Feitoria do Allen Wack na Baixa de Lourenço Marques (2/6)

Na sequência do primeiro artigo continuaremos a falar da firma Allen Wack (AW), uma feitoria com armazéns comerciais que ficavam um pouco para leste = nascente da Fortaleza  de Lourenço Marques (LM), actual Maputo. A AW tinha instalado entre cerca de 1880 e 1890 em frente deles no estuário uma ponte feita em madeira que utilisava para descarregar barcaças com mercadorias trazidas por navios que amarravam ao largo. Neste artigo vamos primeiro conhecer mais das construções no local e depois tentar encontrar uma lógica para o que se verá. 
Vimos em duas fotos que em 1895 essa primeira ponte tinha desaparecido e começaremos aqui por ver imagens de tempos posteriores em que no seu lugar aparecia uma nova ponte e construída em pedra maciça (um molhe ou muralha).
FOTO 1

Borda do estuário do lado oriental da Baixa de LM
vista para nascente = leste com a Ponta Vermelha ao fundo
A primeira versão da FOTO 1 (um postal) é reproduzida de Albertino Silva no flickr, a sua legenda original era simplesmente "Ponta Vermelha" (PV) e a sua data deve ser próxima de 1905. Vê-se à esquerda em primeiro plano um muro mais alto e largo que deve ser a base até ao pátio central da fortaleza e que era aberto para o lado do estuário = sul. Depois vê-se um muro comprido e sobre a plataforma que ele sustenta depois de terreno livre o que devem ser os armazéns do Allen Wack começando com uma pequena torre frente ao estuário. Ao fundo desse conjunto aparece para a direita o pontão do Allen Wack. Na última foto do primeiro artigo e que era de 1895 tinhamos visto o limite a leste = oriente dessa plataforma mas ainda sem esta nova ponte (molhe ou muralha). Ainda na FOTO 1 depois dessa plataforma vemos a enseada da Maxaquene antes de ter sido feito o aterro e finalmente na base da PV os edifícios dos trabalhadores das obras do porto de 1897 / Em seguida uma foto dos Lazarus por isso posterior a 1899, mostrando uma situação semelhante à da FOTO 1 com a pequena torre nos armazéns do AW e com a nova ponte  (molhe ou muralha) em pedra:


FOTO 2
à esquerda: pequena torre nos armazéns do AW
em frente: nova ponte do Allen Wack com construções em cima
ao fundo: promontório da Ponta Vermelha (PV)
Podiamos ver a nova ponte do AW em fotos tiradas da barreira da Maxaquene para o lado do estuário e que serão pelo menos de 1899 (ou de depois):

MONTAGEM 1
Vermelho: nova ponte do AW no estuário com construções em cima
Laranja: armazéns do AW na plataforma em terra 
Círcunferência azul: pequena torre nos armazéns do AW
Rosa: primeiro cais da Alfândega
Então a nova ponte em pedra do AW apareceu cerca de 1900 e entre 1915 e 1920 acabou sendo absorvida pelo aterro que avançou sobre o estuário na zona em que ela tinha estado. Tentando agora perceber a lógica do que aconteceu e sem dados adicionais, lembro do primeiro artigo que a firma privada AW construiu a primeira ponte de madeira na ausência de tal infraestrutura essencial para o comércio feita pelo Estado. Mas este cerca de 1890 começou a preparar o porto para as barcaças atracarem (ver aqui) e o AW deve ter resolvido (ou foi forçado?) a desmantelar a sua primeira ponte. E como sabemos que o Estado continuou depois a investir no porto e inclusivamente no início do século XX a AW tinha instalações no cais das estâncias precisamente previstos para os grandes armazéns do seu género, porque terá aparecido uma nova ponte frente ao AW? 
Dado importante, segundo Lisandra Franco de Mendonça e Alfredo Pereira de Lima (e veremos isso um pouco melhor no sexto artigo desta série), o Estado tinha decidido em 1888 que fosse Charles Wack e depois a (sua) firma Allen Wack a fazer o aterro da enseada da Maxaquene que iria da fortaleza (a zona onde a AW estava físicamente implantada) até à base da Ponta Vermelha. A minha hipótese é então que o que parece ser a "nova ponte de AW" fosse afinal uma construção relacionada com um dos projectos de fecho da enseada, neste caso do seu lado poente. Falta saber se essa construção terá ainda sido feita por AW ou pelo Estado, porque essa concessão à AW foi anulada em 1897. Quer dizer, se a "nova ponte do AW" foi feita entre 1895 (não se via ainda nas fotos desse ano) e 1897 (o ano de anulação do seu contrato) então tê-lo-à sido ainda pela AW (e terá sido indemnizada depois pelo Estado?) mas se a "nova ponte do AW" foi feita depois de 1897 então terá sido pelo Estado pois como expliquei aqui foi precisamente em 1897, e presumo que após a anulação da concessão à AW, que o Estado iniciou por aí as chamadas Obras do Porto. Noto que mesmo que a "nova ponte do AW" tenha sido ainda feita pela AW entre 1895 e 1897 o seu projecto deve ter sido pelo menos validado pelo Estado, por isso as suas ideias de base deviam ser as que foram depois adoptadas para as Obras do Porto. 
Mas essas Obras do Porto que começariam imediatamente para leste do local da AW foram canceladas pelo Estado em 1899 e a "nova ponte do AW", que assim se deduz não deve ter sido construída depois desse ano, deve ter sido das poucas coisas que restaram desse plano que iria transformar a zona a leste da Baixa. Por fim o Estado decidiu que o porto de LM seria para oeste da Baixa e em 1902 iniciou a construção da ponte-cais Gorjão. Como esta começa uns 275 metros para oeste do local da AW (inauguração em 1903) a "nova ponte do AW" ficou atravessada no estuário sem utilidade ou ocupação muito específica pelo menos pelo que se vê nas fotos. E isso até que como dissemos desapareceu de vista absorvida pelo aterro da Maxaquene iniciado em 1915 (trabalhos esses que foram uma versâo revista e diminuída das Obras do Porto previstas uns 20 anos antes). 
Para mim, como diletante fazer estas conjecturas baseadas nos poucos elementos relativamente acessíveis que são os mapas e fotos pode ser muito interessante intelectualmente mas óbviamente os resultados são pouco fiáveis (até pode ser que a "nova ponte do AW" fosse para proteger o desembarcadouro a sul da Praça 7 de Março e tudo o que eu "vi" fossem coincidências). Mas sobre elementos mais científicos e estruturados disponíveis que permitissem responder ao tipo de questão que me coloco há pouco. Temos a tese de doutoramento da arquiteta Lisandra Franco de Mendonça que é um trabalho recente, abrangente e profundo sobre o passado da cidade ("Conservação da Arquitetura e do Ambiente Urbano Modernos - A Baixa de Maputo" - descarregar daqui) e que tem algumas referências à nova ponte de AW mas óbviamente esse não é o seu foco. De resto não me lembro de nada acessível na net e certamente existirão documentos desses tempos sobre a Baixa, o porto e a vida comercial da cidade que investigadores profissionais (os historiadores nomeadamente) podiam procurar, estudar e publicar. Por isso se algum historiador ler isto e ficar com ideias seria óptimo ...
Alguns dados concretos do que foi feito (mas não das suas razões) podemos obter dos mapas antigos da cidade e com a sobreposição seguinte podemos ver o principal de que falámos acima. Pode distinguir-se o mapa de 1925 de fundo claro que serve de base à sobreposição e que reflecte a situação actual da zona junto ao estuário pós aterro de 1915/20 e por cima dele aparece o mapa de fundo castanho em que reforcei alguns contornos e que é de 1903 por isso de antes do aterro e onde a "nova ponte de AW" ou seja a muralha ou molhe maciço de pedra está bem visível. 


