LM em 1941 por António de Navarro: a cultura e o AHM (2/2).

Continuando o artigo anterior, António de Navarro, homem do algodão e de cultura nas horas vagas, sobre o aspecto cultural da cidade de Lourenço Marques (LM), actual Maputo dizia que em 1941 era "francamente pobre". Referia sómente o Núcleo de Arte mas com um ponto de interrogação e António Caetano Montês como historiador e funcionário da Biblioteca anexa à Estatística, cujo chefe era o Capitão António Figueiredo.
Não encontro foto pessoal mas pode ver-se aqui um resumo da Presidência da República Portuguesa sobre o Tenente Caetano de Carvalho Montez [Santarém, 1900 - Lisboa, 1972] que deve ser o mesmo que Navarro conheceu a propósito duma condecoração atribuída em 1962. Diz esse texto que ele "foi um militar, funcionário da administração ultramarina (Moçambique) e historiador, escritor e tradutor português. É autor, entre outras, das monografias "Descobrimento e fundação de Lourenço Marques: 1500-1800" (1948), "A fortaleza de Sofala" (1954), Mouzinho: governador de Lourenço Marques (1956), para além de inúmeros artigos publicados em revistas e periódicos editados em Moçambique. Traduziu a obra de Sydney Welch - A África do Sul sob El-Rei D.Manuel 1495-1521, editada em Moçambique em 1950."
Este será o trabalho mais importante de Caetano Montez e de 1948 (e não Montês como Navarro escrevia): 
 Descobrimento e Fundação de Lourenço Marques 
por Caetano Montez  (pdf completo no site macua

Num artigo da Cambridge University Press sobre o início do Arquivo Histórico de Moçambique (AHM) diz-se que terá sido criado em 1934 mas implementado passo-a-passo entre 1938 e 1940. Originalmente fazia parte da Biblioteca do Departmento de Estatística e de 1943 a 1963 foi chefiado pelo Tenente Caetano Montez, o que nos faz entender porque Navarro dizia que Montez era funcionário da Biblioteca anexa à Estatística e podemos daqui conformar que o historiador e funcionário era um militar (o que Navarro não dizia mas estava no resumo oficial da Presidência).
Podemos juntar ao tema o interessante depoimento num boletim do AHM número 2 de Outubro de 1987 do Sr. C. N. Nhaca dizendo que por esses anos (1942) tinha ido trabalhar, penso primeiro como pedreiro e depois como empregado para toda a obra, para o AHM nos primeiros tempos e referindo também a Estatística. Disse o Sr. Nhaca:
"Depois, quando vim para a Estatistíca, era o tempo em que estavam a fundar o Arquivo. Aquele edifício que está ao pé do Dicca. Eu fui lá trabalhar a ganhar 300$00, três notas de cem escudos, sem abono, sem nada nem nada. Em 1942. Depois, em 1942, acabaram as obras, pintaram tudo, puseram as prateleiras. No fim de 1943, mandaram o chefe que ía servir como Conservador. Chamava-se senhor Conservador. Era o tenente Montez. Essas repartições do Estado, nessa altura, eram chefiadas pela gente do quartel. Capitão, tenente... ele foi nomeado em Lísboa. Sim, senhor. Não havia funcionários, não havia nada. Fomos nós os dois para o Arquivo Histórico. Quando era para fazer limpeza e carregar os livros, ia-se chamar os presos que estavam no Comando, para fazerem o serviço pesado. A esses presos não se pagava dinheiro, só comida. Era como no xibalo."
O Sr. Nhaca foi então contemporâneo da nomeação do Tenente Montez para chefe do AHM em 1943 mas talvez desconhecesse que ele tivesse antes trabalhado na Biblioteca da Estatística como Navarro tinha constatado. Desses factos no início dos anos 40 falei neste artigo dizendo específicamente que o edifício próprio do AHM foi executado de 1941 a 1943 (o que se ajusta mais ou menos às recordações do Sr. Nhaca sobre as obras e o início da utilização do novo edifício) e que o AHM antes (chamava-se também Biblioteca Histórica) tinha estado instalado no edifício da Estatística (o que se ajusta ao relato de Navarro). 
De facto segundo as informações anteriores (ver acima texto da Cambridge University) o AHM existiria já desde 1938 mas devia ser só no papel e em 1940, para além de não ter instalações próprias podia também não ter quadro próprio pelo que Montez pertenceria ao da Biblioteca da Estatística mas já preparando o AHM, o que para o caso pouco importa (Navarro podia saber esses detalhes mas ter resolvido simplificar). De qualquer modo a passagem de livros que estavam na Biblioteca da Estatística e que já pertenceriam ao AHM ou que lhe foram cedidos pela Estatística para o novo edifício e em que o Sr. Nhaca deve ter participado foi facilitada porque os dois edifícios estavam lado a lado.
Podemos relembrar a seguir a totalidade da fachada principal do edifício do AHM em foto do Facebook da instituição. Com o ângulo mais alargado o edifício da Estatística apareceria para a esquerda da curva na esquina, como se pode ver nesta foto mais completa:
Edifício do AHM após ampliação do original feita cerca de 1947
e situado na Travessa do Varietá (ver mais aqui)

