Esta é uma foto recente de Nuno Ibra dos arredores de Maputo, antiga Lourenço Marques (LM) / Delagoa Bay (DB) e serve de introdução a um tema com mais de 120 anos:
Estuário de Maputo, zona indústrial do Língamo e montes Libombos ao fundo. Frederick Lingham no medalhão |
Continuaremos então aqui a falar das concessões de terrenos marcadas na planta cadastral da cidade de Lourenço Marques (LM), actual Maputo de 1897 disponibilizada pelo Arquivo Histórico Ultramarino (ver em baixo), neste caso a que está marcada a castanho claro e que foi atribuida ao senhor da foto e na zona que vemos em cima.
Esse senhor é o canadiano Frederick Lingham (1852-1912) e a foto vem do site europeans in east africa que principalmente e no que diz respeito a LM diz o seguinte: "Profession: Lumber merchant from Delagoa Bay. ...General Information: North - F.R. Lingham - 'The Delagoa Bay magnate' (African World, 1903); ...; arr Mombasa from Lourenço Marques 13-12-1904; listed as new member of the Settlers Association, Nairobi 14-1-1905".
Lingham foi então comerciante de madeira em LM, em 1903 um meio de informação deve ter publicado um artigo em que o cognominava como "O magnata de DB" e parece ter saído de LM para ir para o Quénia no final de 1904, embora eu não esteja muito seguro que ele tenha de facto residido em LM. Sobre a sua presença no Quénia, presumo que posterior à em LM, pode ver-se aqui num édito de 1909 que em 1905 Lingham tinha recebido uma concessão de 64 000 hectares numa ravina de Eldana para explorar madeira, o que confirma o que se viu antes. Mas o governo considerava que ele não tinha usado a terra para o fim pretendido e corria o risco de perder a concessão. Não sei o que aconteceu nesse caso exacto mas certo é que 3 anos depois Lingham faleceu no Canadá.
Voltemos então à planta cadastral da cidade de Lourenço Marques (LM), actual Maputo de 1897 para vermos onde aparecia a concessão de Lingham:
Pode ver-se na planta que a área da concessão de Lingham era 200 hectares e que ela tinha sido atribuida em 1897. Como veremos ele desenvolveu umas actividades industriais e planeou outras mas parece-me que em geral a médio prazo fracassaram pelo que a informação de cima de que em 1904 partiu para o Quénia não me surpreende.
Todavia houve continuidade na utilização dessa área - que penso faz parte da Matola mas antes seria considerado um subúrbio de LM - pois ficou reservada para instalações industriais. Por exemplo foi aí construído o cais de minério e de petróleo (parece que tinha boas condições naturais para tal), instalou-se a refinaria de petróleo (aqui também), a fábrica de cimento (em 1918) e a fábrica da CIM e na foto de cima vemos ainda partes dessas infraestruturas e instalações e das suas sucessoras.
No livro "Delagoa Bay - Key to South Africa" de Montague de cerca de 1899 há a seguinte referência a uma fábrica de farinha e a depósitos de madeira na costa do estuário depois do vale do Infulene: e que fariam parte dos investimentos de Lingham nessa zona ribeirinha: "further on is the fine Lingham Company Flour Mills, with a capacious granary attached, and some miles up the river the Lingham Timber Company's yards".
Numas questões presumo que colocadas em tribunal a um responsável pela NZASM, a companhia de caminho de ferro na linha para Pretória do lado da África do Sul que abriu em 1894/95 há também referência a madeiras e a Lingham. O responsável dizia (e isto teria sido até 1899, início da 2a guerra anglo-boer) que como não sabia se/quanto do tráfego do Transvaal seria encaminhado pela linha para LM dado que Pretória nessa altura estava também ligada por caminho de ferro a Durban e ao Cabo tinha tratado de assegurar um contrato com o senhor Lingham:
Nesse texto não se percebe bem se a madeira era importada / depositada por Lingham em LM antes de ir de combóio para o Transvaal ou se era o contrário, o "for DB" parece indicar esse sentido mas o Transvaal era grande importador de madeira de qualidade (presumo que para as galerias subterrâneas nas minas) e esse era um dos materiais mais transaccionados no porto de LM pelo que presumo devesse ser "from DB" mas ....
O relatório comercial dos EUA de 1902 fala também de Lingham e das suas iniciativas
Lingham Timber com cais e ramal para a linha de Caminho de Ferro |
Pode ver-se aqui o Língamo actualmente com o ramal de caminho de ferro que em 1897 estava planeado dando a volta à zona industrial pelo lado direito e indo ligar à linha principal um pouco mais a norte na estação da Machava criada já o século XX cerca do Km 10 (ver o K 10 na planta). Esse relatório comercial dizia também que a costa do Lingamo até à foz do rio Matola tinha sido comprada por firmas de Johannesburgo e que zona passaria a ser usada para armazéns de carvão e madeiras. Tal parece-me que não se concretizou pelo menos em grande escala embora não seja claro onde estariam a considerar ser a foz do rio (que normalmente se considera fica bastante à esquerda = oeste do Língamo).
Numa carta de 1915 podemos ver que esses terrenos tinham passado para a posse do Estado pois do lado direito aparece um traço roxo que corresponde ao limite a oeste da concessão. Ao centro dela está escrito Lingham e à direita está o referido ramal de caminho de ferro que vai ter à estação da Machava.
