Vapor Neves Ferreira e operações militares em 1894/95 (2/4)

Continuo o artigo anterior em que tinha falado da intervenção do vapor Neves Ferreira (NF) durante o cerco à cidade de Lourenço Marques (LM), actual Maputo e que ocorreu entre o fim de agosto e o início de novembro de 1894. Após os rebeldes rongas das Terras da Coroa terem desfeito o cerco, as autoridades portuguesas passaram à ofensiva contra os chefes principais e depois, com o encadear dos acontecimentos, contra o chefe dos vátuas Gungunhana / Ngungunyane que tinha incitado primeiro e protegido depois a rebelião. 
O vapor NF participou nessa campanha militar desde o início conforme relata Eduardo Noronha em "Recordações da campanha contra o Gungunhana". A 12 de março de 1895 o NF levou tropas que foram construir um posto militar no alto da margem direita do Incomáti em Marracuene (mas no livro Glórias e Martírios é dito que a lancha Bacamarte foi lá a 18 de março fazer um reconhecimento e que foi recebida pelos rebeldes a tiro, o que não parece coerente com o estabelecimento anterior desse posto militar) e a 30 de Março o NF efectuou uma batida e missão de controlo no troço final do rio Incomati.
No entanto como dissemos no artigo anterior o NF necessitava de 2.5 de profundidade de água (onze pés segundo Eduardo Noronha na revista Serões n. 23, página 25) e a sua passagem pela barra do Incomáti e a subida pelos seus meandros, mesmo que a distância limitada (ver a zona no google maps) era difícil e por vezes a sua tripulação teve de lhe aliviar carga (por exemplo passar alguma para os botes) e esperar pela subida da maré para o desencalhar de baixios no rio e barra.
No entanto para a sua ofensiva, a tropa portuguesa necessitava dos meios navais e disponíveis para a campanha no Incomáti estavam só o vapor NF, a lancha Xefina (primeiro tenente Marinho Cabral) e a pequena e desprotegida lancha Bacamarte (Filippe Nunes, depois Vieira da Rocha) também segundo Eduardo Noronha na revista Serões n. 23, página 24 e para a do Limpopo estavam disponíveis o NF e a lancha canhoneira Capelo (ou Capello). 
Do referido artigo de Eduardo Noronha na revista Serões n. 15 de 1906 "Recordações da campanha contra o Gungunhana" temos outra foto do NF tirada por Freire de Andrade, o militar português de engenharia que preparou o avanço sobre Gaza:
Vapor Neves Ferreira em 1894/95 fundeado junto à costa ou num rio

Eduardo Noronha, escritor imaginativo, nessa revista tenta descrever a configuração do NF correspondente à foto de cima mas não se consegue verificá-lo em pormenor. Segundo Noronha esse era o estado do Neves Ferreira na noite de 12 de Março de 1895 quando transportou tropas para estabelecer em terra um fortim em Marracuene: "O Neves Ferreira, vapor de pequena tonelagem, ficara de todo a abarrotar com aquele acréscimo de praças europeias, que quase não dispunham de espaço para se deitar. O navio, que não era deselegante, perdera a melhor parte das suas linhas estéticas para defender os tripulantes e passageiros quando seguia pelo Incomati acima, varejado com fúria insana pela fuzilaria dos rebeldes, acoutados na margem esquerda. Tabuões grossos, sobrepostos, constituíam uma blindagem sui generis a cada bordo, rasgada aqui e ali por seteiras, por onde se prolongavam os canos delgados das Kropatscheks, ou o feixe das goelas escancaradas das metralhadoras......"
Depois da fuga dos chefes ronga da Magaia e Zixaxa para norte, seguiu-se no resto de 1895 a campanha directa contra Gungunhana em Gaza. Para esse teatro de operações as forças portuguesas usaram tanto quanto possível a penetração pelo rio Limpopo pois o NF  e a lancha canhoneira Capelo serviram para o transporte do grosso das tropas de infantaria (o que era essencial dada a dificuldade nos acessos por terra), para desembarque de marinheiros para operações em terra e para fazer fogo dos rios para os inimigos que como é natural tinham as suas aldeias próximo das margens. Falaremos dessas outras embarcações da marinha de guerra portuguesa em Gaza noutros artigos.
Relembro o primeiro comandante do Neves Ferreira:
Primeiro tenente Raul Furtado

