Lanchas canhoneiras em LM, depois da guerra nos rios a sul (11/11)

Continuando a falar das lanchas canhoneiras de Lourenço Marques (LM), que de facto foram adquiridas para as operações militares em 1895 nos rios Incomáti, Limpopo e Inharrime vejamos, pela terceira e penso que agora vez final, o seguinte postal produzido por A.W. Bayly. Esteve à venda no site de coleccionismo delcampe.net e por isso é reproduzido aqui com os devidos agradecimentos ao site, vendedor e comprador 
Vê-se aí e segundo a informação original uma canhoneira com roda de pás à popa no rio Tembe, um dos que desagua no estuário de Maputo e a sul da cidade de Maputo, antiga Lourenço Marques (LM).
Stern-wheel gunboat on Tembe River - Lourenço Marques

Vejamos alguns pormenores dessa canhoneira que estava com a proa para a esquerda da foto ou seja para o meio do rio:
Roxo: pequena cabine no deck = convés superior
Rosa: canhão ou metralhadora no convés principal
provávelmente haveria outra a estibordo = boreste
Carmesim: canhão ou metralhadora no convés superior, parece estar outra à ré
Castanho escuro: blindagem na amurada a bombordo
Amarelo: chaminé de grande secção única
Verde claro: suportes dos toldos inclinados
Branco: roda de pás à popa ou ré

Ficámos a saber nos artigos anteriores desta série que quatro lanchas canhoneiras tinham sido compradas por Portugal expressamente para a campanha militar no sul de Moçambique iniciada em 1895 (e que teve uma segunda fase em 1897) e que elas formavam dois pares em termos das suas características. Depois disso elas terão permanecido na região (pelo menos a Serpa Pinto foi abandonada no Xai Xai, rio Limpopo) e a da foto de cima aparenta ser uma delas. Olhando atententamente para por exemplo a inclinação dos suportes dos toldos "verde claro" ela seria uma das da classe Lacerda / Serpa Pinto, como as que vimos aqui.
Grosso modo tendo em conta as características do postal ele seria da primeira década do século XX e por isso mostrará um tempo posterior às das referidas campanhas militares que de qualquer modo não tiveram a ponta a sul do estuário como teatro. Em termos de limite superior, tendo em conta que o site MGP diz que estas lanchas foram abatidas ao serviço da Marinha de Guerra entre 1906 e 1907, se a foto de cima for duma delas então seria no máximo de 1907 o que parece compatível com o editor e a edição do postal (e como me parece que a embarcação arvora a bandeira real portuguesa a foto será anterior a 1910, também compatível com os outros dados). 
O tenente / comandante Guilherme Ivens Ferraz que comandou a lancha Sabre em 1895 e foi capitão do porto de LM daí até c. de 1889 era ultra abalizado para falar da navegabilidade dos rios ao sul do estuário nomeadamente para as lanchas canhoneiras. Como já vimos ele escreveu na memória "Descrição da Costa de Moçambique" publicada em 1902 que a "Lacerda» calava 0,5 m e demandava apenas 0,50 m a 0,70 m de profundidade. Tenho uma certa dúvida sobre esses números mas como ele dizia que o rio Tembe da foto até Porto Henrique (a 25 milhas da foz) tinha pelo menos 3,6 m de fundo então a Lacerda podia navegar grande parte do rio à vontade. Para mais Ferraz dizia também que a Lacerda tinha navegado no rio Maputo pelo menos duas vezes a partir do estuário de LM, o que quer dizer que depois da campanha militar essa lancha andava por esses rios da ponta sul e mesmo qie Ivens Ferraz não o diga específicamente ela poderia ter ido também para o rio Tembe e daí poderia bem ser ela que estava na foto. . 
Quanto à possibilidade de ser a Serpa Pinto, semelhante à Lacerda, Ferraz não a menciona na memória e por isso não sei se esteve depois da campanha também colocada nessa região fluvial da ponta sul ou não (só no final de 1895 ele ficou pronta e foi colocada no Limpopo e onde terá depois ficado como se disse aqui).
Quanto ao "quadro geral" suponho por isso que depois da região ter ficado "pacificada" se tenha distibuido melhor as canhoneiras que tinham estado nos teatros de guerra pelos rios mais importantes para servirem de disuasor de novas revoltas internas e de elemento de soberania internacional. Isso explicaria a presença da canhoneira no rio Tembe, terra dos Maputos (amatongas) e próxima das fronteiras com a África do Sul e Suazilância, actual Essuatine. 
Como vimos nos artigos anteriores (aqui o últimodurante e até ao fim da campanha de 1895 a lancha Lacerda que ponho a hipótese de ser a da foto de cima esteve parada em Xinavane na margem do Incomáti. Para tornar possivel que ela descesse o rio deve-se ter esperado pelo fim da guerra e época de chuva e desmontado o possível para se reduzir o peso e para evitar danos nas colisões que tinha com as margens devido à sinuosidade do rio e falta de governabilidade e desse modo a Lacerda terá regressado a LM e a partir daí novas missões ter-lhe-ão sido atribuidas. Como dissemos para o fim do artigo anterior e abordando já a utilização dessas lanchas com rodas de pás depois da guerra Ivens Ferraz dizia que lhes seria difícil atravessar a baía junto a LM. Como isso não era necessário para ligar o porto de LM à foz do Rio Tembe e porque neste havia profundidade mais que suficiente e numa grande distância para montante da foz, então conclui-se que terá sido no rio Tembe que estas lanchas de 1895 terão sido mais úteis e por coincidência ou não a FOTO 1 é precisamente do rio Tembe. De qualquer modo a presença das lanchas na zona de LM entre o fim do século XIX (19) e o início do XX (20) não foi muito notória / notável pois não aparece em fotos e é só referida nas publicações mais especializadas e daí até há pouco não me terem chamado a atenção.

