Demarcação de fronteira com a ZAR em 1890 - ligações com Gungunhana e pequenos chefes - V (36)

Concluirei aqui a série de análise ao artigo "The Lourenço Marques Frontier Limitation Committee and its pictorial records (Mozambique – 1891)" do académico Matheus Serva Pereira (MSP) sobre as fotos e o relatório da comissão com Freire de Andrade (FA) e Matheus Serrano (MS) de 1890. 
Referi no artigo anterior que discordo de MSP em relação ao que ele diz sobre as fotos tiradas por FA - durante os trabalhos da comissão e explorações posteriores - corresponderem a uma estratégia de "legitimização e autenticação de poder" básicamente porque para FA e MS esse poder na práctica não existia, teria sim de ser rápidamente conquistado por Portugal. Por exemplo escrevia FA na pág. 89 acusando os vátuas de Gungunhana / Ngungunyane e sublinhando a impotência portuguesa: "No interior os homens e as mulheres são roubados e assassinados sem o menor escrúpulo, segundo os caprichos daquelles indivíduos; e junto á villa de Inhambane succede a mesma cousa. Com semelhantes casos como poderemos, nós portuguezes, querer conservar prestigio sobre os povos? Como poderemos affirmar que o terreno é nosso e elles nossos vassallos sem que vamos confessar (que) somos fracos ou cúmplices (de Gungunhana porque nada fazêmos para o impedir)?"
Na mesma linha, discordo também da leitura de MSP de que o relatório mostra "the insistence that FA and MS (?) to establish a stronger connection between Gungunhana and the Portuguese administration" e que as fotos de Gungunhana / Ngungunyane e suas esposas reflectiam isso. Eu leio o relatório da maneira oposta, e não é só numa passagem é sempre que FA e MS referem o assunto. FA e MS eram militares profissionais e leais servidores de Deus, da Pátria e do Rei de Portugal (e diga-se sem procupações de julgarem a colonização) e posto que por múltiplas provas, e apesar de tentar manter as aparências Gungunhana na práctica não respeitava a soberania de Portugal, eles achavam que só restava a solução militar pelo que essas três fotos seriam simplesmente documentais. Quem acredita que capitães do exército esperassem que umas singelas fotos de esposas do Gungunhana (e que provávemente o chefe africano não chegaria a ver) fossem resolver o grave problema que existia? Não me parece realista esperar-se isso. 
ACTD web_n4023 Mulher de Gungunhana
Vê-se aqui uma dessas fotos mostrando uma bonita esposa do potentado de Gaza e que até não parece contrariada com a oportunidade de posar. MSP mostra também outra foto similar de "Mulher de Gungunhana" e a conhecida foto de Gungunhana com o intendente geral de Gaza, Conselheiro José Joaquim de Freitas de Almeida, fotos que terão sido tiradas posteriormente à passagem da comissão por esses locais entre novembro e dezembro de 1890 pois o encontro com o intendente geral não é referido no relatório de FA e MS. MS fala no relatório de ter visto esposas de Gungunhana mas tudo leva a crer que não levava consigo câmara fotográfica e por isso a foto de cima não é dessa ocasião.
MSP diz também que "The meetings of the expedition with Gungunhana was tumultuous", embora ele tivesse recebido simpáticamente os portugueses. No relatório da comissão MS não diz nada indicando que a sua reunião com o chefe africano tivesse sido tumultuosa (agitada, barulhenta, desordenada, revolta ou acidentada / agitada). Ponho a hipótese de MSP se referir à sua organização mas nesse caso simplesmente houve um atraso devido à embriaguês de Gungunhana, que uma vez resolvido o problema até se justificou a MS. A recepção simpática referida por MSP é confirmada por MS que prossegue, pelo que eu percebo, dizendo que após as "urbanidades" iniciais ele e Gungunhana cordatamente trocaram informações e disseram de "suas razões", não se tendo resolvido nada mas também não se tendo agravado conflitos precedentes. No final Gungunhana pediu desculpa por não poder dar um presente e "acedeu imediatamente" ao pedido de MS para lhe arranjar um guia e mais pessoal para partir para Inhambane. Dias depois MS foi agradecer um vitelo que Gungunhana tinha entretanto oferecido e este pediu-lhe umas prendas para as suas mulheres que presumo MS lhe tenha depois enviado. Por isso nada de tumultos, nas condições vigentes e dada a posição "agressiva" de MS em relação a Gungunhana e seus actos a reunião até decorreu mais calmamente do que seria de esperar.
FA menciona uma grande reunião no Bilene mas não é certo que nessa Gungunhana tivesse estado presente. Se esteve, nada de tumultuoso "à superfície" aconteceu mas era evidente a tensão entre Portugal e Gungunhana. 

