Obras do Porto na base da Ponta Vermelha: Eng. Silvério e o resto dos seus planos (5/5)

Começamos com uma foto da revista O Ocidente disponibilizada pela Hemeroteca Digital de Lisboa:

FOTO 1
Edifícios das antigas Obras do Porto fotografados c. de 1907, 
abaixo da barreira da Ponta Vermelha

Como dissemos em parte no artigo anterior, segundo o livro "A Engenharia Portuguesa na Moderna Obra de Colonização" do Eng. Lopes Galvão publicado em 1940 e a partir da página 126, o engenheiro Silvério Pereira da Silva (1827-1910) esteve em Lourenço Marques (LM), actual Maputo do final de 1896 a meados de 1899.  Adaptanto o texto, ao cabo desses dois anos e meio o Eng. Silvério apresentou um plano completo de obras a realizar na margem norte do estuário do Espírito Santo, actual de Maputo, e que compreendia três secções para o cais e outros dois componentes, divididas do seguinte modo. 
a) 1a secção: muro-cais para pequenas embarcações, entre a Ponta Vermelha e a ponte da Alfândega. O projecto específico destas obras, que ficaram conhecidas por Obras do Porto (OdP) como se vê referido na legenda da FOTO 1 e que que falámos nesta série de artigo foi apresentado ao mesmo tempo que o plano, que era mais geral e alargado.
b) doca de abrigo para pequenas embarcações junto e a montante da ponte de Alfândega;
c) 2a secção: cais acostável a grandes navios, em frente da cidade, que ia da ponte da alfândega à ponte do caminho de ferro (aqui e aqui neste artigo);
d) 3a secção: cais acostável a navios de menor calado (ver na wikipedia) para montante da ponte do caminho de ferro até ao quilómetro 4 da linha férrea;
e) bacia de entrada e estacionamento dos navios e pequenas embarcações a remos, docas e plano inclinado.
Não temos o esquema / planta original deste plano mas podemos ver nas fotos de 1937 de Mary Meader o que veio a ser aí construído depois e assim tentar imaginar o que o Eng. Silvério teria previsto: 

FOTOS 2 e 3

Amarelo: muro de suporte do aterro da Maxaquene construido entre 1915 e 1920
Vermelho: primeira parte de ponte-cais acostável construida entre 1902 e 1914
Branco: pequeno prolongamento da ponte-cais acostável para leste 
feito em 1916 e para fechar a primeira doca
Azul normal: grande prolongamento da ponte-cais acostável para oeste
feito depois de 1914 e até 1930 
Seta azul escuro: a partir de 1930 fizeram-se extensões 
como se vê aqui no plano geral do porto de 1965
Castanho escuro: cais das estâncias
Verde: primeira doca de pequenos navios
Roxo: doca da capitania / barcos de pesca  actual
Laranja: doca seca actual
Preto com seta: onde foi a ponte da alfândega (junto ao cais da alfândega)

Do que vemos nestas fotos aqui podemos concluir que a parte do plano do Eng. Silvério crucial para o porto comercial foi executada embora com alguns anos de atraso, que se podem justificar com a eclosão da segunda guerra anglo-boer em 1900.
Específicamente em relação às alíneas de cima:
1. O que foi construido em linha com o planeado mas um pouco mais tarde:
b) Uma doca de abrigo para pequenas embarcações junto e a montante da ponte de alfândega. Essa doca foi criada onde o Eng. Silvério propôs (a primeira doca marcada a "verde") mas uns 15 anos depois foi aterrada e substituida por uma nova doca um pouco mais para jusante (a marcada a "roxo"). Na primeira foto deste artigo via-se o início do desmantelamento dessa primeira doca através do pequeno prolongamento da ponte-cais para leste (em cima marcado a "branco") e até ao que veio a ser a actual doca da capitania.
c)  Um cais acostável a grandes navios, em frente da cidade. Essa é a primeira parte "vermelha" da actual ponte-cais Gorjão cuja construção se iniciou em 1902 e que nas fotos de 1937 aparece marcada a "vermelho". No entanto a profundidade a que foi colocada pode ter sido diferente da que o Eng. Silvério tinha previsto (lembro que para esta alínea ele tinha feito só o plano, não havia projecto detalhado);

2. O que foi construído muito diferente do que tinha sido planeado e/ou muito mais tarde:
d) Um cais acostável a navios de menor calado para montante do anterior, que deve ter sido o cais das estâncias marcado a "castanho" e com pontões projectados no estuário. A sua construção não deve ter sido feita muito mais tarde do que o Eng. Silvério planeou mas o local foi diferente do planeado: o seu início (a jusante) ficou muito afastado da ponte dos caminhos de ferro e o seu fim (a montante) ficou muito antes do km 4 da via férrea (o que seria já perto do vale do Infulene);
e) Uma bacia de entrada e estacionamento dos navios e pequenas embarcaçães a remos, docas e plano inclinado. Não foi construida na sequência dos planos do Eng. Silvério e que eu saiba só em conjunto com os trabalhos de aterro da Maxaquene e a construção da Doca da Capitania apareceu a doca seca, por isso em momento e local diferentes do que o Eng. Silvério teria previsto que seria para montante da 3a secção, que dizer para o lado de cá dos porto nas FOTOS 2 e 3.