Ivens Ferraz que foi capitão do porto de LM entre 1895 e c. de 1900 e por isso estava em cima do acontecimento escreve o seguinte na sua "Descrição da Costa de Moçambique" publicada em 1902 confirmando o que vimos antes: "É nos terrenos da Matolla, entre este rio e o Espirito Santo, ao fundo do porto de Lourenço Marques e no seu melhor ancoradouro, hoje conhecido por Porto Afonso d'Albuquerque, que fica a célebre concessão Lingham, onde estão estabelecidas grandes estâncias de madeira, fábricas de serração e moagens a vapor e um boa ponte de madeira acostável a navios de regulares dimensões. Esta concessão está ligada com a linha ferrea de Lourenço Marques ao Transvaal por meio d'um ramal que vae ao kilómetro 10 d'aquella linha, o que lhe dá uma grande importância".
De notar que aqui num livro aparece referência a uma greve na Lingham Timber em 1905.
Relacionado com o que aqui vimos, escreveu em 1940 no livro "A Engenharia Portuguesa na Moderna Obra de Colonização" o Eng. Lopes Galvão: "O chamado porto da Matola é um complemento do porto de Lourenço Marques. Ali se acham instalados os grandes depósitos de óleos, petróleos e gasolinas. Tem também cais acostáveis e amplos terraplenos que faziam parte da antiga concessão Lingham. Do tempo deste concessionário existe ainda um frigorifico que não tem havido necessidade de utilizar. Ali se encontra também abandonada a construção de um outro grande frigorifico que se destinava à exportação de carnes congeladas ou simplesmente resfriadas. Foi a «Smith Field Cold Storage Co» que obteve a concessão para montar uma grande instalação que não concluiu por não ter conseguido garantia de transporte marítimo para as carnes a exportar". Isto dá ideia que Lingham teria instalado um primeiro frigorífico na concessão mas não é certo e sobre o outro posterior não consigo encontrar informação sobre a referida "Smith Field Cold Storage Company" (Smithfield era um mercado de carne em Londres).
É também de mencionar que no seu relatório publicado em 1902 "Descrição da Costa" o oficial de Marinha Ivens Ferraz refere-se assim ao rio Matola e à zona de Lingham (Lingamo) e descreve o que estava já construído nessa altura (ponte cais, depósito de madeiras e fábrica de serração e moagem, o mesmo que Montague tinha dito em 1899): "O Rio da Matolla é o mais septentrional dos três tributários do porto e tem cerca de 2 amarras de largura na foz e quasi 5 m de profundidade. Umas 8 milhas acima, diminue consideravelmente de largura e fundo, sendo navegável mais além só para pequenas embarcações. É nos terrenos da Matolla, entre este rio e o (estuário do) Espirito Santo, ao fundo do porto de Lourenço Marques e no seu melhor ancoradouro, hoje conhecido por Porto Affonso d'Albuquerque, que fica a celebre concessão Lingham, onde estão estabelecidas grandes estãncias de madeira, fabricas de serração e moagens a vapor e um boa ponte de madeira acostável a navios de regulares dimensões. Esta concessão está ligada com a linha férrea de Lourenço Marques ao Transvaal por meio d'um ramal que vae ao kilometro 10 d'aquella linha (futura estação da Machava), o que lhe dá uma grande importância".
No próximo artigo desta série falarei de mais duas concessões e neste veremos a suspeita de que Lingham era testa de ferro de interesses mais poderosos.
Mais sobre o Lingamo nos anos 50 / 60 aqui.
NB 1: No Delagoa Directory de 1898 é reportado que a Lingham Timber & Trading Co construiu uma moageira nas margens do rio Matola com altura de cinco andares pelo que era visível da Alta de LM. A capacidade dessa fábrica era de 400 sacos de farinha e 200 de "meal" por dia, e a torre elevadora tinha capacidade de 1500 "bushells", a grua para os cereais tinha altura de 80 pés = 24 m e podia distribrui-lo automáticamente por toda a fábrica. Os fabricantes tinham sido McCulloch & Co. de Toronto. A força motriz provinha duma máquina de 150 hp e previa-se a construção do ramal ferroviário para a linha principal. Tinha sido construída uma ponte de atracagem sólida e cómoda onde os navios que traziam os cereas podiam descarregar para veículos que levavam aos elevador.
NB 2: O livro de Aurélio Rocha que se chama "Associativismo e nativismo em Moçambique: contribuição para o estudo das oriogens do nacionalismo Moçambicano" e de que pequena parte está no disponível no google books tem o texto seguinte: "Neste ano, a pressão sobre a terra era muito grande. Para apoiar o fomento colonial, tinha sido legislada a possibilidade de cada colono ("patriota») com dez anos de África adquirir 10 mil hectares de terreno, sendo os Africanos obrigados a recuar para dar lugar às culturas dos concessionários. Alguns desses "patriotas» chegaram a pedir 30 mil hectares ao longo do rio Maputo "que depois venderam a um Sindicato formado em Johannesburg». Não sei a qual das concessões de que falamos nestes artigos se referirá essa transação mas por aqui entende-se o processo pelo qual os nativos africanos foram afastados das suas terras ancestrais.
NB 3: No Delagoa Directory de 1898 é reportado que devido à falta da carne em 1898 e ao preço elevados que atingiu, tornou-se aconselhável instalar um Frigorífico. Uma firma de Cape Town obteve a concessão e entretanto tomou conta da fábrica de gelo de Paulino Fornasini que ou ele tinha falecido ou a firma fechado. Preparavam um frigorífico provisório enquanto o edifício permanente não fosse erigido e esperava-se que no início de 1900 houvesse em LM carne congelada disponível.
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