Linha férrea para Goba e Suazilândia: contexto internacional (5/8)

Continuando a série sobre a linha de Goba, podemos acrescentar aos anteriores o que o Eng. Lopes Galvão, que foi um dos responsáveis pela sua implementação (o projecto foi de Lisboa de Lima) escreveu no seu livro "A Engenharia Portuguesa na Moderna Obra de Colonização" publicado em 1940.  
Por isso adaptando e resumindo, depois da derrota dos boers da ZAR na segunda guerra contra os ingleses em 1902, a exploração mineira no Transvaal teve um grande incremento. O caminho de ferro de Lourenço Marques (LM) a Pretória não tinha capacidade para o tráfego resultante principalmente pela limitação resultante do sistema de cremalheira para transpor os montes Drakensberg entre as estações de Waterval de que falámos aqui..
Em 1904 os dois países (ou melhor as suas autoridades ferroviárias) assentaram na construção duma segunda linha para o Rand atravessando o sul de Moçambique pelo vale do Rio Umbelúzi e entrando depois na Suazilândia. Tinha sido por essa zona o primeiro traçado previsto pelo Gen. Machado em 1878 para o caminho de ferro de LM a Pretória mas tinha sido recusado pelos ingleses que controlaram esse território a partir de 1881 e queriam dificultar o acesso dos boer ao mar. Mas em 1902 a linha de Goba teve o assentimento do alto-comissário britânico Lord Milner (1st Governor of the Transvaal and Orange River Colony, de 1901 a 1905) pois o Reino Unido tinha substituido os boers na administração do Transvaal. Foi então combinado que o ponto de passagem de Moçambique para esse protectorado britânico seria em Goba esperando-se que a linha continuaria daí para a África do Sul. Note-se que foi aí decidido, no início do século XX, que em Moçambique a nova linha iria pela margem direita = sul do Rio Umbeluzi enquanto que a do Gen. Machado de 1879 teria ido pela margem esquerda = norte.
O governo português encarregou o Eng. Lisboa de Lima do projecto que em 1905 foi aprovado e entrou em execução com fundos de emissão de obrigações pelo Estado. Segundo o Eng. Galvão o projecto é notável pois apesar de atravessar regiões montanhosas o raio mínimo das curvas é de 300 metros e a inclinação máxima de 12 mm por metro. A construção por administração directa do Estado foi também esmerada (ou não fosse ele próprio um dos responsáveis ...) sendo de destacar a ponte sobre o Rio Umbeluzi em Boane que vimos aqui e revemos em baixo. O seu tabuleiro era em ferro e os pilares em pedra e foi recentemente substituida - local actualmente aqui, trabalho mencionado aqui e ficará ao km 37.7 da linha -  depois de mais de 100 anos de disponibilidade para o serviço.


FOTO 1
Ponte de Bohane com seis tramos de 60 m cada = 360 m de vão

Outra das obras de arte da linha destacadas pelo Eng. Galvão no seu livro foi o viaduto de MugueneSuponho que seja o do Km 49 o qual terá sido também reforçado recentemente mas que no essencial continua a ser o antigo. região é seca mas quando há tempestades tropicais devem-se formar grandes correntes que desceriam do lado direito da foto para o lado esquerdo seguindo um vale dirigido ao Rio Umbelúzi (e onde está agora a albufeira da barragem dos Pequenos Libombos construída nesse rio depois da independência entre 1981 e 1987).

FOTO 2 - Google Earth
Referido viaduto de Muguene na linha de Goba. Rio Umbelúzi para a esquerda

