. Só ao longe, muito ao longe se avistam, do ponto onde cheguei, algumas raras arvores bastante distanciadas entre si; e entre oeste e norte a 900 metros proximamente forma-se 
uma pequena ilha coberta de palmas bravas, prolongando-se ainda a planicie do outro lado"
pág 114: ".... fomos em busca das lagoas que deviam dar origem ao rio Uâluize (laranja normal), caminhando sempre para noroeste. ... Chegámos, emfim, a uma enormíssima lagoa de que não podia determinar o comprimento; perdia-se de vista no horisonte; a largura tinha em alguns pontos, até onde a vista alcançava, 2 ou 3 kilometros. ... A vegetação e o terreno percorrido até hoje não tem feito differença alguma do do Makiki: sempre as mesmas arvores espinhosas, as mesmar trepadeiras, a mesma palha rara e dura e a mesma areia solta. Como o Mabanini é coberto completamente pelas aguas das chuvas apresenta-se o solo no tempo da estiagem mais consistente e a relva mais verde e espessa; no emtanto, alem de alguns rachiticos arbustos muito espinhosos e despidos de folhas, como que queimados, não se vê arborisação alguma em toda a região lavada pelas correntes. Este facto é devido de certo á quantidade de saes de que estão impregnadas as aguas que vêem das regiões superiores conduzidas até aqui pelas ribeiras".
pág 116: "Durante a noite de 23 para 24 (de outubro)  e até ás sete horas da manhã d'este dia trovejou e choveu torrencialmente ... Em 24 avançámos, seguindo a margem direita da lagoa. Tanto esta como todas as que n'estes dois dias temos encontrado, são marginadas por espessos caniçados que só os cavallos marinhos podem vencer .... As cinco horas da tarde, vendo um bando de gangas, á distancia de 300 metros, approximei-me com precaução para lhes dar caça, mas... de repente esqueço gangas, esqueço tudo e deito a correr; vira um (africano). Estávamos na povoação de Bacélle (marca verde).. que se escondeu no mato durante a passagem do Gungunhana, e veiu agora ha pouco estabelecer-se n'este ponto ... Esta extensa planicie é aqui denominada Bánhine (ou Mabanine, castanho escuro) e a lagoa chama-se Bêmbe (marca carmesim) . A povoação dista 2,5 milhas do extremo da lagoa Bêmbe, que aqui toma o nome de Schicárr (Chicarre, marca azul escuro) por estar separada d'aquella por uma pequena parte pantanosa".
pág 118: "É da lagoa Schicárr que sae rio Uâluize (laranja normal); segui-o com prazer por meia hora. Tinha-o encontrado, emfim. Não mo causou grande surpreza ver que eram completamente salgadas as aguas do rio ; já o esperava, visto que têem a mesma proveniência das da lagoa Bêmbe e outras lagoas do Banbine ; não deixava comtudo de me sobresaltar por prever que algumas vezes me havia de faltar agua potável".
pág 119: "Em 26 (de outubro) encetámos a marcha, saindo de Bacélle em direcção a este, encontrando duas horas depois o rio Uâluize, que corre sensivelmente para sueste".
pág 121: "Em 28 (de outubro) passámos próximo a uma povoação de alguma importância, 
Màgimani (púrpura), e ali nos fornecemos de agua das chuvas conservada em lagoa. O chefe nada tinha que nós vender; offereceu-nos sura e fumo".

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