John Orr's em LM - sistemas internos de movimentação de cash (9/9)

Continuamos a falar do grande armazém da firma John Orr em Lourenço Marques (LM), actual Maputo na Av. da República, actual 25 de Setembro mas passamos a assunto complementar. Da reportagem do jornal LM Guardian aqui referida sobre a sua inauguração em 1953 constava o seguinte: "(no primeiro andar) ocuparam-se ainda os técnicos com os tubos Lamson, que vão dar às caixas, automáticas, mas precisavam de afinação"
Vejamos então do que se trataria e encontramos aqui e aqui (cashrailway) que a companhia Lamson foi criada em 1882 nos Estados Unidos por William Lamson para aplicar uma sua invenção: "In 1879, while proprietor of a small dry goods store..., he conceived the idea of lessening labor and the confusion incident to receiving cash and making change by his device for the transfer of money". 
A Lamson seguiu uma estratégia corporativa muito agressiva, tanto desenvolvendo novos produtos como afrontando e/ou comprando "start-ups" com novas ideias no mesmo ramo. Acabou assim por ser o maior dos fabricantes de sistemas que movimentavam por exemplo dinheiro e papéis em grandes lojas permitindo a concentração da manipulação do dinheiro dos pagamentos em caixas centrais (que típicamente ficavam ao centro de cada piso) e evitando a deslocação de funcionários (os de balcão ou cash boys ou girls só para essa tarefa) entre elas e os balcões de atendimento ao públicoPara além de aumentar a eficiência e rapidez o sistema reduzia também os assaltos  - aqui uma caixa gradeada - e os desvios internos (melhor site sobre o tema, atlasobscura). Como foi dito anteriormente, na época de que aqui falamos, início dos anos 50, todos os pagamentos nas lojas eram ainda feitos em espécie (cash). Os cartões de pagamento de uso geral tinham acabado de aparecer (Diners Club em 1950) mas a sua adopção primeiro dentro dos Estados Unidos e depois para fora deve ter sido gradual tanto geográficamente como em termos de abrangência de nível económico / social dos utilizadores.
O primeiro sistema de movimentação de cash foi feito com bolas (ocas) que levavam o dinheiro ou papéis no interior e que se movimentavam entre terminais (um aqui) em guias primeiro de madeira e depois de metal (aqui parece estarem restos mas não tenho a certeza).
Para ultrapassar algumas desvantagens de instalação e operação do sistema de bolas, surgiu para o final dos anos 80 do século XIX o sistema de cabo / wire em que um pequeno (ou maior, ver aqui) carro com um recipiente se deslocava pendurado por roldanas ao longo de cabos de aço.
Temos a seguir uma primeira imagem dum desses sistemas de wire carrier e da marca Lamson (a mesma que forneceu o John Orr de LM) aparecendo o empregado de balcão com a mão no recipiente ainda acoplado ao carro que veio pelos cabos suspensos até ao seu posto de atendimento ao público: 

IMAGEM 1
Lamson wire line carriers (aqui e aqui)

O texto sobre o sistema da gravura de cima dizia (adaptado): “Nos sistemas com cabo o recipiente é acoplado a um carro com roldanas que corre ao longo de fios presos entre as estações emissora e receptora. Pode haver um único ou um par de cabos. A caixa pode ser impulsionada por gravidade, por uma catapulta, etc".
Escolhi para a montagem seguinte três fotos desse sistema de cabo (wire). Pontos principais são um elástico que era puxado pelo empregado do balcão (imagens aqui e aqui do site cashrailway) e que a certa altura (ultrapassado um mínimo de deslocação) libertava uma peça que oscilava em torno dum eixo (devia funcionar como o cão de revólver) e que ia percurtir no carro (foto aqui) ao qual o recipiente era acoplado. Como o carro estava suspenso no cabo metálico pelas roldanas bem polidas para reduzir o atrito e o pequeno recipiente e o seu conteúdo muito restrito eram leves, essa pancada era suficiente para o carro ser lançado dessa posição para a de destino no fim do cabo que passava sobre esse balcão (mais tarde introduziram-se motores eléctricos nos sistemas de cabo):

MONTAGEM 1 (wire system)
Vermelho, em duas das fotos: recipiente cilíndrico em madeira
 acoplado ou atarrachado ao ...
Roxo: carro metálico com encaixe em baixo para ele e duas roldanas por cima
Verde: cabo de aço onde se desloca o carro suportado por roldanas
Castanho escuro: catapulta, com movimento do tipo
 de cão de revólver mas mais dinâmico
Laranja: elástico grosso que quando puxado pela pega, a certo ponto 
fazia saltar a catapulta que accionava o carro
Seta preta: pega que puxada para baixo dá força ao elástico
e desencadeia o movimento do carro para a próxima estação.

