Porto de LM, 1a doca: relatório francês de 1903 sobre firmas de navegação (E/)

Continuo a série sobre a que venho aqui chamando a Primeira Doca (PD) do porto de Lourenço Marques (LM), actual Maputo que terá sido criada em data incerta entre 1903 e 1907 e foi referida em 1907 num artigo como sendo a "doca dos lanchões ou lanchas" o que é equivalente a barcaças.
Começamos por rever um pormenor da FOTO 1 do artigo anterior e em que como disse antes, em primeiro plano se vê barcaças fundeadas e abrigadas na PD, no limite a norte da PD está o muro-cais com guindastes a vapor para a sua carga e descarga, depois um espaço a céu aberto para armazenamento de mercadorias e para o fundo, do centro para a direita da imagem, o armazém do cais que estava atravessado a sul da praça 7 de março, actual 25 de junho e do qual em 1896 só havia o coberto.

FOTO 1
Barcaças fundeadas na primeira doca do porto de LM com o seu muro-cais para o fundo = norte

Vamos também seguir aqui um relatório francês intitulado "Rapports commerciaux des agents diplomatiques et consulaires de France" que menciona aspectos do porto de LM, por esses tempos. Atendendo a que o relatório foi publicado em 1903 será anterior à PD e por isso relativo ao Cais da Alfândega (CA, de que falámos mais aqui ) que antecedeu a PD e que até é lá explicitamente mencionado. No entanto e como veremos muito do que está no relatório poder-se-ia aplicar à PD o que não é surpreendente dado que a PD deve ter sido criada pouco depois da sua preparação, porque o CA e a PD estavam em locais eram muito próximos e porque exemplo a PD veio usar parte da mesma estrutura que tinha sido usada pelo CA (usaram lados diferentes do que chamei a Plataforma do Cais da Alfândega) - ver NB 1. 
Posto isto, nesse relatório especificamente relativo à constituição e operação do porto de LM era dito que: "Para a descarga das mercadorias dos navios utilizam-se barcaças que em seguida iam encostar ao cais da alfândega. 
Um sistema de bóias adequadamente distribuídas facilita a entrada aos navios que ancoram a 250 metros do cais de passageiros
Pontes de pedra permitem a barcaças descarregar mercadorias com guindastes a vapor enquanto se aguarda a conclusão de uma ponte cais em construção que, dizem, terá capacidade para 4 navios atracarem simultaneamente. 
Foi desenvolvido um grande projeto para construir docas com mais de 3 quilómetros de comprimento e ganhar uma enorme extensão de terra do mar, mas os planos parecem abandonados e estava-se simplesmente a construir um cais perto da estação ferroviária".
Quanto às operações no porto, nos últimos artigos temos explicado o uso das barcaças em linha com o que era dito na primeira frase do relatório mostrada em cima e complementaremos o assunto mais abaixo. 
Quanto ao sistema de bóias presumo que teriam sido colocadas na baía e no estuário e que deveriam estar reflectidas na carta de 1903 mostrando o canal de acesso ao porto (navegação mais genéricamente tratada neste artigo). Sobre os navios ancorarem a 250 m do cais é relativo à situação anterior à ponte-cais Gorjão e é compatível com o que tinhamos mencionado neste  artigo. De facto o que se tentava sublinhar no relatório é que era possível os navios ficarem relativamente próximo do local de desembarque de passageiros e de descarga das mercadorias e por isso que a transferência feita pelos botes e barcaças entre terra e os navios podia ser rápida, cómoda e segura.  
A frase seguinte do relatório sobre pontes de pedra, etc  podia aplicar-se à FOTO 1 pois nesta aparecia um muro-cais que como já dissemos estava relacionado com o CA e barcaças com mercadorias e os guindastes a vapor para as descarregarem. 
Quanto ao "projecto das docas com mais de três kms e planos abandonados" mencionado no relatório, ele referir-se-á ao da ponte-cais Gorjão que foi idealizada por volta de 1900 mas só iniciada no terreno em 1902 - série aqui. É provável que o relatório tenha sido preparado durante a segunda guerra anglo-boer e nesse periodo o transporte de mercadorias para o Transvaal pelo porto de LM ficou muito reduzido e os planos de investimento na nova ponte-cais, por essa e outras razões, foram  adiados. Mas o fim desse conflito em Maio de 1902 trouxe certamente um novo impeto aos melhoramentos do porto e a a construção da nova ponte-cais começou ainda nesse ano. Em 1903 foi colocada ao serviço a sua primeira secção e em 1907, segundo texto da revista Ocidente tinham sido concluidos os seus primeiros cerca de 900 metros o que permitia a acostagem de 7 grandes navios ao mesmo tempo, i.e. mais três que os quatro do relatório, e daí podermos agora dizer que o seu autor foi demasiadamente pessimista relativamente ao progresso das instalações portuárias de LM.
Conclui ainda o relatório esse capítulo com o parágrafo seguinte: "Últimamente, muito tem sido falado da criação de um porto ao fundo da baía num lugar chamado "Matolla", que seria usado especificamente para um caminho de ferro de Lourenço Marques a Joanesburgo pela Suazilândia". Sabemos que o cais na Matola foi criado já com o século XX adiantado e inicialmente para as gasolineiras pelo que esses planos do início do século se terão realmente atrasado. Noto que por vezes se chamava Matolla à zona do Cais da Estâncias mas como em 1903 presumo que essa instalação já existia não devia ser a ela que o relatório se referia. Para além disso de facto esteve previsto no início do século XX que uma linha da Suazilândia - África do Sul saísse da Matola (Lingham) mas tal linha só foi feita anos mais tarde e restrita ao âmbito nacional (linha de Goba) e acabou por partilhar a estação de LM (embora tivesse sido criado um ramal para o referido Língamo).
Relativamente às firmas envolvidas nas operações portuárias, noutra parte do relatório era dito que "o serviço de descarga das barcaças estava nas mãos de cinco empresas: Anglo German Boating; Rand Delagoa Bay Landing; Companhia de Lourenço Marques; Empresa Africana de Cargas e Descargas e African Boating". Aqui aparece relação directa com a FOTO 1 pois nesta vê-se escrito "Anglo German Boating" na lona que cobre as mercadorias na barcaça mais próxima (e só "German Boating" na que ladeia o muro-cais). A FOTO 1 mostra então que pelo menos uma das firmas mencionada no relatório continuava a operar alguns anos depois dele ter sido escrito apesar de entretanto ter começado a funcionar a nova ponte-cais. Esta permitiu que grandes navios lá atracassem directamente e por isso que esses dispensassem as barcaças, mas a capacidade da ponte-cais cresceu lentamente e de início certamente que muitos dos navios que procuravam o porto tiveram de continuar a fundear no estuário. Isso significa que as firmas envolvidas nas operações portuárias tiveram tempo para se ir adaptando às mudanças que foram acontecendo no caso de estarem interessadas em prosseguir a sua actividade em LM. 
Aparece a seguir uma referência a outra das empresas listadas pelo relatório e que mostra que ela se manteve activa em LM pelo menos mais alguns anos. Trata-se da Empresa Africana de Cargas e Descargas de que vemos um envelope com selo carimbado em 1907 e que esteve à venda recentemente no site delcampe.net (mas com custo de EUR 100!) - ver NB 2.