PS 1: Sobre a dificuldade de navegação de navios com rodas de pás na ligações entre o porto de LM e os rios limítrofes atravessando a baía, Ivens Ferraz contextualizava e recomendava: "Pequenas lanchas de fundo chato, de rodas na popa ou lateraes, navegariam com muita facilidade em qualquer dos rios que desaguam na bahia, mas como o fim principal é estabelecer communicações com a cidade, parece-nos que as embarcações mais convenientes para esse fim seriam pequenos vapores de hélice ou turbina, de 15 m a 18 m de comprido, com muita bocca, callando o máximo 1.2 m e tendo a machina motora e as fornalhas dispostas para queimar lenha ou carvão". Na prática Ivens Ferraz desaconselhava o uso de lanchas com rodas de pás com base em LM para subir o Incomáti para o que teria de atravessar uma secção da baía bastante aberta e por isso de mar agitado, para o rio Maputo a parte da baía a atravessar era um pouco mais abrigada e a distância era menor por isso podia ser caso intermédio mas como dissemos a melhor utilização seria no Rio Tembe. 

Anexo: memória "Descrição da Costa de Moçambique" de Ivens Ferraz publicada em 1902, textos completos

Texto a partir da página 15 impressa 
Rio Tembe ou da Catembe é o mais meridional dos três tributários do porto, tem as suas origens nos Libombos, e corre proximamente do SW. para NE. em território português até á sua confluência com o Espirito Santo, sendo navegável n'uma extensão de 60 milhas para embarcações que não demandem mais de 1,80 m d'agua.
A sua entrada é obstruída por um banco d'areia, deixando de cada lado um canal ; o da margem esquerda junto á Ilha da Matolla ou Refuge com 5,50 m de fundo e o da direita apenas com 1,80 m. Tem o rio n'esse logar cerca de 1,5 milha de largura, mantendo-se sempre largo até uma distncia de cerca de 6 milhas (deve ser o que se vê aqui do rio, ao centro na vertical, marginado por terras baixas e cobertas de mangal durante umas 40.
Nas sete primeiras milhas a margem esquerda é formada pela ilha Muage (algures por aqui), separada ahi da Matolla por um estreito canalete navegável por pequenas embarcações.Até ao posto militar e fiscal de Porto Henrique, situado na margem esquerda do rio, nunca se encontra menos de 3, 60 m de fundo, chegando a haver profundidades de 9 m e mais.
Navegando para montante, a agua que até ahi era salobra, torna-se potável e excellente, e o rio estreita bastante e gradualmente d' ahi para cima, banhando sempre terrenos muito férteis e povoados.
Ainda não vae longe a epocha em que o Tembe era uma importante via de communicação com o Transvaal, sendo então navegado por numerosas lanchas, que iam a Porto Henrique buscar as mercadorias levadas até alli em carretas boers pela estrada da Swazilandia. Com a construcção do caminho de ferro, perdeu o rio bastante da sua importância, porque os carreteiros vão de preferencia á estação (de caminhos de ferro) de Pessene; quando porém o paiz, que este bello rio atravessa, for devidamente explorado pela agricultura, o que não virá longe, tornará elle a ser aproveitado com grande vantagem, pelas suas excepcionaes condições de navegabilidade.

