Embarcações em LM em 1894/95: Comandante F. Vieira da Rocha do Bacamarte e combate de Marracuene (2/3)

 

Capitão de Mar e Guerra F. Vieira da Rocha do Bacamarte
destacado numa Revista da Armada de 2003

Continuando o artigo anterior sobre embarcações militares em LM em 1894/95 e seguindo a perspectiva portuguesa convencional, falaremos aqui mais da lancha Bacamarte - que tinha passado a ser comandada pelo tenente Filippe Trajano Vieira da Rocha da foto de cima - e das acções militares portuguesas na região do Incomáti inferior nos primeiros meses de 1895.
Vimos já que na madrugada de 2 de fevereiro de 1895 a coluna militar que tinha saído de Lourenço Marques (LM), actual Maputo a 28 de janeiro foi atacada pelas forças de Mahazul quando acampada em Marracuene mas ao fim de hora e meia de violento combate os atacantes africanos retiraram com muitas baixas.
Informação dum livro muito interessante que está no site macua.org de que não sei o autor é que António Enes (AE), o recém nomeado comissário-régio português em Moçambique, recebeu (presumo que na noite de 2 para 3 de fevereiro) e pondo fim às suas bem justificadas angústias a notícia de que tinha havido um grande combate em Marracuene e de que as forças portuguesas o tinham vencido. 
De seguida AE deslocou-se com o médico (naval) Rodrigues Braga à praça 7 de março, actual 25 de junho na Baixa da cidade de LM a fim de acolher os feridos portugueses do combate. Quem ler só esta informação questionar-se-à porque foi AE para a Baixa da cidade que estava no lado oposto ao da estrada que a ligava a Marracuene. Seria então de esperar que AE tivesse ido para esta zona na alta da cidade e se o transporte dos feridos tivesse vindo por aí para chegar ao Hospital Civil e Militar que ficava na actual Praça da Independência eles não teriam passado pela Baixa, para onde de facto AE foi. Agora sabemos a resposta a esta duvida, ou já devia estar previsto que os eventuais feridos da coluna fossem transportados para a margem do Incomati e daí encaminhados por barco para a cidade ou tal foi decidido na altura e AE foi entretanto avisado e por isso ele foi para a Baixa onde está o porto.
Sobre esses feridos e como foram cuidados no rescaldo do combate ainda em Marracuene e no percurso para LM, AE escreveu no livro A Guerra de África de 1898: "Os feridos, depois de receberem os primeiros cuidados clínicos, foram embarcados numa lancha, toscamente abrigada das chuvas e das solheiras, para serem transportados a Lourenço Marques a reboque do incansável Bacamarte. A viagem foi trabalhosa, demorada por encalhes, contrariada por correntes, ameaçada pelo habitual tiroteio das margens. Um dos feridos expirou no lanchão, entristecendo ainda mais aquelle comboio de soffrimentos". 
Vemos aqui de novo o destaque que o Bacamarte teve também neste momento, mas e de novo quem ler só esta passagem questionar-se-à porque foi ele e não o navio Neves Ferreira  (ler todos os artigos específicos sobre ele aquique era muito maior e certamente veloz a fazer esse serviço. Mas já sabemos que dada a quilha do Neves Ferreira não havia garantia de como e quando ele poderia passar pela barra do rio para chegar a LM e por isso era o Bacamarte a opção mais segura. 
Mas há ainda coisas que ficam sem resposta por exemplo se estava planeado que a assistência médica em caso de vítimas na coluna fosse feita por via fluvial e marítima como foi ou se tal resultou de decisão tomada a quente pelo comando no local tendo em conta os meios que lá estavam disponíveis (o Bacamarte, o lanchão de reboque), até porque e é bom sublinhar que primeiro ninguém sabia que haveria um grande combate com as forças de Mahazul e segundo que ele aconteceria em Marracuene, mesmo ao lado do rio e onde as duas embarcações portuguesas tinham há pouco fundeado.
Segue-se uma foto que dá uma ideia do rio em Marracuene, tirada da sua margem direita e uns 15 anos depois dos combates:
Rio Incomati visto do alto de Marracuene, a montante para o fundo