Evolução da zona oriental da baixa entre 1903 e e 1925/26 (actual)
Mancha azul clara: costa do estuário em 1903, ainda muito próxima da natural
Mancha azul média: limite do estuário depois do trabalho do aterro da Maxaquene
 de 1915/1920 e que se mantém actualmente
Castanho escuro: fortaleza de Nossa Senhora da Conceição
Roxo: ponte-cais Gorjão construída a partir de 1902 do lado oeste da Baixa 
e definindo o limite do estuário a ocidente = oeste da fortaleza
Amarelo: muro de suporte do aterro da Maxaquene construído entre 1915 e 1920, 
definindo o limite do estuário a oriente = leste da fortaleza
Laranja: armazéns do Allen Wack já com o pátio fechado em 1903
Circunferência azul: posição da pequena torre do AW  do lado do estuário = sul
Vermelho: "nova ponte de AW" (mas que não seria para as barcaças 
como a primeira) saindo da costa desde c. de 1899
 mas que foi aborvida pelo aterro até 1920
Rosa e preto: primeira e segunda fases da ponte a capitania ou da Alfândega
Esta sobreposição torna mais claro nas fotos da MONTAGEM 1 em que posição estariam agora na zona da Doca da capitania - fortaleza - Capitania (Inamar) as instalações do Allen Wack, os seus armazéns, a sua primeira ponte e depois a nova ponte ou seja o molhe que suponho seria um pouco mais longo que a primeira. Note-se que a fortaleza acabou por definir a direcção do que ficou a zona de cais da cidade (para a sua esquerda = leste) e do que não ficou (para a sua direita = oeste), mesmo que parte desta pertença ainda ao porto por exemplo as docas da capitania e seca, o edifício da capitania e áreas envolventes. A razão como explicámos aqui é que devido às profundidades no estuário, se tivesse sido feito o cais para leste da fortaleza ele teria de ficar mais dentro do estuário do que ficou para oeste e isso seria era um grande inconveniente. 
No entanto penso que a maior conclusão da sobreposição é que se a intenção da "nova ponte de AW" era de limitar e definir o aterro da Maxaquene ou o novo cais do seu lado ocidental = oeste, então a ponte que estaria representada no mapa de 1903 seria curta demais (apesar de nas FOTOS 1 e 2 e MONTAGEM 1 à primeita vista parecer uma grande construção). Presupondo que o mapa está de acordo com o molhe = muralha que se vê construído nessas fotos, isto leva-me à pergunta se chegou a ser feito o comprimento total do molhe que tivesse sido previsto ou se a sua construção foi interrompida em 1899 com o fim dos trabalhos das Obras do Porto.
No artigo seguinte tentaremos ver a relação física entre a muralha/molhe do Allen Wack e a doca seca durante a construção desta pois como podemos ver no mapa houve intersecção entre elas.

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