Texto a partir da página 11 impressa.
Rio Maputo:
Rio Maputo ou Machavana nasce nos Drakensberg em 27 graus de latitude S., atravessa a Swazilandia, passa os Libombos e segue em território português, constituindo o limite meridio
nal da Província de Moçambique, até á sua confluência com o Pongolo; corre depois para N. a lançar-se na bahia de Lourenço Marques, nos parceis de Machangulo, onde as suas aguas 
abriram dois sulcos ou canaes relativamente fundos, um dos quaes se dirige ao porto Melville e o outro, o mais importante, para W., ao longo da costa. 
O território banhado por este rio é povoado de gente bravia e aguerrida, que só depois da campanha de i895, póde-se dizer se submetteu à Coroa de Portugal, consentindo no estabelecimento d'uma auctoridade militar, a légua e meia da povoação do régulo, na Bella Vista, na margem esquerda do no, em segura communicacão com a cidade. 
Na mesma epocha fundou-se em Macassane, umas 13 milhas a montante da Bella Vista, um posto militar e missão religiosa-agricola, para ensinar aos indígenas a moral do Christianismo e as leis da Egreja, tornando-os ao mesmo tempo homens laboriosos e úteis. 
barra do Rio Maputo é bem visivel em baixamar d'aguas vivas, porque descobrem os baixos da barra, deixando perceber, a meia distancia das duas pontas da foz, um canal largo, cujo fundo minimo é de 1 m,80, mesmo na epocha da estiagem. Subindo o rio, este fundo mantém-se sensivelmente ao longo da margem esquerda até Bella Vista, dando-se um pequeno resguardo ás pontas. 
Vapores como o «Baptista d'Andrade", o «D. Amélia» e o «Canarvon» demandando 1 m,80 a 2,70 m sobem com facilidade até áquelle ponto, o que não é grande proeza porque além das margens serem de lodo molle, sobem-no com a ajuda da maré, que tem mais de 3 m de amplitude.
A montante da Bella Vista e até Salamanga, a navegação é feita ainda, geralmente, encostada á margem esquerda, não esquecendo as duas simples regras applicadas a todos os rios: encostar ás curvas e fugir das pontas e procurar o mangal e fugir do capim. 
Os fundos são muito variáveis n'este rio e a corrente muito impetuosa na epocha das chuvas.
Em Salamanga, na margem direita do rio, estabeleceu-se uma importante povoação de negociantes, por ser uma passagem obrigatória do rio. Até esse ponto póde-se contar sem-
pre com 1 m d'agua pelo menos. É em Salamanga que as lanchas com carga para a missão de Macassane largam ahi os volumes mais pesados que seguem por terra, alliviando as embarcações, que passam a navegar numa região de grandes curvas, cheia de pequenas ilhas e baixos, que tornam a viagem difficil e sujeita a constantes encalhes.
A lancha canhoneira «Lacerda», de rodas na popa, demandando apenas 0,50 m a 0,70 m, fez viagens a Macassane durante todo o anno e em qualquer maré, ainda que com certa dificuldade, mas as lanchas canhoneiras "Sabre» e «Carabina" que demandam 1,30 m, só poderam chegar áquelle ponto esperando marés e navegando com risco de avarias.
Ao terminar a região das ilhas, o rio estreita extraordinariamente e por conseguinte o fundo augmenta, mas nascem novas difficuldades com o apertado das curvas e os paus espetados no fundo.
A «Lacerda" foi levada, pelo 1.° tenente Victor Hugo d'Azevedo Coutinho, duas vezes a Macassane de Cima (uma milha a montante de Macassane), tendo de vencer difficuldades de toda a espécie, devido especialmente ao seu comprimento demasiado para contornar voltas em angulo agudo. Para montante d'este ponto, só lanchas á vela e a remos podem navegar."
Um intervalo no texto de Ivens Ferraz para se ver quem terá comandado a lancha Lacerda por esses tempos. Vê-se na wikipedia que foi guarda marinha a partir de 1892, o posto que tinha nesta foto e por isso esta foto deve mostrá-lo mais ou menos como quando chegou au sul de Moçambique para a campanha militar de 1894/95: 
Victor Hugo de Azevedo Coutinho, comandou a lancha Lacerda 
na ponta sul de Moçambique,