Mas como vimos antes a partir de certa altura o comandante do Neves Ferreira passou a ser o Tenente Diogo de Sá que vemos, fotografado anos mais tarde, nas imagens seguintes do artigo de Eduardo Noronha na revista Serões n. 23 e da publicação de 1998 da ACADEMIA DE MARINHA intitulada "OS PRIMEIROS E OS ÚLTIMOS NAVIOS A CARVÃO DA MARINHA DE GUERRA PORTUGUESA" de NUNO VALDEZ DOS SANTOS:
Diogo de Sá, comandante do vapor NF no Limpopo em 1895

Sobre a fase final da campanha de Gaza para o final de 1895, Eduardo Noronha na revista Serões n 24 adianta que o NF partiu de LM para o rio Limpopo a 20 de agosto e que transpôs a barra com muita dificuldade levando aí a lancha Capelo a reboque ajudado pelo vapor Fox (ver meandros do rio junto à sua barra a jusante do Xai Xai). 
A 9 de setembro o NF subiu até Languéne o que aconteceu "primeira vez para um navio dessa tonelagem". Languéne fica entre o Chibuto e Chokwé, antiga Vila Trigo de Morais e perto de Chaimite (para onde Gungunhana tinha ido depois de abandonar Manjacaze) e por isso já bastante longe da foz do rio.
A base do NF era no Chai-Chai mas por volta de 4 de outubro de 1895 o NF voltou a subir o rio até Languéne onde o comandante Diogo Sá se reuniu em terra com emissários de Gungunhana a que fez saber que ele teria oito dias para entregar os dois chefes rebeldes rongas, ao que se seguiu um período de avanços e recuos negociais. Sem resposta positiva, a 16 de outubro o NF fez fogo na zona de Languéne e os seus marinheiros atacaram em terra. 
A 27 de outubro o NF foi a LM consertar avarias e nessa altura Diogo de Sá deixou o seu comando sendo substituido pelo Tenente Magalhães Ramalho. Quase um mês depois, a "28 de novembro, é ainda o Neves Ferreira que transporta de Lourenço Marques a pequena fôrça ... que vai estabelecer na margem direita do Limpopo o posto de Languéne" e que com Mousinho de Albuquerque (entretanto nomeado Governador de Gaza e sendo transportado de LM também pela NF) um mês depois atacaria Gungunhana em Chaimite.
Segundo a wikipedia foi ainda o NF que a 31 de dezembro de 1895 foi recolher à barra do rio Limpopo e transportou para LM o deposto chefe vátua Gungunhana / Gungunyane que tinha sido feito prisoneiro em Chaimite.
Com todos estes acontecimentos com o NF já transformado em navio militar fica-se com a ideia que ele teria sido entretanto adquirido pelo Estado à Casa Cohen mas Eduardo Noronha é o único que menciona esse proprietário por isso é dado pouco confirmado.
Informação final sobre o vapor Neves Ferreira que aqui acompanhámos, do relatório do militar Eduardo Costa publicado em 1902 "O distrito de Moçambique em 1898" é que o navio em 1898 estava no norte de Moçambique e que se afundou, penso que quando estava atracado, durante num tufão no final de 1899.
Sobre a lancha canhoneira Capelo falaremos aqui e aqui.