3. O que não foi construído dos planos do Eng. Silvério:
a) Um muro-cais para pequenas embarcações, entre a Ponta Vermelha e a ponte da alfândega. O trabalho foi iniciado ainda pelo Eng. Silvério mas sem sequência significativa (Obras do Porto). Nessa zona só depois de 1915 se construíu um muro de suporte para se fazer o aterro da enseada da Maxaquene da marca "amarelo" mas nessa altura o objectivo foi só urbanístico..
Sobre o que foi feito ainda pelo Eng. Silvério (e que foi acompanhado por Montague Jessett) disse o Eng. Galvão: "Muitos blocos artificiais (de betão) foram construidos mas ficaram sem utilização. Durante anos conservaram-se os estaleiros situados na parte baixa da baia logo por detrás do Hotel Cardoso (HoM: que me parece ser o edifício que se vê no alto da barreira na FOTO 1). Junto aos estaleiros foram construidos armazéns para material, casas para habitação do pessoal, linhas «decauville» para transporte de pessoal e material, etc.".
Uma foto publicada no blog delagoabay e dita ser de 1901 e tirada do lado de terra para o do estuário mostra estes blocos de cimento e podemos nesta foto do artigo 1 ver que eles estavam para lá da marca amarela. Para confirmar pode-se ver a posicão equivalente nas duas fotos do bate estacas e da casa à borda da água,

FOTO 4 (na margem a oeste da enseada da Maxaquene com a Catembe para o fundo)
à esquerda: uma fiada de moldes para o fabrico dos blocos
à direita: duas fiadas com blocos de betão empilhados (estimo aí 40 x 2 x 3 = 240 blocos) 
entre as fiadas: carris onde presumo se deslocava uma grua locomotiva
para se encaminharem os blocos para a beira mar

Esta FOTO 4 foi então tirada da barreira e a enseada da Maxaquene estava para a direita da faixa de terra que tinha resultado dos primeiros trabalhos na zona. Mas a grande conclusão é que estes blocos embora pertencentes às "Obras do Porto" acabaram por não ser usados na construção do porto de Lourenço Marques, pois a ponte-cais Gorjão permitindo a atracação de grandes navios foi construída uns km para oeste deste local e inicialmente com estrutura em madeira. Se a foto realmente for de 1901 nessa altura os blocos estariam aí abandonados e "à espera de melhores dias" dado que nessa altura (segunda guerra anglo-boer a terminar) se tomavam as últimas decisões sobre as prioridades e investimentos nas construções portuárias (as Obras do Porto, ou seja do lado da Ponta Vermelha tinham parado em 1899). No artigo 2 desta série podemos ver a descrição que Montague George Jessett que visitou LM em 1898 faz destes blocos, de como foram feito e onde e como seriam aplicados e de como a intenção falhou (a grua locomotiva caiu à água e embora tenha sido recuperada os planos de construção foram interrompidos). 
Votando ao tema principal, da alínea a) pode-se assim concluir que nunca esteve planeado frente à enseada da Maxaquene a construção de cais acostável a grandes navios. Por isso alterei os artigos em que tinha desenvolvido essa ideia, não sabendo eu agora se devido a Alfredo Pereira de Lima ter confundido as coisas no seu livro "A História dos Caminhos de Ferro" de 1972 ou se devido a minha confusão ao interpretá-lo. É assunto a verificar, mas vários autores terem chamado às obras da 1a secção "Obras do Porto" fácilmente induz a que se pensasse tratar-se da ponte-cais há muito aguardada para a cidadeDe qualquer modo eu tinha chegado à conclusão aqui que um cais acostável para grandes navios nessa zona teria de ir muito para dentro do estuário tendo em conta a (pouca) profundidade do seu leito pelo que a construção seria difícil e atravancaria a passagem para a baía. Se se optasse por dragar ter-se-ia de estar permanentemente a repetir a operação, pelo que essa ideia não era muito exequível.
Quanto aos cais das alíneas c) e d)  fica-se com ideia que o Eng. Silvério previa uma ponte-cais acostável por navios de grande calado mais curta e uma por navios de menor calado mais comprida do que acabou por ser feito mas isso terão sido alterações naturais com o tempo devido à evolução do tipo de cargas e de navios que eram esperados passarem pelo porto.
Resto da série de artigos sobre as OdP aqui.