Vê-se a seguir daqui referência à obra de Montez já citada sobre Mousinho de 1956 e que era uma compilação de documentos oficiais do AHM:
Compilação Mouzinho de 1956 por Caetano Montez

Esta é a capa de uma participação importante por Montez em trabalho de outro investigador, a qual não foi referida em cima e é de 1940:
Caetano Montez traduziu e anotou texto de Hugh Tracey 

Hugh Tracey é este senhor que também aqui é referido como musicólogo de renome mas aqui há uma ligação ao livro.
No site Memória de Africa encontram-se essas e muitíssimas mais referências a obras de Caetano Montez todas relacionadas com a história de Moçambique pelo que deve ter sido a personagem principal nesse domínio nos anos 40 e 50. Vejo em publicações pós independência sobre Moçambique e por investigadores não portugueses e não moçambicanos que ele continua a ser citado, por exemplo aqui no livro A History of Mozambique de M.D.D. Newitt e aqui no trabalho Four Centuries of Portuguese Expansion, 1415-1825: A Succinct Survey de C.R. Boxer.
Passando a aspectos mais prosaicos, o arquitecto da elite laurentina Pancho Guedes fez o projecto do enorme Prédio Parque no início dos anos 70 e do qual o dono seria um Tenente Montez, muito provávelmente a pessoa de quem vimos falando. À primeira vista não me parece que fosse possível um funcionário público, historiador e tenente (um posto de oficial militar quase inicial) acumular fortuna tal para se abalançar à construção de prédio desa envergadura mas ...
Nesse capítulo, é curioso registar também que o Capitão António de Figueiredo, o chefe da Estatística  em 1940, foi um dos fundadores da Companhia de Seguros Nauticos, actual Emose em 1943 e que Marcos Miranda Guedes, outro dos conceituados arquitectos locais, projectou uma vivenda (que não sei localizar na cidade) para uma pessoa com esse nome em 1958.
Noutro detalhe desse capítulo, o facto destes funcionários públicos investirem as suas poupanças (provindo elas dos seus espartanos ordenados salazaristas, dos direitos de autor no caso de Montez ou de prémios da lotaria, de heranças, de ofertas de amigos, de prendas dos primos, de "barzinhos" na praia, etc) em Moçambique talvez revele o tipo peculiar de colonialismo português no território mas ...
Aqui no site da CPLP texto de 2018 de Joel das Neves Tembe, director do AHM em linha com a informação precedente e penso eu justificadamente vincando o papel dos primeiros directores do serviço: "O AHM foi criado em 1934 no quadro da reforma administrativa colonial ditada pelas mudanças do Estado Novo em Portugal e a necessidade da integração do espaço colonial português, no caso consubstanciada no Ato Colonial de 1930. Desde então, a posição do AHM como arquivo da colónia e responsável pela coleção bibliográfica moçambicana foi-se consolidando a par da missão de produzir a história de Moçambique. Assim, desde muito cedo, o AHM articulou a preservação de documentos com a produção historiográfica de Moçambique, com realce para o papel desempenhado pelos seus diretores pioneiros, Caetano Montez e Alexandre Lobato. Depois da independência de Moçambique, este esforço foi continuado pela Doutora Inês Nogueira da Costa, entre 1978 e 1999, altura em que a nova direção por mim chefiada deu continuidade a esse desiderato"

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