Demarcação de fronteira com a ZAR em 1890 - cartas de Mabanine e o rio Ualuize para sul (29)

Continuo os artigos anteriores sobre as missões individuais de exploração dos capitães Freire de Andrade (FA) e Matheus Serrano (MS) que se seguiram à demarcação da fronteira entre Portugal (Moçambique) e a ZAR (Zuid-Afrikaansche Republiek SAR dos boer, parte da actual África do Sul) em 1890.
Falámos muito sobre a zona de Mabanine que FA atravessou de leste a oeste confrontando-se com sérias dificuldades e por onde MS seguiu caminho mais anguloso. MS chegou a Mabanine marchando na direcção do nordeste à procura da nascente do rio Ualuize, flectiu depois a leste para encontrar o rio ainda no seu curso inicial e depois desceu-o para sul - sudeste, passando aí duma para outra margem a caminho da sua foz que se desconhecia onde era. Explicando melhor o que MS procurava, sabia-se que um rio de certo caudal desaguava na margem esquerda do Limpopo já perto da sua foz no Índico e que o padre Rita Montanha tinha visto em 1855/56 um rio na zona da planície lacunar de Mabanine mas não se sabia se era o mesmo (veremos isso depois).
Vamos então tentar ver aqui como aparecia essa região nas cartas geográficas de antes e de depois da missão portuguesa de 1890, primeiro com as cartas de 1869 e de 1886 do editor britânico Colton e disponibilizadas pelo fantástico site de David Rumsay.

CARTAS DA ÁFRICA AUSTRAL de 1869 e 1886 de Colton, 
focando-nos no sul do Save (clique para aumentar)
Branco: Matola, em posição correcta relativamente a Delagoa Bay
Púrpura: Lourenço Marques, só na carta de 1886
Amarelo: rio Incomáti, chamava-se KGeo (?) ou Manice (Manhiça) 
Rosa: Rio Inhampura
Azul escuro: rio Limpopo 
Verde: rio dos Elefantes
Laranja: devia ser o Ualuize, na margem esquerda a norte do Limpopo 
e com junção perto da foz deste
Circunferência laranja claro: junção do Pafuri com o Limpopo, 
ponto tripartido de fronteira
Circunferência castanha: onde seria o Mabanine pois aí nascia 
o "Ualuize" ou vários outros rios
Roxo: Inhambane
Castanho café: rio Save, fronteira sul de Sofala
Azul médio: rios que nascem no que seria Mabanine 
e que vão desaguar na baía de Inhambane na carta de 1886

Carta de Colton de 1869, a de cima
Por coincidência ou talvez não, a carta é do ano em que Portugal e o Transvaal (África do Sul) definiram a fronteira comum "pelos" montes Libombos. Tal já lá aparece marcado embora os montes apareçam mais prolongados para norte do que na realidade. Como a costa do Índico era mais frequentada por europeus, as posições da Baía Delagoa, depois chamada do Espírito Santo e agora de Maputo (note-se que a localidade de Lourenço Marques, actual Maputo era tão insignificante que não aparecia...) e de Inhambane estão representadas correctamente mas para o interior veremos que não era assim. 
Pela posição intermédia entre a Baía Delagoa e Inhambane o rio "rosa" deveria ser o grande rio Limpopo mas estava aí o pequeno Inhampura. Entretanto o rio Limpopo aparecia na carta a desaguar em Inhambane, o que estava errado para norte de mais de duas centenas de kms
Quanto ao rio dos Elefantes estava correctamente indicado como sendo afluente do Limpopo mas como este estava na posição errada então o dos Elefantes aparecia demasiadamente para norte, quase no paralelo de Inhambane
Quanto ao rio "laranja", pela posição em que desaguava no Limpopo (vê-lo correcto em baixo na carta de Jeppe de 1892) seria o Ualuize / Chengane. Mas com o Limpopo a desaguar em Inhambane então esse rio estaria muito mais para norte do que na verdade está e o mesmo aconteceria à planície de Mabanine onde se esperava que ele nascia. Tudo isto na carta de mais antiga de 1869 e passemos à análise da mais moderna.

Carta de Colton de 1886, a de baixo
Esta carta denota uma melhoria significativa na exactidão da representação em relação à de 1869. Como a missão de FA e MS teve lugar em 1890 eles poderiam ter levado essa carta consigo mas não a mencionam no seu relatório, mas como disse suponho que a carta de Jeppe que utilisaram lhe fosse similar. Nota-se que o grande erro da carta de Colton anterior relativo ao rio Limpopo e sua foz e que causava muitos dos outros erros tinha sido corrigido nesta de 1886. No entanto o rio Ualuize, o afluente a norte do Limpopo que se lhe junta perto da foz aparece nesta carta de 1886 muito curto e daí a sua nascente ficar muito para sul donde seria Mabanine (planície que não estava sequer nomeada), o que como MS veio a descobrir em 1890 estava errado. 