PS 1: o plano geral que o Eng. Silvério apresentou era acompanhado do projecto da 1a secção (muro-cais para pequenas embarcações entre a Ponta Vermelha e a ponte da alfândega) cujo orçamento era de 40.000 contos na moeda de 1940. A estimativa das obras da segunda secção (cais acostável a grandes navios da ponte da alfândega à do caminho de ferro) era de cerca de 30.000 contos.

PS 2: Os blocos da FOTO 4 (3 empilhados em cada fiada) têm numa face e presume-se que em duas faces ranhuras que serviam primeiro para passar as cordas do guindaste e depois para presumo colocar peças metálicas que garantia a verticalidade do conjunto. Tal desenho seria similar ao que havia nos blocos usados em 1911 para a contrução da ponte-cais de 1911 mas esses "rectângulos esticados", isto é a sua altura em comparação com a largura e comprimento era bastante menor do que a destes da FOTO 4 que parecem ser "cubos esticados". Para mais nos blocos desta FOTO 4 parece não haver as saliências / reentrâncias em dois dos eixos que se viam aqui nos de 1911.
MGJ refere que os blocos das OdP pesavam entre 2 e 3 toneladas. Como os que foram usados em 1911 para a construção de nova (ou renovada) secção da ponte-cais Gorjão directamente acostável a grande navios pesavam 30 toneladas (artigo  2 da série blocos de betão) pode-se ver a diferença significativa entre eles.

PS 3: Depois da escrita deste artigo fui informado dum artigo intitulado Obras do Porto de LM publicado na Revista Portuguesa Colonial e Marítima de 20 de Abril de 1903. Esse texto foi escrito pelo Eng. Vasconcellos e Sá que tinha sido responsável pelas construções no porto por volta de 1900  e por isso merece toda a atenção. Esse texto dá uma versão ligeiramente diferente do que eram os planos do Eng. Silvério que explano em cima pois a 1a secção iria só até à ponte de Allen Wack em vez de ir uns 200 metros mais para oeste até à Ponte da Alfândega. Acrescenta também um novo propósito para a construção da primeira secção que tem  a ver com a regulação do fluxo de areias do estuário para a baía e não fala do muro servir também para cais para pequenas embarcações.
OBRAS DO PORTO DE LOURENço MARQUES – pág. 195

Em duas secções bem distintas pelas suas caracteristicas, eram estas obras assim divididas:

A 1.a secção, compreendida entre a Ponta Vermelha e o cais particular da casa Allen, Wack & C.", tinha em vista:

1.   Rectificar a margem esquerda do porto n'esta parte, com manifesta influência sobre a vantajosa modificação do regimen das correntes de maré, no sentido de as fazer incidir mais directamente sobre os bancos da Polana, impedindo assim o crescimento destes, e podendo até produzir a sua diminuição.

2.    Aterrando toda a área limitada pela actual margem e pelo muro recto de revestimento a construir, melhorar considerávelmente as condições de salubridade da cidade, visto ficar actualmente toda essa grande superficie directamente exposta aos raios do sol durante as baixa-mares.

3.     Dotar a cidade com uma área de 72 hectares de terreno excelentemente situado e próprio para a sua natural expansão.

4.     Obter pela venda dos terrenos disponiveis assim conquistados, uma importante receita liquida para ser aplicada nas obras do porto.

A 2.a secção, desde o terminus da 1.a até à ponte do Caminho de Ferro, era especialmente destinada à acostagem de navios de grande calado, e compreendia uma doca d'abrigo para pequenas embarcações. Por efeito d'esta obra se conquistava ao porto, mesmo em frente da parte mais central da cidade, uma área de 146 170 m2.

Foram os projectos definitivos d'estas duas secções apresentados respectivamente em 17 de dezembro de 1898 e 15 de maio de 1899, havendo começado em maio de 1897 pelo lado da Ponta Vermelha, os trabalhos da 1.a secção, com a construcção d'aterros acima da linha dos máximos preamares e com a montagem d'instalações de servico, sempre indispensáveis em trabalhos d'esta natureza. 

Por falta d'accordo entre o general Silverio Pereira da Silva e a Comissão Superior Técnica d'Obras Públicas do Ultramar, sobre certas disposições do projecto e ainda sobre outros pontos do plano geral das obras pela mesma commissão elaborado, pediu este engenheiro a sua exoneração d'aquelle cargo e como consequência mandou o governo, por despacho

pág 196

de 22 de maio de 1899, suster os trabalhos, então em execução até ulterior resolução sobre o assunto, não tendo portanto nenhum d'aqueles dois projectos logrado obter a approvação superior. Havia n'essa data uma área de 7 hectares de terrenos conquistada ao mar com os aterros feitos, além de muito material de serviço e de construção adquirido para o proseguímento dos trabalhos com muito maior actividade. 

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