Lanchas canhoneiras em LM, info de António Enes e distribuição final em 1895 (3/11)

Vimos neste artigo a canhoneira Capelo que operou na campanha de Gaza de 1895 (era da classe Ivens, Ivens e Capelo) e neste artigo as canhoneiras da classe Lacerda (Lacerda e Serpa Pinto) que segundo o site MGP também estiveram em Moçambique nessa latura. 
Seguindo o site os rikinhus vimos o QUADRO com as características destas classes e comparando as fotos encontrámos dois elementos que visualmente ajudam as distingui-las.
Utiliso agora duas imagens do arquivo da Marinha Portuguesa a propósito de embarcações que estiveram destinadas a Lourenço Marques (LM), actual Maputo mas sobre as quais não eram aí dados mais pormenores. Primeiro um desenho dum navio a vapor com roda de pás na popa - sternwheel boat (wikipedia):

DESENHO 1
Legenda do arquivo da Marinha: 
"Vapores para LM em construção em Inglaterra na casa Yarrow"

A segunda foto do arquivo da Marinha Portuguesa é duma embarcação que como se pode ver rodando-a horizontalmente em grande parte corresponde à de cima. Têm chaminé única de maior secção e os suportes inclinados dos toldos no convés superior, pelo que estas duas imagens do arquivo da Marinha Portuguesa serão das canhoneiras Lacerda e / ou Serpa Pinto, distintas da Capelo e Ivens da mesma altura.

FOTO 1
Legenda do arquivo da Marinha: Navio auxiliar "Vapores para Lourenço Marques"

Note-se que esta é mesma foto que vimos no artigo anterior e que o site os rikinhus diz ser da canhoneira Lacerda. Mas como o arquivo oficial português não é tão preciso, como disse aí será mais seguro manter aberta a possibilidade dela ser a Serpa Pinto, da mesma classe que a Lacerda.
António Enes (AE) foi comissário régio português em Moçambique de março a dezembro de 1895 e pelo que nos diz no livro a Guerra d'Africa de 1898 o grande estratega político e militar da conclusão da ofensiva portuguesa primeiro contra os rebeldes rongas e depois contra Gungunhana / Gungunyane, embora não se prevesse inicialmente até onde esta chegaria. AE nesse livro a Guerra d'Africa de 1898 dá bastante informação sobre estas canhoneiras começando por dizer que no início de 1895 antes de sair de Lisboa pedira ao governo pelo menos seis lanchas fluviais "como auxiliares indespensáveis para quaisquer operações" militares. 
A razão para o pedido era a ausência de bons acessos terrestres a sul do Save onde a campanha estava planeada e o facto das embarcações disponíveis em Moçambique terem "muita quilha", pouco armamento e pouca protecção.
Diz AE que "a casa Yarrow prometera entregar as duas primeiras lanchas encommendadas no fim de março" mas que "mesmo que entregasse todas n'essa data, a (sua) viagem para Lourenço Marques gastaria um mez, a montagem, pelo menos, outro mez, e portanto só lá para junho, na melhor hypothese, estariam as novas embarcações promptas para serviço. E até lá, como havíamos de nos remediar?". Havia urgência nas operações militares, primeiro para resolver a situação de conflito com os africanos e depois porque estavam chegar tropas de Portugal e teriam de ser utilisadas rápidamente antes que começassem a adoecer, porque seria melhor aproveitar o periodo do meio do ano mais freco e seco e porque quanto mais curta fosse a campanha menos dinheiro custaria. 
O atraso no fornecimento das lanchas excedeu um mês pois só em Junho de 1895 chegaram (desmontadas) a LM no porão do navio Bucaneer (no próximo artigo veremos como elas vieram e foram depois montadas) e, pior que isso, vieram só quatro. Estava inicialmente previsto serem duas para o Incomati, duas para o Inharrime (vê-lo aqui, desagua na lagoa Poelela e tal como escrevia Ivens Ferraz em 1903) e as duas que acabaram por não ser fornecidas seriam as lanchas destinadas ao Limpopo (AE justificava a sua necessidadade dizendo que o vapor Neves Ferreira nesse rio não passaria do Xai-Xai, mas viu-se já que não era exacto). AE, que eu nunca tinha lido mas que este livro dá para confirmar que tinha um espírito brilhante, diz que essas duas lanchas tinham ficado "encalhadas na borra dos tinteiros ministeriais", o que quererá dizer que o governo em Lisboa tinha reduzido a encomenda sem o informar e isso apesar de há muito haver telégrafo entre Lisboa e PM. 
Mas há mais surpresas que parecem estranhas no mundo actual em que tudo pode ser bem especificado e seguido pois AE dizia ainda sobre as lanchas que tinham vindo de Londres ".. eram muito compridas para dar voltas no Incomati e demasiadamente pesadas para ser transportadas por terra para o Inharrime, além de serem umas e outras muito alterosas para andar encostadas a margens cobertas de arvoredo, que estendia as ramadas sobre as aguas. Para cima das bordas de todas ellas cresciam uns verdadeiros edifícios, destinados a alojamentos, e ainda os sobrepujavam as chaminés.". Olhando para as duas imagens de cima das lanchas esta apreciação de AE parece um tanto exagerada mas veremos que relativamente ao Incomáti acabou por se constatar um erro grave na aquisição e o texto de AE reflecte já o que ele apreendeu mais tarde.
Lembro também que como vimos no QUADRO com base na informação do site os rikinhus que as lanchas teriam tamanhos diferentes pelo que a sua distribuição pelos três rios deveria ter tido em conta a sua manobrabilidade, aspecto que AE menciona como importante mas ele não explica que opções realmente tinha e em que bases decidiu quais  das lanchas iriam para onde..   
Reagindo à falta de duas lanchas disse AE:"Tratei, pois, de fazer apromptar, antes das outras, uma lancha que acudisse á necessidade mais urgente e essa pareceu-me ser a da navegação do Incomati além do ponto até onde chegavam os barcos de quilha; para essa navegação destinou-se a Lacerda, e a ella se deitaram os operários todos. Depois apromptar-se-hia a Capello, para servir no Limpopo. Entretanto a Ivens, em chapas, iria para o Inharrime, e lá se armaria quando e como podesse ser". A prioridade dada ao rio Incomáti derivava de começando pela sua margem direita terem sido estabelecidos e já em 1895 postos militares portugueses com os quais era essencial haver comunicação e transporte fluvial e de junto à sua foz haver ataques frequentes feitos por forças emboscadas dum tal "Finish", um apaniguado do chefe Mahazul da Magaia próxima que estava em rebelião.
A situação da montagem das lanchas por volta de 6 de Julho de 1895 era assim descrita por AE: "A montagem da Capello estava adeantada e calculava-se que estaria prompta lá para o meiado de agosto. A Lacerda, essa já ia fazer preparativos para subir o Incomati. E bem precisa era!". 
Mas vejamos quais eram os planos nessa altura e o que acabou por acontecer::
- Lacerda - esta previsto ir para o rio Incomáti. Confirma-se por outras fontes fiáveis que foi para lá mas veremos aqui que na prática não conseguiu operar aí,
- Capello / Capelo - estava previsto ir para o rio Inharrime mas foi para o Limpopo como se confirma por muitas fontes fiáveis.  
- Ivens - era a única lancha que veio fornecida em placas e estava inicialmente planeado que iria para o rio Inharrime e AE esperava que fosse lá montada. Como veremos no artigo seguinte AE decidiu depois que ela seria montada em LM mas não disse que destino teria e também não tenho mais informação, nem mesmo de que tenha sio montada (o site MGP diz que "fez serviço na esquadrilha de Gaza" mas ...). 
- Serpa Pinto - estava previsto ir para o Incomáti mas dado o que aconteceu à similar Lacerda não se iria insistir no erro. AE refere uma única vez o nome da "Serpa Pinto" ao dizer "Foi examinado o material ... para ser aproveitado pelo pessoal que houvesse de dar as ultimas mãos à montagem da Capello e da Serpa Pinto" mas como veremos aqui sabemos que ela foi para o Limpopo no final de 1895. Daí teremos nas fotos seguintes, do arquivo da marinha e de 1967, muito provávelmente os seus restos como explicaremos:. 

