Demarcação de fronteira com a ZAR em 1890 - para norte do rio dos Elefantes até ao Nitsintsa (9)

Continuando com o tema da demarcação de fronteira de Moçambique com a África do Sul (ex ZAR, Transvaal) em 1890 lembro que no artigo anterior tinhamos visto a marcação até ao marco N, o segundo acima = para norte da portela do rio dos Elefantes. Do que consta no relatório da comissão portuguesa (pdf aqui) que vamos seguindo mas sem escalpelizar muitas partes e não por falta de interesse delas, os dois marcos seguintes para norte, o O e P que ficaram próximos um do outro, foram colocados em outeiros e feitos em pedra seca. 
Quanto ao marco Q, Freire de Andrade (FA), o comissário-chefe português diz no seu relatório ser o "do rio Ntzintza" e que ficou nas "collinas graníticas da origem do Ntzintza". Como veremos em baixo FA diz também que há duas fotos que mostram a passagem desse rio pelos montes Libombos e por isso serão certamente as duas seguintes atendendo ao que se vê nelas e às legendas (noto que nestas a grafia do nome do rio é ligeiramente diferente da do texto de FA). Vejamos então as fotos relacionadas com o Ntzintza / Utsintsa / Nitsintsa que por sua vez se relacionava, pela proximidade, com o marco Q. 

FOTO 1
Pedra na portela do Nitsintsa [?] (por onde passa a linha de fronteira  (ACTD album 3) 
FOTO 2

Portela do Utsintsa [Nitsintsa] (ACTD album 10)

Vê-se que os blocos de rocha da FOTO 1 estão ao centro - cimo da FOTO 2 pelo que são as duas do mesmo local. Ficámos a saber também que a linha da fronteira passa na vertical desses blocos mas rodando em torno desse ponto ela poderia ter muitas direcções. Todavia não se vê o rio (que de qualquer modo seria pequeno pois segundo FA estava perto da nascente) nem se vê o marco Q, pelo que para começar estamos um tanto "perdidos" no que respeita à localização desta portela e do rio.
Vou assim ver a informação adicional que FA - que era especializado em geologia - dá e começando pela sua descrição na página 35 da sua chegada ao local vindo do sul: 
"D'este campo (que tinha sido o número 23) seguimos até ás origens do Nitsintsa, onde acampámos no dia seguinte (vê-se as tendas na foto e voltaremos a ela por isso) ...Ali o terreno é um pouco accidentado e as erupções graníticas, formaram uma série de picos irregulares que marcam a abertura através da qual o rio atravessa o macisso de rochas.". Temos assim uma descrição da portela que se assemelha à situação das FOTOS 1 e 2. 
É pouco ainda mas FA prossegue:
"No alto da collina onde estava a povoação (abandonada após razia dos vátuas de Gungunhana), foi collocado o marco (que era o Q)sobre o mais alto bloco de granito...". E noutra parte do relatório relativa a esse marco (cerca da página 179) FA concretiza: "Depois da cadeia de montes se ter alargado no rio dos Elephantes, torna-se em seguida a apertar de modo que ao chegar áquelle rio (o Ntzintza) se encontram com frequência os picos isolados do granito. As longas planicies do lado do Transvaal seguem-se ininterrompidamente até encontrar a muralha granítica, cuja monotonia é quebrada aqui e acolá por collinas apparentemente cónicas .... A este degrau, que se eleva bruscamente do lado do Transvaal, segue-se um estreito planalto que vae em seguida descendo lentamente para o lado de Lourenço Marques... No ponto onde o rio Ntzintza tem a sua origem a muralha acha-se interrompida para o deixar passar, encontrando-se então ahi três picos juntos uns aos outros, perfeitamente caracterisados. Duas d'estas pontas graníticas acham-se áquem do rio (do lado de onde FA estava a chegar, do sul e vou-lhes chamar 1 e 2), e a terceira (ponta granítica ou pico, vou chamar-lhe 3) alem d'elle e um pouco para oeste,..., ao mesmo tempo que o rio, que primeiro corre norte-noroeste sensivelmente do lado oriental dos montes, dobra bruscamente para tomar a direcção sul-sueste
No pico central (tem de ser o 2), ..., acha-se uma agglomeração de blocos de rocha ... que as photographias juntas representam (FOTOS 1 e 2, que por isso mostram o lado norte do pico 2). Subindo ao planalto junto d'estes blocos e marchando em seguida para o sul, chega-se ao segundo pico (a que aqui chamo 1), .. em cujo cimo se collocou o marco (marco Q).
Coloco aqui esta descrição de FA e as minhas referências e deduções de forma condensada, com a linha de fronteira mais ou menos ao centro da largura (este - oeste) dos montes Libombos onde existe nesta zona um planalto:  