NB 1: nestes artigos sigo o relato e visão portuguesa convencional dos acontecimentos mas certamente haverá versões portuguesas alternativas e versões afro-centricas.
NB 2: A Guerra de África em 1895 — Uma leitura estratégica Coronel da Força Aérea Luís Alves de Fraga (pdf aqui) - estratégia de António Enes para Marracuene
"António Enes já havia estudado a carta da região e tinha concluído por si mesmo que o ponto mais conveniente para começar a acção militar era Marracuene, na margem direita do Incomati. A distância à cidade não era exagerada e, por outro lado, poderia ter apoio a partir do rio, muito embora Marracuene se apresentasse num plano mais elevado do que aquela linha de água. Era lá que se deveria afrontar os revoltosos e lá construir um fortim suficientemente guarnecido para permitir incursões nos terrenos adjacentes, obrigando à obediência as aldeias indígenas circunvizinhas. Marracuene possibilitaria, também, a desactivação de Angoane e dava protecção às lanchas que navegassem no rio Incomati. A coluna para esta operação deveria incluir todas as forças militares estacionadas em Lourenço Marques, ficando a guarnecer a cidade os marinheiros desembarcados das corvetas Rainha de Portugal e Afonso de Albuquerque. Comandaria a coluna o major José Ribeiro, de Caçadores 2, coadjuvado por Caldas Xavier, tendo como chefe do estado-maior o capitão Eduardo Costa o qual seria auxiliado por Aires de Ornelas e por Paiva Couceiro. O comissário régio ficava, deste modo, sem os seus melhores oficiais. Estava-se a apostar tudo nesta missão."
NB 3: António Enes em Guerra d'Africa de 1898 nas páginas 72/72 explicando a dificuldade de se navegar no Incomáti e a utilização do Neves Ferreira na segunda metade de 1894:
"Quem emprehende viagem no Incomati nunca sabe quanto tempo gastará para chegar ao seu destino, nem se chegará lá com o barco inteiro. E se o barco tiver muita quilha, arriscar-se-ha a gastar quinze dias numa excursão que se pôde fazer em duas horas, por ter de esperar, encalhado, que voltem as aguas vivas.
Mas tudo isto se sabe agora; em janeiro de 1895 pouco se sabia. O Incomati era quasi desconhecido inteiramente, pelo menos no mundo oflcial de Lourenço Marques. Não havia um único ofticial da armada, empregado de capitania, piloto, marinheiro, que lá tivesse ido. Não era estranho a alguns asiáticos e europeus que se empregavam no commercio do sertão, mas esses mesmos pouco sabiam informar acerca das condições da sua navegabilidade, e nem para práticos serviam, porque só estavam acostumados a guiar embarcações ligeiras que passavam por cima de toda a folha. Nestas circumstancias, para se averiguar se o Neves Ferreira podia lá entrar era preciso que elle próprio tentasse a entrada. Foi o que se fez. Quando as marés começaram a crescer, o pesado vapor, acompanhado se bem me recordo pelo Bacamarte, foi tentar a barra, fazer sondagens, procurar os canaes, e voltou com a noticia de que, nas aguas vivas, poderia transpor os baixos e subir até Marraquene ou ainda além. As dificuldades eram na entrada; passada a (ilha de) Benguelene havia fundo para um grande paquete. Esta noticia foi muito festejada. O Neves Ferreira não faria um serviço regular de communicações entre a cidade e Marraquene, porque só poderia ir ao Incomati nas marés grandes, mas acompanharia, por que assim diga, a expedição, que já fora aprazada para 28 (de janeiro de 1895, uma segunda feira em que partir da cidade a coluna de Caldas Xavier), dia do novilunio (o tempo da lua nova em que a noite é mais escura), ou próximo do novilunio, expressamente para lhe poder aproveitar a companhia. O navio transportaria a carga com que não podiam os carros de bois, e, fundeado junto ao ponto da ocupação, seria uma espécie de baluarte. A esquadrilha do Incomati, isto é, o Neves Ferreira, o Bacamarte e a Xefina, receberam, pois, ordem de subir o rio até Marraquene quando a coluna marchasse para ocupar essa localidade (a coluna portuguesa foi atacada na madrugada de 2 de fevereiro, combate de Marracuene, o primeiro da campanha que veio a ser a de 1895)."











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