Firmas da Rua Araújo do início do séc. 20: Torre do Valle do número 155 e parentes

Outra das firmas listadas no Anuário de Moçambique em 1908 e que estiveram na Rua Araújo de Lourenço Marques (LM), actual Rua de Bagamoyo de Maputo do início do século 20 de que falámos aqui e de que apareceram agora envelopes a venda no site delcampe é a de Torre do Valle. 
anúncio desse envelope está aqui e ele deve ter sido enviado em 1904 (não percebo o significado do "provisório" no selo mas ...) 
Envelope de Torre do Valle & Co. de Lourenço Marques

Segundo o Anuário de 1908 a firma Torre do Valle actuava no sector dos serviços portuários, etc que compreende as cargas e descargas, estivadores, comissões e consignações, agênciamento de companhias de navegação e de seguros, etc. O seu endereço na Rua Araújo, actual de Bagamoyo pelo menos nessa altura era no número 155, por isso do mesmo lado da rua que a loja de McIntosh, Findlay de que falámos no artigo anterior. Mas como essa loja estava no número 137, a Torre do Valle estaria um pouco mais afastada da Rua da Mesquita (à direita) e próxima da praça da estação dos caminhos de ferro (à esquerda) em relação ao que actualmente seria esse quarteirão e da parte de cima = norte da rua. 
Já tinhamos reparado num senhor de apelido Torre do Valle numa foto de que falámos neste artigo e que será de entre 1906 e 1910, o período em que Freire de Andrade que ocupa aí a posição mais destacada foi Governador-Geral de Moçambique:

FOTO 1
Laranja claro: pela legenda seria Ernesto Torre do Valle, representante de LM
Vermelho: Governador-Geral de Moçambique, Freire de Andrade

Como disse aqui a propósito dessa foto tenho a ideia de que o grupo de cima seria um orgão consultivo do governo e que combinava altos funcionários com representantes dos negócios e outras personalidades influentes. Assumo então que esse Ernesto Torre do Valle (ETV) fosse o proprietário da firma Torre do Valle e por algum motivo tivesse sido escolhido como representante de LM. 
Numa edição da revista laurentina O Ilustrado muito posterior aparece uma foto de 1906 tirada na praia da Polana com a barreira ainda selvagem por trás e em que ETV é citado (era também aí dito que em 1933 ele já não estava vivo). Tendo em conta a proximidade de datas não seria de esperar que houvesse grande diferença na fisionomia de ETV entre a FOTO 1 (que será de 1906 a 1909) e a FOTO 2 (de 1906) e tentando seguir a descrição feita na sua legenda (que não era muito clara) talvez ETV fosse o senhor da marca laranja clara na FOTO 2. 

FOTO 2
Laranja claro: Ernesto Torre do Valle (ETV), seria ele nas duas fotos?

Outro elemento que temos sobre ETV é que como se pode ver aqui, ele com Erne que seria a sua esposa foi autor dum dicionário Ronga-Português que foi publicado em 1906. ETV devia estar bem relacionado com assuntos africanos porque na obra de Zamparoni "De escravo a cozinheiro" aparece a seguinte nota de fim de página relativa ao recrutamento de trabalhadores africanos para os grandes projectos de infraestruturas dessa altura: "Mavulanganga. A Rusga. Carta aberta ao Exmo Sr. Delegado e Procurador da Corôa e Fazenda, Curador dos Orphãos, serviçaes e indígenas. Lourenço Marques: Typographia de A. W. Bayly & Co, 1900, 16 p. Mavulanganga significa “o que abre o peito” e era o pseudônimo de Ernesto Torre do Valle, que chegou em Moçambique como contratado para as obras da ferrovia ligando Lourenço Marques ao Transvaal.".  Daqui também se vê que ETV participou em 1894 nas missões de definição de fronteiras na região sul de Moçambique com a África do Sul boer como secretário da comissão portuguesa chefiada por Caldas Xavier
ETV foi também membro duma comissão que preparou um relatório em 1908 sobre o porto de LM (com Alexandre Couto, G. Merson e Hugo de Lacerda) e não tenho a certeza que o Torre do Vale da firma na Rua Araújo fosse ETV mas com todos estes dados e como disse acima assumo que fosse. 
O historiador JP Borges Coelho no livro "O Olho de Hertzog" de que falo aqui tem uma passagem de mais de uma página sobre ETV. Aparece dito pelo jornalista João Albasini ao narrador que ETV tinha chegado a Moçambique antes de 1888, "era uma figura alta e esguia, ligeiramente curvada, cara comprida e patilhas enormes, sobrancelhas espessas e mãos grossíssimas, um dos brancos que chegava no bojo dos navios transportado como gado para trabalhar no caminho de ferro". Apesar da educação modesta foi-se cultivando intelectualmente, um ano depois de ter chegado começou a alugar carroças para trazer carvão às senhoras que vendiam na cidade, depois começou a produzi-lo e contratando senhoras para o vender e assim pode deixar o emprego inicial e tornou-se empresário abastado. Casou com uma nativa e teve filhos mas em 1908 ficou doente e voltou à Madeira para se tratar mas terá falecido pouco depois. Ora há no livro, que noutros aspectos já vimos que mistura realidade com ficção,  pontos que coincidem com a história real (o de ETV ter sido contratado para as obras dos CF, o saber ronga, talvez a sua esposa fosse a Erne co-autora do dicionário), outros que se podem ajustar (o ter ficado abastado e por isso ter pertencido ao conselho do governador) mas há um que me levanta mais suspeitas, o de inicialmente ser um trabalhador braçal. 
Isso porque os Torre do Valle eram uma família nobre portuguesa e em Moçambique pelo menos dois membros tiveram posições de destaque na sociedade pouco compatíveis com as ditas origens modestíssimas de ETV. Já referi aqui Armando de Vilhena Torre do Valle (ATV) que foi um dos pioneiros da aviação local e um Tenente Torre do Valle que entre cerca de 1906 e 1910 foi ajudante de campo e depois chefe de Gabinete do Governador-Geral Freire de Andrade e dele falo aqui com mais detalhe.
Sobre ATV um artigo completo no VoandoemMoçambique diz que nasceu em 1888. Por isso em 1904 - quando o envelope visto em cima foi enviado - ATV teria uns 16 anos pelo que ATV não poderia ser ele proprietário da firma Torre do Valle da Rua Araújo (sabe-se que era funcionário da WNLA). Para mais da página de FB sobre um livro recentemente publicado sobre ATV (publicidade aqui) fica-se a saber que ATV foi o irmão mais novo de ETV. Se em 1906 ETV tivesse digamos uns 38 anos de idade (estimativa pelo que parece nas fotos e pela carreira profissional que tinha alcançado) então tinham diferença de idades de uns 22 anos o que estaria perto do limite fisiológico para terem uma mãe comum e era por isso físicamente possível.
Da referida página de FB sobre Armando de Vilhena Torre do Valle (ATV) fica-se também a saber que Ernesto Torre do Valle (ETV) foi muito ativo na defesa dos direitos dos africanos, o que já se podia antever da citação feita por Zamparoni e coincide também sobre o que é dito em "O Olho de Hertzog". É interessante também saber-se que ETV tem descendentes vivendo em Moçambique em linha com o que  aqui tinhamos referido sobre uma familia Bourlotos (de origem grega) - Torre do Valle (de origem portuguesa), o que se pode por exemplo comprovar pela menção à participação da moçambicana Carla Manuela Bourlotos Torre do Vale numa formação no Brasil.

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