ESBOçO baseado no relatório de FA (página 179)
Castanho: blocos de rocha na encosta das FOTOS 1 e 2, na face norte do pico 2
Preto tracejado: linha de fronteira, aproximadamente
Verde claro: muralha granítica, descida brusca do planalto para o lado do Transvaal
Castanho claro: descida lenta do planalto para a planície do lado de LM
Laranja: portela ; Azul: rio
Vejamos o que o google maps / earth nos mostra para esta zona. Como na tabela do relatório da comissão não constam as coordenadas do marco Q procuro-as na carta de Jeppe de 1892 e concluo que eram 23°28'52.33"S 31°33'37.43"E. Então no google maps o marco Q está aqui mas à primeira vista não se vê nada que faça lembrar o esboço ou as FOTOS 1 e 2. Procurei também a denominação Ntzintza / Utsintsa / Nitsintsa nos rios em volta dele e não encontrei. Mas o google earth tem imagem com mais detalhe e com os relevos vamos conseguir compará-la com o ESBOçO de cima. De início a maior dificuldade foi de ajustar o "zoom" a aplicar à descrição de FA em que as distâncias no terreno eram um tanto vagas e subjectivas: 

FOTO 3 do Google Earth
Preto tracejado: linha de fronteira, aproximadamente
Círculo branco: marco Q, a fronteira flecte ai para a direita = norte
Verde claro: muralha granítica do lado da África do Sul
Vermelho: largura do planalto
Laranja: portela;     Azul: rio
Castanho: blocos de rocha estarão algures por aí, antes da portela
Castanho claro: descida lenta do planalto para a planície no lado de Moçambique
Como acho se pode verificar pela minhas marcações consegue-se fazer a equivalência da FOTO 3 com o local descrito em 1890 por FA e transposto para o ESBOçO dado que na linha da fronteira se encontram os dois picos a sul da portela, o Pico 1 onde está o marco Q que tem 450 m de elevação (enquanto que o planalto em volta tem menos de 400 m) e o Pico 2 com 420 m e que está um pouco desviado da linha mas imediatamente aquém da portela e do rio como FA descrevia. Vê-se também o Pico 3, que fica para além da portela e como FA dizia "um pouco para oeste". Como adiantei antes, o mais surpreendente (mas reflectindo bem tal seria de esperar dado que em África é tudo grande) são as enormes distâncias entre esses elementos, por exemplo o que FA diz ser "um estreito planalto" tem afinal 3.4 km de largura .
O que não encaixa em parte no que FA descreveu do local é o rio da portela. Quanto à primeira parte da sua descrição "primeiro corre norte-noroeste sensivelmente do lado oriental dos montes" essa corresponde ao afluente do Ntzintza / Utsintsa / Nitsintsa vindo de norte e assinalado com o quadrado no esboço. Todavia FA diz depois que esse rio "dobra bruscamente para tomar a direcção sul-sueste" e antes da portela na FOTO 3 eu vejo-o a dobrar para oeste, para mais sul-sueste seria na direcção paralela à fronteira, para baixo. Mas pode ser que FA nessa segunda parte se referisse ao curso do rio já longe da portela, pode ser de novo a questão do "zoom" mental e das distâncias reais.
Será este então o local da portela do rio onde as FOTOS 1 e 2 foram tiradas em 1890 visto do espaço:

FOTO 4
Castanho: zona dos blocos de rocha 
Preto tracejado: linha de fronteira, aproximadamente
Azul: rio corre aí de Moçambique para a África do Sul ,
ver as elevações nos extremos da portela
Verde claro: muralha granítica do lado da África do Sul
As FOTOS 1 e 2 terão então sido tiradas da portela para o que vimos é uma face do que seria o pico 2 mencionado por FA  que fica a sul da portela e no extremo dum planalto no topo dos Libombos e que vem do sul. É de notar todavia que para a esquerda = oeste havia um pico muito mais alto no limite a oeste do plateau / planalto e esse pico dista c. de 500 metros da linha de fronteira e seria por isso invisível nas FOTOS 1 e 2. Com grandezas de centenas de metros nos relevos da zona pode-se assumir que a vista que as fotos da comissão nos dão é muito limitada e daí não ser expectável que apareçam nelas todos os detalhes enunciados por FA.
Presumo que os blocos de rocha estarão ainda por lá na encosta da portela mas virtualmente penso que só satélites de espionagem tenham resolução que permita identificá-los. Do lado sul africano onde é o Kruger National Park há uma picada ao longo dessa fronteira (do lado de Moçambique penso que também há parque natural - aqui).
Com estas considerações acho que poderia ser "lida" assim a FOTO 2 e com a legenda mais completa. Mas "ser ou não ser, eis a questão", e como disse temos aqui um ângulo de visão muito pequeno tendo por exemplo em conta que o planalto no topo dos montes tem quilómetros de largura