Parece-me que na foto do canto superior direito (a preto e branco) em que não se vê o carro (nem o seu recipiente) o fotógrafo quis captar o momento em que a catapulta tinha acabado de propulsioná-los para a esquerda e por isso a catapulta estava ainda virada para o lado do cabo e a funcionária estava ainda com a mão na pega que tinha acabado de puxar para baixo (na posição de descanso ela ficava em cima como também aparece na IMAGEM 1). Note-se que se a caixa central de cada piso fosse colocada um pouco acima do nível dos balcões - para o que bastava colocá-la sobre uma plataforma de madeira - ao caixeiro para devolver o troco ao balcão bastava deixar descer o carro pelo cabo da sua caixa central até à origem, quer dizer evitava-se que na caixa central se tivesse de puxar pela pega / elástico.
Aqui podemos ver texto mais específico e fotos do sistema de cabo da Lamson. De notar ainda que num armazém com balcões em vários pisos mas só uma caixa central teria de haver um elevador e em cada andar um funcionário que recebia e enviava cada uma dos recipientes (acoplados aos carros metálicos) para o seu destino específico (nessa função não podia estar pessoa muito distraída ...).
Veremos agora a geração seguinte destes equipamentos, feitos como os dois anteriores (primeiro o das bolas nas calhas e a seguir o dos carros com recipentes nos cabos) para movimentar pequenas cargas em escritórios e espaços comerciais. Trata-se dos sistemas pneumáticos que surgiram para o final do século XIX (19) e se tornaram populares nas primeiras décadas do século XX (20) - embora co-existissem com os anteriores - e nos quais a firma Lamson e o seu grupo de companhias foram também actores dominantes
Vemos a seguir uma loja de moda na qual só com atenção se vê instalado um sistema pneumático, facto esse que dá logo a entender uma das suas vantagens:

FOTO 2
Rosa: duas estações de sistema pneumático junto a balcões
"Modern draper (London: Caxton, 1924)"

Na loja da FOTO 2 não havia cabos suspensos e nem carros metálicos com os seus recipentes acoplados movendo-se pelo "ar". Nessa loja os tubos andariam algures pelo chão e depois subiam na vertical e curvavam-se para nas aberturas pouco acima dos balcões deixar latas cilindrícas (canister) que traziam (ou levavam) cash e papéis 
Os sistemas pneumáticos eram então visualmente menos intrusivos que os anteriores de bola e de cabo mas a sua instalação exigiria mais adaptações nas placas de piso e nas paredes dos edifícios para fazer passar os tubos. 
Dum video explicativo no canal vox retiro o princípio de funcionamento dos sistemas pneumáticos. Pretende-se fazer deslocar a lata cilíndrica (canister) através do interior do tubo da estação da esquerda para a da direita. Para isso acontecer o operador carregava num botão que remotamente accionava a ventoinha que rodando no sentido dos ponteiros do relógio criava vácuo do lado da chegada:
Na etapa seguinte à de cima e se fosse numa loja, para devolver ao cliente o troco do pagamento e o recibo, da estação da direita para a da esquerda, a ventoinha tinha então se ser accionada no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio para soprar ar para o tubo. Dependendo da potência da ventoínha e das curvas na instalação dos tubos este sistema tinha a vantagem, em relação aos de canos, de poder passar directamente entre vários pisos, sem necessidade da intervenção humana que era necessária com o sistema de cabos.
No que respeita à estrutura na planta da loja, o sistema pneumático era como os anteriores com os tubos fazendo muitas ligações individuais ponto-a-ponto entre os balcões e a caixa central (ver NB 1). Neste filme podemos ver uma caixa central que funcionaria com 9 balcões mas na foto seguinte aparece uma concentração muito maior de tubos que estariam na posição central dum sistema desses mas presumo que fosse numa empresa ou instituição onde houvesse muita movimentação interna por exemplo de documentos. Repare-se na tabela à esquerda da foto onde devia estar escrito onde cada tubo ia dar, cada um tinha a sua referência marcada junto à abertura - ver video aqui especialmente sobre sistema Lamson usado no parlamento australiano:

FOTO 3
Miss_Helen_Ringwald_works_with_the_pneumatic_tubes (wikimedia)