Do que constatámos aqui, parece-me então que FA e MS em 1890 ao olharem para a carta de Jeppe que estariam a usar (que suponho fosse equivalente à Colton de 1886) se questionariam qual dos rios desenhados nessa zona de Mabanine, mais ou menos central da parte de Moçambique a sul da "Beira", se confirmaria que nascia mesmo aí e que seria afluente do Limpopo, por isso o Ualuize. 
O que se via por essa zona na carta de 1886 é que o "laranja" (sem nome) nasceria muito para sul de Mabanine mas que esse era o único afluente do Limpopo nessa direcção pois os rios marcados a "azul" nasciam na zona mas iam desaguar a leste na Baía de Inhambane. Foi para esclarecer isso que MS teve de ir às lagoas de Mabanine procurar a nascente dum rio que depois descesse na direcção de sul-sudeste e a partir daí seguir o seu curso completamente de forma a confirmar que era afluente do Limpopo. Então o resultado geográfico mais importante da exploração individual de MS foi de em cartas seguintes a esta de 1886 se poder desenhar o rio "laranja" mais longo pois a sua nascente era mais a norte do que na carta de 1886. 
Quanto aos rios marcados a "azul" não sei se FA ou MS nos relatórios fazem alguns comentários quanto à sua existência e / ou localização, era preciso ler os relatórios dos dois com muita atenção para o descortinar. 
Resumindo, para se ficar com a certeza que nascia um rio em Mabanine e que seguia na direcção do Limpopo (sudeste) e não na de Inhambane (leste) nem na do Save (norte) foi essencial que MS tivesse ido a Mabanine e que depois o tivesse seguido até à junção com o Limpopo. A missão de MS teve então interesse científico universal e embora não fosse uma zona de fronteira em disputa com outra potência estrangeira teve também a vantagem de Portugal com a sua divulgaçâo mostrar que tinha conhecimento e por isso controle efectivo do território, como tinha passado a ser requerido internacionalmente na sequência da Conferência de Berlim (embora segundo li tal não tenha lá sido expressamente determinado contráriamente à "voz populi").
Noto que nas duas cartas de cima marquei Mabanine a partir das posições do Limpopo e de Inhambane considerando que essa planície ficaria quase a chegar a metade da distância entre o Pafuri e Inhambane e porque se vê estar nessa zona a origem de vários. Presumo que Mabanine estivesse escrito nalguma das cartas ou relatórios que FA e MS tivessem, talvez na de Jeppe que não temos para o verificar. Na carta do padre Rita Montanha que FA e MS também usaram e de que falaremos depois (e hei-de ver no relatório que a contém) não há menção a Mabanine e vê-se que nas de Colton também não. 
Continuando a olhar para as cartas de David Rumsay podemos ver uma de 1905, uns 15 anos depois das explorações de FA e de MS. Aparecem aí as lagoas de Bembe e Chicarre, que dizer as de Mabanine (embora sem ser dado esse nome à zona), que FA e MS observaram e que tinhamos já visto na carta de Jeppe de 1892. Nota-se também nesta carta de 1905 evolução positiva em relação à de Jeppe de 1892 pois os rios em volta dessa planície estavam aqui mais bem definidos:

CARTA DA ÁFRICA AUSTRAL de 1905 de Habenicht, H. 
focando-nos em Mabanine (clique para aumentar)
Castanho escuro: planicie de Mabanini, não assinalada específicamente
Castanho claro: Maquiqui (Makiki), ponto a partir do qual 
FA e MS fizeram explorações individuais
Vermelho: Iniant'chichi, ponto mais a sul onde MS foi 
antes de seguir para as lagoas a nordeste
Carmesim: lagoa de Bembe
Azul escuro: lagoa Chicarre ou Schicárrligada à Bembe
Laranja: rio Ualuize, actual Chengane nascendo na lagoa Chicarre
Azul claro: rio Tundgi ou Mundgi, um dos tributários das lagoas 
e que FA partindo de Makiki seguiu na marcha para leste
Circunferência laranja, à esquerda: Pafuri, onde tinha terminado 
a demarcação da fronteira com a África do Sul
Roxo, à direita: Inhambane, destino de FA (e também de MS depois 
de chegar à junção do Ualuize ao Limpopo e que viu ser perto de Manjacase
Mancha azul: rio Limpopo, descendo para a foz junto ao Xai Xai (também João Belo)
Marcha verde: rio dos Elefantes, afluente do Limpopo
Mancha amarela: rio Singuetsi / Singwedsi, afluente do dos Elefantes
Voltaremos mais tarde ao assunto das cartas que FA e MS tinham em 1890 para se compreender o que eles procuravam e as dificuldades que tiveram para o encontrar.
No próximo artigo falaremos do equipamento fotográfico da comissão que pelas imagens  produzidas nos permitiu ter muito melhor ideia do que viveram estes homens nesse ano.

NB: Deve ser por causa da confusão entre o "rosa" e o "azul" na carta de Colton de 1869 que na carta de Jeppe se chamava também rio Inhampura ao Limpopo.  Na África do Sul chamavam-lhe também Bembe, ver aqui que o nome do rio varia conforme as tribos / povos e mesmo o nome Limpopo poderá ter duas origens, ndebele ou zulu.

PS: Questiono-me se MS terá perguntado ao chefe nativo Bacelle, que lhe foi indicar onde o nascia o rio de que se ficou a ter a certeza ser o procurado Ualuize, se sabia se esse rio era afluente do Limpopo? O que teria / terá respondido Bacelle? Porque nome Bacelle conhecia o rio? 
Para mim não é fácil imaginar as respostas de Bacelle ou seja qual o nível de conhecimento que as populações tinham da geografia da zona e se era essa a causa da imprecisão das cartas quando os ocidentais tentavam recolher informação à distância. Como já disse antes, segundo MS o rio tomava nomes conforme os lugares por onde passava ("M'ualuize, D'ualuize, Ualuize, Inhangude, Pongute, Chengane" e também penso que Uahire / Uahise) por isso não sei se os locais tinham a noção ou não de se tratar dum único rio, tendo em conta que a geografia da zona e as tensões políticas / de segurança internas não facilitavam as deslocações e os contactos ao longo do rio. E vendo a mesma questão mas de jusante para montante, teriam as populações de junto à embocadura do rio no Limpopo noção de onde ele nascia?

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