FOTO 2 com marcas
Linha da fronteira na portela do Utsintsa [Nitsintsa] dos montes Libombos 
em vista para sul a cerca de 2.1 km do marco Q  (ACTD album 10)

Uma questão que resta considerar é se esse rio seria de facto o Ntzintza / Utsintsa / Nitsintsa dado que olhando para a carta de Jeppe de 1892 parece que não:

CARTA DE 1892 COM A FRONTEIRA MARCADA
Azul escuro (em cima, "horizontal"): rio Gras ou seu afluente segundo Jeppe, 
presumo que Ntzintsa segundo Freire de Andrade
Laranja: portela desse rio
Azul médio ("vertical"): rio Ntzintsa segundo Jeppe
Vemos nesta parte da carta de Jeppe o marco Q e um pouco para norte dele um rio a atravessar os Libombos, o que faz com que tenha de estar aí uma portela que seria a da FOTO 2. As nascentes desse rio estão no planalto do lado de Moçambique, vindo um tributário do norte e outro do sul, o que corresponde ao observado na FOTO 3 do Google Earth. Jeppe na carta não dá nome ao rio nesse local mas mais à frente (e ele corre para o lado da África do Sul) aparece como sendo o Gras e não Ntzintza / Utsintsa / Nitsintsa.
Na sua carta Jeppe chama Ntzintsa (FA também usou esta variante do nome) a um rio que está muito afastado da portela que vimos em cima e que para mais nem atravessa os Libombos. Assim se Jeppe estiver certo, à priori a legendas das FOTOS 1 e 2 deviam referir a portela do rio Gros e não do Ntzintsa (e porque há um "?" na legenda original da FOTO 1?).
Mas no final de contas o Gros é afluente do Tsende e este junta-se ao Ntzintsa pelo que esse rio da portela (que nem chegamos a ver nas fotos) faz parte da bacia hidrográfica do Ntzintsa e depois do Limpopo e FA pode ter resolvido simplificar ou sido induzido a fazê-lo. Curiosamente no google maps o único nome de rio que aparece por aí e à direita = leste da portela é Kumba que seria um dos dois tributários do que passa na portela, fosse ele chamado Gros ou Ntzintsa.
Seguindo ao longo da fronteira para norte como fez a comissão e aqui vamos acompanhando, os rios Sabié (portela aqui) e Uanetsi (portela aqui) pertencem à bacia hidrográfica do Incomáti, o rio dos Elefantes (portela aqui) é o primeiro para norte que pertence à do Limpopo e nessa bacia permaneceremos até ao fim da fronteira.
No próximo artigo seguiremos para norte do marco Q e até alcançar o último marco desta fronteira.

NB: comparando-se a elevação máxima dos Libombos na zona do marco Q, de que registo no topo da FOTO 3 469 metros e num ponto já a caminho do marco R, com a elevação perto da portela do Sabié que é de 316 m e com a do alto de Ressano Garcia que é de 227 m, pode dizer-se que a zona dos montes a nível dos marcos Q e R era mais elevada. Para mais no Google Earth (GE) vê-se que é zona arborizada e que teria potencial para nascerem cursos de água nas vertentes como FA descreve no relatório. 
Note-se que os números usados em cima retirados do GE são elevações e não altitudes, que seriam as elevações relativamente ao nivel do mar, mas a partir das elevações consegue-se comparar relativamente as alturas (ou altitudes) dos diversos pontos como se pretende aqui fazer.
Para termos ideia da relação entre as altitudes medidas em 1890 e que estão registadas na carta e as elevações que o GE agora nos dá, podemos olhar para o marco Q onde temos 550 metros de altitude e 450 metros de elevação. Isso significa que a elevação que o GE nos dá não é em relação ao nível do mar que fica a uns 80 km de distância, é em relação a algum ponto circundante mais próximo dos montes e por isso mais elevado (e sê-lo-à uns 100 metros) do que o "zero" de referência para a altitude.

Comentários