Segundo o Eng. Galvão apesar da linha de Goba usar a reduzida bitola sul-africana de 1.067 m, devido ao seu projecto e construção conseguiam-se com segurança velocidades superiores a 80 km por hora, embora na Ilustração Portuguesa de 1908 se falasse de 60 km por hora. Daí assegurar-se-ia por lá ligação mais rápida, directa e económica ao Rand do que pela linha de Ressano Garcia. 
Nesse artigo da Ilustração Portuguesa de 1908 o autor sublinhava essas vantagens para as ligações ao Transvaal se a linha fosse continuada mas referia cautelosamente que a linha não iria "ser um beco sem saída". Como é natural deveria ser já evidente, tanto no plano político como no práctico, que os ingleses não estavam a prosseguir a linha para lá de Goba, do lado da Suazilândia. O receio português de que o pior acontecesse pairaria no ar mas ou lema era que "enquando houvesse vida havia esperança" ou Portugal estava já resignado a que a linha iria parar na fronteira mas decidiu completar o seu projecto até Goba.
O que aconteceu foi que Lord Selborne, o alto comissário que dirigiu a África do Sul entre 1905 e 1910 sucedendo a Lord Milner (que tinha dado o acordo inicial à linha) previlegiava a ligação ferroviária do Transvaal ao Natal para acelerar a integração entre as antigas colónias inglesas e as repúblicas boer inimigas na União Sul Africana em formação sob controlo britânico. Por isso os ingleses até 1964 não respeitaram o compromisso de continuar a linha embora o Eng. Galvão fale duma proposta inglesa para solucionar o problema em 1922 mas que Portugal não poderia aceitar (não sei de que se tratava)
Este era o mapa da linhas na África do Sul cerca de 1905, ano do início da construção da linha de Goba, mais uns acrescentos relativos aos anos seguintes:
Castanho: fronteiras entre Moçambique e África do Sul e Suazilândia
Laranja: linha de Goba de 1909 completada em 1912
Verde normal: linha de Springs para Ermelo construida pouco depois de 1905
Verde claro: o que seria preciso para ligar Goba à rede da África do Sul (Ermelo)
Amarelo: Pretória, capital da ZAR no Rand, ponto de partida da linha de LM
Roxo: Ressano Garcia, estação na fronteira dessa linha de LM
Azul: Delagoa Bay / Lourenço Marques, porto na linha de LM
Preto e branco: linha de LM desde 1894/95 entre Pretória e LM /Delagoa Bay
Vermelho: Barberton que tinha um ramal para a 
linha entre Pretória e LM e marcada a tracejado

Como se vê pela marca "verde normal" ao mesmo tempo que a linha de Goba era construída os ingleses construiram uma linha saindo do coração económico do Transvaal na direcção da Suazilândia, linha essa que vai de Springs (importante nó ferroviário no Rand) a Ermelo que vê-se aqui foi aberta em 1905 - 1907. Ora era esperado que a extensão da linha de Goba pela Suazilândia se interligasse à rede ferroviária sul-africana em Breyten que ficava a 20 km da mencionada Ermelo, tendo essas duas localidades ficado ligadas em volta de 1908 (linha "vertical" Machadodorp - Breyten - Ermelo que não está no mapa)
Por isso, disseram o Eng. Galvão no seu livro e Alfredo Pereira de Lima (APL) no livro História dos Caminhos de Ferro que se tivesse havido vontade política inglesa (que dominavam a África do Sul e a Suazilândia nessa altura) "bastaria" eles terem feito a linha "verde claro" para se continuar a linha de Goba e todos poderem gozar das suas vantagens. Mas fazendo umas continhas, a partir de Goba atravessar a Suazilândia acabou nos anos 60 por ser um trajecto de 220 km (mas não o foi segundo a linha mais directa, poderia talvez ter sido mais curto por outro trajecto mas a % de economia nunca teria sido muito grande) e por alto completar da fronteira suazi a oeste a ligação a Breyten na África do Sul, seriam mais uns 130 km. Então os ingleses / sul-africanos teriam de ter investido nuns 350 km de nova linha (atravessando muito terreno montanhoso) e contráriamente ao que o Eng. Galvão e APL argumentaram tal não seria dispiciendo, tendo em conta por exemplo que a linha entre LM e Pretória tem de comprimento total 567 km e que essa iria continuar a ser explorada. 
Noto em relação ao respeito ou não de compromissos pela "pérfida Albion" que a Inglaterra assumiu em 1901 com Portugal que cerca de 35%-40% do tráfego do Rand transitaria por LM e a % subiu em 1909 para entre 50% a 55%, a troco do investimento português na melhoria do porto e principalmente da permissão de recrutamento de trabalhadores moçambicanos, e esse compromisso foi respeitado. Este assunto é tratado com muito mais detalhe no interessante estudo "MODUS VIVENDI ENTRE MOÇAMBIQUE E O TRANSVAAL (1901-1909) - Um Caso de “Imperialismo Ferroviário” de Felizardo Bouene e Maciel Santos e que apresenta também um elemento relevante. Dado que cada caminho de ferro partilhava a tarifa total cobrada pelo transporte da carga em função dos km percorridos em cada secção,  para além da vantagem para a economia do Transvaal de usar o porto de LM que estava mais perto, também o caminho de ferro do Transvaal beneficiava porque a % da sua secção no total da linha de LM - por ex. (562-88)/562= 84% para carga levada até Pretória  - era maior do que tal % nas linhas de Durban e do Cabo em que nem aos 50% chegava. Por outras palavras mesmo sendo o preço cobrado pelo transporte da carga de Pretória para LM mais barato, a parte que ficava para os Caminhos de Ferro do Transvaal (o resto era para os CFM) era maior do que a que ficava por ex. se o destino fosse o Cabo (em que o resto era para os CF do Cabo). Óbviamente a mesma relação existia no caso em que a carga saía do Cabo e os CF do Cabo depois transferiam parte do que cobravam para os CF do Transvaal mas nesse caso já não eram os CF do Transvaal que podiam escolher por onde enviar essa carga. É também de notar que para o cliente contava não só o que pagaria pelo caminho de ferro mas também as despesas no porto, taxas alfandegárias, transporte no navio, etc pelo que a questão é complexa e era na altura analisada em detalhe pelas partes interessadas e como Felizardo Bouene e Maciel Santos relatam em pormenor.
Veremos noutro artigo o que estava planeado em 2015 entre a África do Sul e a Suazilândia, não existindo ainda nesse ano ligação ferroviária entre os dois países no eixo leste - oeste (mas já existe no norte - sul). Presumo que assim continuará pois em 2015 não havia ainda decisão final nem financiamento e a linha demorará uns 3 anos pelo menos a ser construida.
Os ingleses decidiram então nas primeiras décadas do século XX (20) por razões político / estratégicas e/ou económicas fazer outros investimentos, por exemplo desviando o traçado inicial na linha existente entre LM e Pretória nas montanhas de Drakensberg substituindo o troço com cremalheira em Waterval, o qual limitava o tráfego. Como dissemos a pretensão portuguesa de continuação da linha de Goba depois da fronteira luso-swazi só foi respondida mais de 50 anos da sua construção, o que afectou grandemente a viabilidade económica do seu investimento. Isso motivou questões internas em Portugal sobre quem tinha sido responsável por avançar com a construção da linha sem garantias formais inglesas tendo forças políticas centralizadoras atacado o que consideravam ter sido a excessiva autonomia dada às autoridades em Moçambique (eram todos engenheiros, que gostam muito de ver obras feitas ...).
Sobre o contexto das linhas na região cerca de 1900 aqui estudo que deve ser interessante da participação do financeiro inglês (N.M.) Rothschild no financiamento dos caminhos de ferro da ZAR nomeadamente o de LM. Este foi essencial para a passagem da exploração do ouro à superfície (antes tinham sido os propectores de ouro de aluvião, mas esses não contam no quadro maior) para as minas em profundidade só possivel com maquinaria pesada que tinha de ser importada por via marítima e encaminhada da costa para o Rand por caminho de ferro. Sobre Nathan Rothschild e Delagoa mais hipóteses de estudo aqui, incluido esta
O contexto internacional da linha é explicado com muito detalhe no artigo "Identidade e tecnologia: o caminho de ferro da Suazilândia (1900-1914)" de Hugo Silveira Pereira nos anais de história de além-mar XVIII de 2017 (aqui)