Voltando ao artigo anterior em que MSP escreve que FA "aconselhava a estabelecer alianças com chefes que não estavam satisfeitos com Gungunhana" mas MSP não mostrou uma foto a que fosse aplicável essse contexto. Coloco aqui uma do régulo Dovil, que não sei bem onde habitava e que posição tinha nesse conflito mas isso não é importante para o caso (deste régulo vimos outra foto mais próxima aqui):
Regulo Dovil e familia (ACTD web_n3280)

Os chefes como Dovil em cima e Novele de Malasche do artigo II que FA e MS mais ou menos ao acaso foram encontrando no seu percurso para o litoral, na maioria controlariam pouco mais do que uma aldeia de uma dezena de palhotas e menos de 100 almas, eram por isso "pequenos chefes". 
Poderia este tipo de fotos ter acontecido dentro do contexto como MSP diz de que FA "aconselhava a estabelecer alianças com chefes que não estavam satisfeitos com Gungunhana"?  Serviriam estas fotos no relatório o propósito de "legitimar" as acções que FA propunha que Portugal viesse a tomar contra Gungunhana? À primeira vista pareceria que sim, só que há um problema. No excerto do relatório que vimos no artigo anterior (da página 91) FA fala de os portugueses tentarem obter o apoio dos régulos principais da região dado que esses poderiam contribuir significativamente para a vitória portuguesa. Se na colecção aparecessem fotos desses "grandes chefes", aí poderiamos atribuir a FA essa intenção, mas como quem foi fotografado por FA foram só "pequenos chefes" encontrados aleatóriamente é óbvio que a eles não se pode aplicar o mesmo contexto. Teria tido FA outra intenção ao fazer fotos dos "pequenos chefes" para além de documentar a passagem pelas suas aldeias? Não se sabe mas neste e no caso das fotos relacionadas com Gungunhana parece-me que MSP lhes tenta atribuir estratégias subadjacentes que não são explicadas / explicáveis pelo contexto histórico e político.
Mais geralmente sobre a obtenção de alianças com os "principais régulos" proposta por FA, temos de pôr de lado o conhecimento que temos da carreira posterior de FA e ver que à época FA era simples "Comissário das Minas" na vida civil e capitão, um posto médio na estrutura militar. Por isso não lhe caberia decidir estratégias e fazer os contactos com os régulos principais que ele propunha, ele simplesmente delineava essa estratégia e como as mudanças de poder e política em Portugal eram frequentes nada lhe garantia que ela fosse bem aceite e porventura posta em práctica. Temos também de ter em consideração que durante a missão FA e MS estavam essenciamente preocupados e ao seu pequeno nível com o curto prazo, em arranjar alimentação para eles, os seus homens e os animais de carga, e em obterem guias ou indicações para o caminho a seguir por exemplo para chegarem a bom porto numa missão difícil. Daí que tivessem de interagir com os chefes locais e tomar notas das suas informações, pedidos e queixas mas vejo pouco no relatório sobre tentativas suas de convencer os interlocutores africanos dubitativos a serem portugueses. Mesmo o voluntarioso FA ao tentar ir à aldeia de Masibi (que como vimos aqui era leal a Gungunhana, o que FA ainda não suspeitaria) e ao ser drásticamente mal recebido simplesmente optou por continuar viagem.
Como seria de esperar, FA e MS não se questionam sobre qual seria a vontade das populações relativamente a quem deveriam prestar lealdade nacional, para eles o histórico domínio português daquelas terras fazia parte da "ordem natural das coisas" e tinha até sido recentemente consagrado em tratados internacionais e por isso não seria caso para arranjos ou discussões com pequenos chefes de aldeia. Parece-me então que MSP neste caso da estratégia político / militar que estaria subadjacente à fotos e que distorceria o seu valor documental confunde duas coisas:
a. o pequeno plano que seria o das fotos e relatório da comissão e mesmo o das explorações feitas pelos seus membros após a conclusão da marcação da fronteira; 
b. o grande plano de Portugal para Moçambique de que parte crucial e premente teria a ver com as relações com o grande poder rival que era o de Gungunhana que alguém, possivelmente ao nivel ministerial em Lisboa deveria preparar. 
Colocando-se as fotos de FA num contexto mais local e de nível inferior evidentemente que o seu valor documental seria maior do que criando para elas o contexto de fazerem parte duma estratégia superior.
Resumindo acho a apresentação de MSP sobre este exemplo de fotografia colonial com algumas boas pistas a seguir mas em minha opinião como a análise que faz é muito ligeira não as persegue competentemente. A sensação de discordância em relação ao que MSP escreve é limitada porque ele é pouco concreto, ele não diz específicamente para cada foto qual seria a intenção subliminar permitindo confrontar-se aí as duas opiniões. Em alguns casos MSP anuncia que o vai fazer mas se o faz o resultado não é claro. As divergências ficam-se assim mais a nível dos contextos e das premissas onde não parecem tão sérias.
Como se vê pelas inúmeras críticas que faço ao seu artigo em minha opinião MSP "podia e devia ter feito muito melhor". Tenho a impressão de que o artigo terá sido feito à pressa pois, sendo MSP um bom conhecedor do tema, presumo que tenha tido pouco tempo para reflectir sobre o material e ferramentas teóricas disponíveis e para sistematizar o que nos pretendia transmitir.