Voltando à narração de 1895 e à coluna militar em terra, como esta tinha vencido o combate ou pelo menos tinha aguentado o embate sem danos de maior, as suas chefias pretendiam explorar a dinâmica criada e aprofundar o ataque a Mahazul. Mas AE foi cauteloso e manteve as últimas instruções, dadas antes de saber que haveria combate e qual seria o seu resultado. AE considerava que face aos grandes riscos que continuava a incorrer que a totalidade da força portuguesa, após mais alguns dias de presença em Marracuene, regressaria à cidade aonde ela de facto chegou a 6 de fevereiro.
Posteriormente Freire de Andrade convenceu AE da necessidade do estabelecimento em Marracuene dum forte, medida ainda arriscada pois só cerca de 100 homens estariam disponíveis enquanto que no combate de Marracuene tinham estado 600 do lado português e a qualquer altura eles poderiam ser atacados por forças rebeldes equiparadas às de 2 de fevereiro.  Para esse efeito e segundo Eduardo de Noronha (EN) na Revista Serões n. 15 de 1906 e com o Bacamarte a servir de guia, o vapor Neves Ferreira transportou para Marracuene os soldados e polícias e duas peças de artilharia para o novo fortim. Partiram do porto de LM na noite de 12 para 13 de Março de 1895 e escreve EN sobre o desenrolar da acção: "Amanheceu por fim.... O Neves Ferreira aproou à barra do Incomati, depois de costear a Xefina Grande, e entranhou-se nos meandros de verdura e nos labirintos de escolhos da tortuosa via fluvial. Não foi longo o trajecto. Um traiçoeiro baixio entravou-lhe logo aí a marcha. Nenhum enérgico esforço, nem recurso por mais heróico que fosse, do seu brioso comandante, o desarreigaram da fofa cama de areia. Demorou-se ali três dias. Ao cabo deles, depois de o aliviarem de quanto podia ser transferido para os batelões rebocados, lá seguiu rio acima, saudado ainda com mais fúria pela metralha e doestos da negraria, que durante os três dias da laboriosa faina".  Note-se que as descrições de Eduardo de Noronha e de António Enes destes acontecimentos são um tanto elaboradas e adjectivadas, o livro - aqui - "A Campanha das tropas portuguezas em Lourenço Marques e Inhambane" por Ayres de Ornellas (foto dele aqui mais tarde no palácio da Ponta Vermelha) e demais companheiros de armas relata-os dum ponto de vista mais objectivo e militar. 
Voltando à essa missão a meados de março dos dois navios no Incomáti, vê-se nessa descrição que apesar da derrota de Mahazul em Marracuene a 2 de fevereiro as forças do seu apaniguado Finish continuavam activas na foz do rio (e mais acima também houve ataques a partir das margens). Mas no desembarque e subida pela encosta em Marracuene que foi feito a 19 de março a força portuguesa foi só alvejada a partir da distante margem esquerda do rio e sem danos de maior, apesar do receio de que uma emboscada dos rebeldes africanos tivesse sido por aí preparada. Iniciou-se então rápidamente no alto de Marracuene a construção do fortim com madeira local e apesar de alguns alarmes principalmente na primeira noite quando as defesas estavam incompletas, não se deu nenhum ataque dos rebeldes. Isto significaria que o combate de Marracuene embora não os tivesse aniquilado tinha tido neles efeito bastante disuasor, isto é tinha baixado a sua expectativa de sucesso para novos ataques. Entretanto Mahazul e a sua força principal moveram-se para norte procurando a protecção de Gungunhana, para mais que os seus potenciais aliados ronga da Matola e Moamba tendo em conta o resultado do combate de 2 de fevereiro tinham cumprido as promessas feitas e alinhado definitivamente com os portugueses. 
Seguindo agora o livro Glórias e Martírios do General Ferreira Martins, preparando a colocação do fortim em Marracuene e a securização das margens do rio para nele garantir a navegação futura, a 28 de fevereiro de 1895 tinha sido ocupada a ilha da Xefina Grande e a 8 de março a da Xefina Pequena mais a norte, esta com tropa transportada em batelão rebocado pelo Bacamarte (as duas ilhas estão aqui, os seus qualificativos são relativos ao comprimento não às suas áreas). 
Depois e com a segurança dada pela presença em Marracuene, as forças portuguesas (na maioria chegadas em novembro de 1894, os reforços para uma grande ofensiva estavam a ser aguardados) saíram definitivamente da cidade e passaram à ofensiva contra Mahazul. Assim no princípio de abril de 1895 foi ocupada a ilha de Benguelene ainda com o Bacamarte a conduzir a força e a 1 de maio ocupou-se Incanine onde foi instalada uma ponte para se atravessar o rio para a margem esquerda (aqui em foto do ACTD não localizada precisamente mas que no livro "A Campanha das tropas portuguezas em Lourenço Marques e Inhambane" por Ayres de Ornellas e seus pares é dito ser em Incanine).
Ponte de Incanine sobre o rio Incomáti, para a passagem das tropas em 1895 (ACTD)