Livro Manual of Portuguese East Africa Cornell University Library (Internet Archive) preparado pelos serviços de Informação da Royal Navy em 1920
Swaziland Railway (não revi)
The present position of the Swaziland railway is somewhat similar to that of the Lourenzo Marques railway before the construction of the KomatiPoort- Broukhorstspruit section in the Transvaal. The first portion of the railway in Portuguese territory has been built, but the connecting link across Swaziland to the Union line at Breyten, owing to political and other reasons, is not built, and there appears to be some reasonable ground for the dissatisfaction of the Portuguese authorities at the delay in its completion. The line not only would open up a rich agricultural and mining area, but would provide the shortest route between Lourenzo Marques and Johannesburg, reducing the distance between them by about 60 miles.
It is asserted that verbal assurances were given by the then High Commissioner of South Africa, at a conference on Western Transvaal Railways in 1904, that direct railway traffic between Lourenzo Marques and Johannesburg would shortly be possible via Swaziland and Breyten, and that more definite assurances were conveyed to the then Governor-General of Mozambique, Major Rosado, that the proposed railway would be undertaken. Acting on this understanding the Portuguese authorities began construction in 1905, and carried the line forward to Goba, close to the Swaziland border, under the impression that it would be continued through the valley of the Umbeluzi and across Swaziland to Breyten.
The completion of the line would react unfavourably upon the port of Durban as a port of entry for the Rand. As to its competition with the present railway from Lourenzo Marques to the Transvaal, it is observed in Lord Selborne's memorandum that the Swaziland line 'would be practically as short in distance and the SWAZILAND RAILWAY - gradients would be easier than those of the existing line.
It is a raoot (???)  point, however, whether the improvement would justify the sacrifice of the capital invested in the existing line from Delagoa Bay to Witbank, which would be rendered obsolete and useless so far as the great bulk of the traffic is concerned '.
The Swaziland railway passes through Machava, Estevel, Boane, Umbeluzi, Muguene, and Mailana, to Goba. There are two tunnels on the line, each exceeding 200 yds. in length, and a bridge, 1,180 ft. long, with a span of 60 ft. above the bed of the river, over the Umbeluzi ; a bridge over the Matola, 1,200 ft. long ; and a viaduct at Muguene, 590 ft. in length.
Owing to the failure to complete the proposed arrangements with the Union Government, due in no small measure to the apparently justified desire of the South African authorities that the line should be a State railway and not a private enterprise, the Portuguese section of the railway has shown continuously a deficit in its working, the deficits for 1914 and 1915 having been £7,766 and £7,995 respectively. The number of passengers carried in 1914 and 1915 was only 10,115 and 14,630 and the tonnage of goods was 3,571 and 14,351. The railway, nevertheless, even in its uncompleted state, is of considerable advantage to the surrounding country, as it passes through a good agricultural district which is being opened up by settlers, and also attracts the traffic from the settlements at Namahacha and Estatuene (Estatwane) which formerly went via the Tembe River to Port Henrique, a post 25 miles up that river. The present terminus of the Swaziland railway at Goba (or Gobo) is 45 miles from Lourenzo Marques, and the extension of the line a few miles across the border would reach one of the richly mineralized regions of Swaziland, and if continued across the open country west of the Lebombo Range would enable the good quality coal of Swaziland to be brought to Lourenzo Marques at a price much lower than any other South African port.
Resources of Swaziland.
Swaziland, which now is mainly dependent for its communications upon the coach route from Breyten, is as yet only in the preliminary stages of development. The European settlers in May
1911 numbered 1,083 and the natives are estimated at some 120,000. With this comparatively large population the country must naturally offer considerable advantages for pastoral and agricultural pursuits, and the number of horned cattle is estimated at 100,000, and of native sheep and goats at 250,000. In addition to the above, over 200,000 sheep are brought into Swaziland annually from the Transvaal for winter grazing, as well as large numbers of horses. Moreover, the country, both in the western and in the south-eastern districts, is highly mineralized. In 1915-16 cassiterite tin to the value of £66,067 and gold to the value of £29,595 (£62,783) in 1911-12) were produced, and in addition large coal areas are known. The Portuguese Government has endeavoured to facilitate this traffic. From railhead at Goba a good wagon road has been constructed to the frontier and a goods shed has been built on the Lebombo border, 8 miles distant from Goba, for the purpose of handling the Swaziland traffic. At present, however, no regular service of transport has been established in Swaziland to connect with the frontier post.