Depois desta longa introdução para falar principalmente dos sistemas de cabo e pneumáticos, volto ao grande armazém do John Orr em LM. Dissemos então que a reportagem do jornal em 1953 referia tubos Lamson, o que à priori significaria um sistema pneumático do fabricante de que falámos acima. Mas no post no grupo de FB Alto Maé LM sobre o John Orr que já referimos a propósito das secções do estabelecimento, algumas pessoas conhecedoras da loja disseram - em linguagem informal como é natural - o seguinte:
ML Fernandes (MLF): "Qual era o armazém que tinha uns cabos que ligavam os balcões de vendas à caixa? ... Parecia um mini teleférico que vinha com o recibo e o troco ...". Esta descrição parece apropriada para um sistema de cabo enquanto que o jornal para o John Orr falava de tubos. 
MJ Azevedo (MJA), antiga chefe da caixa do John Orr e referindo-se específicamente ao seu posto de trabalho: "na quadra de Páscoa e Natal, era uma loucura, os tubos não paravam de cair". MJA fala expressamente de tubos a cair pelo que tinha de ser o sistema pneumático, como vimos no sistema de cabo os recipientes embora cilíndricos seriam curtos demais para serem chamadas de tubos e não caíam automáticamente, era preciso retirá-los dos carros quando estes chegassem. 
I Barbosa (IB), também antiga funcionária do John Orr: "ficava no escritório, fiz tantos tantos trocos...". IB confirma que havia uma caixa central e um sistema de movimentação interna no John Orr. Mas como vemos nem o jornalista nem estas testemunhas abalizadas clarificam de que tipo seria o sistema.
Colocada a dúvida, foquemos então de novo na foto de Carlos Alberto Vieira dita do interior do rés do chão no derradeiro John Orr's de LM na Av. da República: 

FOTO 4
Balcões de duas / três secções do John Orr em LM (presumivelmente)

Claramente não se vê nesta foto cabos suspensos do tipo dos da IMAGEM 1 e MONTAGEM 1 cruzando o armazém e terminando algures sobre os balcões, de que MLF disse se lembrava num post acerca do John Orr.
Por outro lado e não podendo ser definitivo também não me parece que nestes balcões estivessem tubos em curva que fariam parte dum sistema pneumático como os marcados a rosa na FOTO 2. Assim não consigo confirmar visualmente o que o LM Guardian e MJA disseram, será que só havia esse sistema no primeiro andar pois é a esse que o jornal se refere embora também possa ser interpretado que os havia por todo o lado?
Poderia também ter havido um sistema pneumático primeiro (em conformidade com o que o jornal e MJA disseram) e ter sido depois substituido por um de cabos (em conformidade com o que MLF disse) mas tal seria contra o que foi a evolução destes sistemas. Resumindo, fico na dúvida sobre o que se passou no John Orr de LM no que respeita aos sistemas de movimentação de cash de que aqui vimos falando.
Outro comentário no FB Alto Maé LM é de L Reis-Guibebe: "Se não estou em erro, além do John Orr's, também a Casa Coimbra, o LM Bazar e a Casa Fabião da Consiglieri Pedroso tinham sistema semelhante". L Reis-Guibebe não especifica a que sistema(s) se referia, se ao de cabos e/ou ao o pneumático ou se estava a ser genérico. 
Do John Orr e de duas das outras lojas não me lembro, mas do Bazar LM  penso que recordo algo que pelo que sei agora seria um sistema de cabos. Via-se os seus elementos fixos e móveis no ar e tenho até vaga ideia dos ruidos dos elásticos a ser puxados pelos empregados para lançarem os carros nos cabos, das roldanas dos carros a rodarem e do choque dos carros nas peças metálicas da estação de destino que produziam um som como o de um sino. Mas tudo isto com um ponto de interrogação muito grande sobre as minhas capacidades de conservação de informação muitas décadas depois, posso até ter visto estes sistemas em Johannesburg e estar agora a confundir com LM.
Encerra-se então aqui a série sobre o John Orr's em LM, a cadeia sul-africana de grandes armazéns que se implantou na cidade capital de Moçambique em 1919 e que inaugurou aí um grande edifício em 1953.

NB 1: Em vez do sistema com topologia em "estrela" que era aplicado nos sistemas que vimos aqui até aos anos 50, poderíamos imaginar um tubo dando a volta por todos os balcões e pela caixa central e os recipientes / contentores a caírem nos terminais a que estavam destinados. Esse sistema teria disposição mais simples e permitiria também a ligação entre todas os balcões e não só entre cada um deles e a caixa central. Mas a outra face da moeda é que não havia meios técnicos para se fazer essas separações num tubo comum e que eles só terão aparecido depois. De facto essa solução parece que agora existe com dispositivos electrónicos e routers (roteador) pneumáticos.
NB 2: É possível que em português estes sistemas que na wikipedia estão identificados como sendo "sistemas de transporte pneumático, tubulações de cápsulas ou tubulações de Lamson" se chamem bezidróglios mas não estou seguro que essa palavra seja específicamente aplicada a eles ou que signifique só complexidade e por isso se ajustasse. Também é possível que essa palavra seja muito mais recente que os sistemas por isso eles na maioria da sua vida em português não foram por ela representados.

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