FOTOS 2
Lancha canhoneira Serpa Pinto em Luhampura. Restos da embarcação 

Tratava-se seguramente duma lancha dado o pouco calado / ausência de porão e o facto de ter uma só caldeira e chaminé de grande secção correspondia ao que se via dela nesta foto bem como a sua posição relativamente ao comprimento do casco. Quanto ao resto das suas características estas fotos não dão para comparar com o estado inicial destas lanchas.
O local dito Luhampura seria provávelmente Inhampura (fonéticamente algo semelhante) que aparece como sendo o Limpopo no Dicionário Chorográfico de 1889 de Joaquim Lapa e Alfredo Ferreri (que fizeram um enorme trabalho de pesquisa sobre a história de Moçambique e são muito mal agradecidos pelos poderes actuais mas ...) ou uma localidade perto da sua foz. Essa indicação corresponde à da carta alemã de 1892, três anos anterior ao governo de António Enes:

CARTA BASEADA EM JEPPE
Limpopo ou Inhampura (seria o Luhampura das FOTOS 2?)

Por isso nas FOTOS 2 devemos estar a ver a lancha Serpa Pinto na margem do rio Limpopo, pelo que terá a acabado os seus dias nessa região onde tinha estado no final de 1895.
No seu livro há dois pontos que AE não explica, se de facto havia duas classes de lanchas como se constatou nos artigos anteriores e se a lancha que veio para LM em placas e que veio a ser a Ivens era diferente das outras três, o que nos obrigaria a repensar as equivalências feitas por "os rikinhus" de haver dois pares.
Assim e juntando às dúvidas expostas no fim do artigo anterior parece haver alguma "névoa de guerra" na informação disponível na net, pelo que o seu estudo mais aprofundado podia ser feita por exemplo por um aluno da Escola Naval à procura de tema para uma dissertação. 

PS: AE diz sobre a necessidade de lanchas:cerca da pág 13, indicando que não partiu dele o pedido das lanchas, ele deve tê-lo reiterado ao governo de Lisboa quando foi nomeado para Moçambique: "Mas para isso faltavam de todo as embarcações. O governador geral já tinha pedido algumas á metrópole, porque só dispunha da lancha Xefina, velha e avariada, e dum quasi escaler a vapor, o Bacamarte. Considerava, pois, indespensavel que a toda a pressa fossem compradas ou mandadas construir pelos menos seis lanchas-canhoneiras, duas para o Incomati, duas para o Limpopo e as restantes, mais pequenas, para o Inharrime; todas deveriam ser apropriadas á navegação dos rios a que se destinavam, montar artilheria de tiro rápido e ter força para dar reboques".

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