Texto no maputo100anos que suponho foi originalmente escrito por APL
Caminho de Ferro da Suazilândia: Surgira o momento de dar realização a um projecto que se acalentava há muitos anos; de que por vezes se falava com entusiasmo e que acabava por ser posto sempre de parte por falta de dinheiro, por deficiência de estudos e por dificuldades diplomáticas: — era a construção do caminho de ferro da Suazilândia. 
Os estudos e levantamentos de 1879 foram postos de parte por se terem levantado divergências sobre o percurso a seguir; na opinião de alguns técnicos seria preferível o da margem direita do rio Umbelúzi em vez do que havia sido traçado pela margem esquerda. Estamos em 1904. Alguns anos antes haviam-se concluído novos estudos preliminares pelos engenheiros Joaquim Machado, Farrell e Hall. Os projectos foram, por fim, completados e enviados para o Ministério do Ul­tramar. Havia urgência de uma decisão final; o Transvaal sofria os efeitos de uma grande depressão económica e temia-se que isso viesse a protelar a sua construção. Aguardava-se que o Transvaal concordasse com a continuação da linha quando chegasse à portela dos Libombos, junto a Goba — acordo, aliás, que nunca se obteve. O que se opunha a que passasse a fronteira da Suazilândia e atravessasse para o Transvaal, para se ligar em Breyton à linha de Joanesburgo, era o facto do território dos Suazis não estar integrado no Transvaal. A Grã-Bretanha opôs-se sempre tenazmente a essa integração. 
Nós, com os olhos fitos na possível exploração dos ricos jazigos carboníferos da Suazilândia e dos seus depósitos de minérios de ferro, esperançados em que o acordo se realizaria, dei­támos mãos à obra e assim é que em 1909 a linha férrea já estava construída, tendo parado apenas a três milhas de distância da fronteira. 
A construção deste caminho de ferro para Goba deu aos críticos, durante mais de meio século, o diapasão para injustas e acerbas injúrias contra a adminis­tração moçambicana e os seus homens mais representativos que as gerações de agora aprendem a admirar e a venerar desde os bancos da escola. A Suazilândia acabou, finalmente, por fazer o seu caminho de ferro. 

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