Algumas notas adicionais:
NB 1: MSP aponta negativamente às fotos por colocarem os nativos como "elementos da paisagem" e por eles serem nelas usados para "autenticação do poder". Em minha opinião, a "autenticação do poder" será mais forte quanto mais os nativos se "destacarem da paisagem" e se tornarem "humanos". Daí o objectivo de "diminuir os nativos = serem elementos da paisagem" seria contraditório como de "usá-los como símbolo de autenticaçâo do poder = engrandecê-los de modo a que valorize o poder" pois ninguém dirá que é o super-homem por esmagar uma formiga. MSP poderia ter também reflectido sobre isso e sobre a contradição que para mim emerge de ter englobado tudo na mesma crítica, mas ..
NB 2: Note-se que se FA em público afirmava que as terras eram portuguesas como se pode depreender duma passagem em que falava com o régulo Chicualacuala (c. pág 50 - "queixava-se (Chicualacuala) entretanto de que os portuguezes, dizendo ser, como nós lhe dizíamos, donos d'aquellas terras, deixassem que elles fossem continuadamente assaltados pela gente do Gongunhana") no relatório alertava que se Portugal não reagisse contra Gungunhana corria o risco de perder os seus domínios;
NB 3: Noto que há alguma similitude entre um ponto da análise de MSP e a que Paulo Jorge Fernandes (PJF) fez a estas fotos e que abordei neste artigo e por isso acaba também por haver semelhanças nas minhas críticas aos dois trabalhos que como disse em cima podem ser mais específicas no caso de PJF do que no de MSP. Por isso falei nesse artigo de que estas fotos não poderiam ter a intenção de mostrar que as relações com Gungunhana eram boas se era dito claramente no relatório que elas eram más, e que as ftos não podiam "testemunhar da capacidade de Portugal em administrar a colónia" dado que como digo acima FA dizia até que Portugal corria sério risco de a perder devido à inação passada e presente. Lembrava também nesse artigo o que acabo por dizer neste no final, que apesar de no relatório ele expor algumas ideias, o trabalho oficial de FA não era de definidor da estratégia colonial e que durante a missão ele esteve demasiadamente ocupado com tarefas menores, por isso "vermos" agora intenções subliminares nas fotos que foi tirando, para além da "carga informativa, científica e etnográfica" que elas principalmente teriam, será muito discutível. 
NB 4: Por maiores que fossem os desígnios que FA tivesse para as fotos, ele tinha escolhido só cerca de dez para ilustrar o relatório como vimos aqui mas mesmo essas acabaram por não ser publicadas com o texto, presumo que por dificuldades técnicas. Não sei que divulgação terão elas tido depois mas segundo diz MSP só "reapareceram em público" em 2013 quando foram disponibilizadas em linha pelo ACTD.

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