Em 1914 / 15  Victor Hugo de Azevedo Coutinho foi num curtíssimo período primeiro ministro de Portugal. Não deve ser confundido com João de Azevedo Coutinho, também oficial de Marinha mais destacado.e político que permaneceu monárquico depois de 1910.
Retomando o texto de Ivens Ferraz:
"A corrente é ahi (cerca de 30 milhas da foz) muito violenta, e arrasta grosso nateiro, que ás vezes torna a agua imprópria para consumo das caldeiras. A maré d'aguas vivas tem em Macassane a amplitude approximada de 0,45 m, comquanto as aguas corram sempre para jusante. (HoM: quer dizer nota-se a influência da maré mas não é suficiente para contrariar a corrente do rio)
...
Communicações. A região do Maputo, nas proximidades do rio, é servida por uma estrada que, partindo da Catembe (Catambe), vae á Bella Vista, a 55 kilometros de distancia, e que pouco adeante se bifurca, seguindo um ramal de 90 kilometros para Catuane (Contuane), perto da fronteira, e um outro, com mais de 30 kilometros, para Macassane, sendo interrompido (o ramal) pelo rio em Salamanga.
Apezar destas estradas, os transportes de mercadorias fazem-se pela via fluvial, por serem mais rápidos, muito mais baratos e talvez os únicos possíveis para objectos pesados.
As lanchas-canhoneiras gastam em media 2 h 30 m de Lourenço Marques á Bella Vista, e um carregador com carga leve não vae de um ponto ao outro por terra, em menos de 6 horas.
Ha communicações telegraphicas entre Bella Vista e Macassane e a cidade de Lourenço Marques. 
A ponta Mahone, na extremidade S. da entrada para o rio do Espirito Santo, é pouco alta e coberta de basta vegetação, da qual destacam duas manchas de terra vermelha. 
As immediações desta ponta são perigosas (para a navegação), por offerecerem pouco fundo e por de ella se projectarem restingas d'areia e pedra, que é d'ahi arrancada no baixamar e vendida por bom preço para as obras da cidade. 
Havia antigamente uma importante ostreira na Ponta Mahone, que hoje está quasi completamente destruida. 
Perto da ponta, fica uma pedreira, de onde sahiu muita pedra para as obras do porto. 
O Rio do Espirito Santo (English River das cartas inglesas), erradamente chamado rio, é apenas o estuário que recebe as aguas dos rios Tembe, Umbellusi e Matolla. 
E' todo elle excellente abrigo e óptimo surgidouro para grandes navios, e estende-se desde as pontas da entrada até ás bocas dos seus tributários, por mais de 6 milhas, sempre com fundos commodos. As suas margens são por toda a parte baixas e arborisadas, exceptuando-se a Pt.* Vermelha, que é alta, e forma a ponta N. da entrada do rio. 
Este estuário é o bem conhecido porto da cidade de Lourenço Marques, que começada a edificar na margem esquerda,  perto da entrada, estende-se já pelas alturas da Pt.* Vermelha e da Polana".

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