Utilisando esta ponte a força portuguesa foi a 17 de maio a Mapunga, a povoação de Mahazul, que foi incendiada e o mesmo foi feito a 21 de maio de 1895 na Macaneta à instalações do Finish devendo este ter terminado aí definitivamente a sua resistência. A presença de rebeldes na zona de Marracuene / Magaia / Nonduana deixou assim de constituir risco para as forças portuguesas e o Incomáti passou a ser via de comunicação e abastecimento seguro para a ofensiva contra os vátuas de Gungunhana em Gaza que estava a ser preparada mas não tinha sido ainda decidida.  
Esta acções foram feitas com o apoio da lancha Bacamarte e do vapor Neves Ferreira e em menor grau da lancha Xefina enquanto se aguardava a chegada, não só de mais tropas vindas de Portugal, como das lanchas canhoneiras fabricadas em Inglaterra. Mas como vimos a utilização destas lanchas mais sofisticadas no rio Incomáti falhou por completo e tendo o Neves Ferreira sido depois deslocado para o rio Limpopo, no Incomáti e assegurando a ligação da tropas portuguesas com LM, ficaram o Bacamarte e as lanchas Sabre e Carabina que tinham vindo do rio Zambeze para o sul como vimos aqui.
Segundo o livro de Ayres de Ornellas (por volta da pág 35) a lancha Bacamarte afundou-se em 1897 quando ia a reboque do transporte África de Lourenço Marques para a Ilha de Moçambique para participar na campanha militar portuguesa contra os Namarrais de 1896 e 1897 e que foi chefiada por Mousinho de Albuquerque e de que vimos esta foto.
No próximo artigo completaremos a biografia de F. Vieira da Rocha, comandante da lancha Bacamarte em Moçambique a partir do final de 1894 e pelo menos durante 1895.

NB: O estado-maior de AE no início da campanha era formado por Eduardo Costa e Aires de Ornelas, jovens e estudiosos militares que  nunca tinham estado nem em África nem - até essa campanha - em combate e o outro membro do seu gabinete, Freire de Andrade tinha estado em Moçambique mas não em combate. Experimentados guerreiros eram o impulsivo Henrique Paiva Couceiro vindo com AE mas que só tinha estado em Angola e o não menos impulsivo Caldas Xavier da companhia local e mais velho uns anos que os outros e que teria sido chamado por AE para ser colaborador próximo. 
Estes elementos podiam ter opiniões antagónicas entre si e em relação às de AE, um civil ligado à letras e política mas já com experiência de vida, que no fundo tinha de tomar as decisões militares. Por isso logo de início AE requereu ao governo em Lisboa a presença em Moçambique dum militar mais veterano para chefe de Estado-Maior e para comandar as tropas e que foi o Coronel Galhardo que só chegou mais tarde.

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