IMAGEM 1
Envelope da Empresa Africana de Cargas e Descargas
carimbado em 1907, anos depois de ter sido mencionada no relatório

Disto tudo podemos dizer que o relatório confirma e complementa o conhecimento do porto de LM no início do século XX que mais recentemente tentamos obter com a observação das fotos da PD, mesmo sendo estas um pouco posteriores e de local algo separado do que aquele a que o texto se referia, e o conhecimento que tinhamos obtido antes e relativo a um período mais largado.
No próximo artigo voltaremos mais específicamente à Primeira Doca para vermos uma foto muito elucidativa do início da sua construção que terá acontecido entre 1903 e 1907 e outra foto de 1907 quando os trabalhos da primeira doca e do que a circundava estavam já finalizados. 
Ver série completa no HoM sobre a primeira doca.

NB 1: Explicações do motivo porque embora o relatório deva dizer respeito ao CA se aplica bem à PD que lhe foi posterior, é por exemplo a continuidade e a proximidade: o CA tinha usado o lado a oeste da Plataforma do Cais da Alfândega (PCA), PCA essa que a PD também usou mas do lado sul; o local do CA tinha sido em frente ao armazém que aparece à esquerda da FOTO 1, por isso próximo o que é também indicado por a Casa da Alfândega que esteve na origem do CA dever ser na FOTO 1 o edifício de que se viam formas ogivais para o fundo do corredor entre os dois armazéns. Recorde-se ainda que ao tempo da FOTO 1  o CA tinha já desaparecido pois foi soterrado nos trabalhos para a ponte-cais Gorjão que decorreram para a esquerda = oeste do muro-cais aí à vista, antigo lado virado a sul da PCA.

NB 2: Nas cartas de correio dessa altura era específicamente indicado o trajecto a seguir, muitas vezes até o nome do navio. Neste caso dizia-se Pretoria e Cape Town pelo que ela iria no combóio de LM para Pretória e depois noutro combóio daí para Cape Town onde tomaria o vapor para o destino final na Europa (Holanda). Assim evitava-se esperar por um vapor que acostasse em LM e mesmo que estivesse previsto um por esses dias esta viagem por combóio era mais rápida do que o que o vapor demoraria para chegar a Cape Town, contando que certamente pararia antes em Durban e Port Elisabeth. Mas havia também a possibilidade da carta ser enviada num vapor que fosse de LM para norte e para a Europa via Canal de Suez o que faria com que esta volta pela Cidade do Cabo parecesse perda de tempo. Mas as firmas e os Correios deviam analisar tudo com cuidado antes de decidir.

Comentários