Eng. J.A. Lopes Galvão: carreira ultramarina ligada aos CF e OP em Moçambique (2/3)

Continuo aqui o artigo anterior da série sobre o percurso profissional e pessoal do  Eng. João Alexandre Lopes Galvão (1874 - 1951) na parte mais relacionada com Moçambique onde teve papel de relevo nos Caminhos de Ferro e nas Obras Públicas nas duas primeiras décadas do século XX, tendo depois continuado interessado no que se passava no território como veremos no artigo seguinte.

Carruagem do Caminho de Ferro de Lourenço Marques
parada algures na África Austral

Na dissertação de doutoramento de 2016 "Um império projectado pelo “silvo da locomotiva” de Bruno José Navarro Marçal há muito mais informação do que a que presumo era geralmente conhecida anteriormente sobre o Eng. Lopes Galvão (LG) pois foram por ele consultados os processos individuais de LG nos arquivos oficiais em Portugal. Bruno Marçal destaca no seu trabalho três "engenheiros coloniais no lançamento do III Império" que são Joaquim José Machado (aqui no S2A3) personalidade de maior relevo como técnico, político e administrador em Moçambique, Alfredo Augusto Lisboa de Lima, que foi dirigente dos Caminhos de Ferro de LM até 1910 e LG que seguimos aqui e que está por isso em ilustríssima companhia nesse estudo. 
A introdução ao texto da dissertação relativa a LG é a seguinte: "João Alexandre Lopes Galvão teve uma carreira profissional, ao serviço do estado português, pautada por alguns sobressaltos, o que não o impediu, todavia, de marcar um período importante da engenharia colonial portuguesa",
Mais concretamente sobre os trabalhos realizados por Lopes Galvão em LM, na nota de fim de página 205 a dissertação de Bruno Marçal tem a seguinte informação a que junto algumas notas entre parêntesis: "Numa informação enviada ao Ministério das Obras Públicas e Comunicações, a 1 de Junho de 1943, Lopes Galvão especificava os trabalhos realizados na qualidade de Engenheiro Chefe de Construção do Caminho de Ferro da Suazilândia (note-se aqui a existência de uma informação incorrecta, uma vez que, como foi já referido o engenheiro chefe desta construção era, na verdade, Lisboa de Lima)projectou e construiu a variante de Libombo e fez o projecto da fundação da grande ponte sobre o rio Mubeluz (será a ponte sobre o Umbeluzi em Boane, como os seus tramos são metálicos terão tido projectista diferente) e viaduto do Pruguene (deve ser de Muguene). Também fez o projecto do reforço de todas as pontes do caminho de ferro de Lourenço Marques e dirigiu os trabalhos (sobre este elemento não tenho mais dados mas por exemplo aqui falámos do reforço duma ponte em 1911, ano em que LG estava em função nos CFLM).
Construiu o Caminho de Ferro de Lourenço Marques à praia de Polana, trabalho feito em 35 dias para comemorar o 1º aniversário da proclamação da República (de que falámos aqui).
Dirigiu a obra de reconstrução do Cais Gorjão em betão armado” (tratar-se-ia da substituição do cais de madeira que tinha sido instalado a partir de 1902 e que terá tido início em 1907 e de que se fala por exemplo aqui. O problema é que pode ter havido vários engenheiros encarregados do trabalho e que convenientemente podem aparecer a reivindicá-lo e não clarificando que não o tinham feito em exclusivo).
Todos os trabalhos que LG compilou nessa informação estão relacionados com caminhos de ferro e correspondem ao primeiro período da sua estadia em Moçambique, entre 1905 e 1912. Na página 206 a dissertação de Bruno Marçal tem mais dados sobre esse período pois LG para além do cargo de chefia nos CFLM e mais tarde também no Porto (em 1910, com as mudanças geradas pela proclamação da república e a demissão do Eng. Lisboa Lima foi até nomeado seu director interino), foi vogal da Comissão Municipal (a direcção da Câmara da cidade) e presidente do Conselho do Distrito de Lourenço Marques. 
LG participou também em conferências e juntas negociais com a África do Sul respeitantes a assuntos ferroviários e aduaneiros. Em 1912 LG deixou Moçambique tendo sido substituído nos CFLM pelo engenheiro João Henrique Von Haffe e seguido para Angola onde realizou grandes vias férreas e como dissemos antes foi posteriormente também Inspector de Obras Públicas, o cargo máximo nesse sector no território. 
Nas páginas 209/210 da dissertação Bruno Marçal dá depois nota do regresso de LG a Moçambique primeiro como militar em Agosto de 1917 pois entretanto tinha sido mobilizado de Angola para a primeira grande guerra e depois dum período em Portugal tinha sido colocado na fronteira do Niassa. Mas em Novembro de 1917 LG foi nomeado inspector da Obras Públicas (OP) em Moçambique e como já disse no artigo anterior esse cargo devia ter  um âmbito muito alargado.
Da lista de construções que a wikipedia atribuiu a LG em Moçambique e que analizámos no artigo anterior, para além da execução da linha de Goba Bruno Marçal refere-se na sua dissertação únicamente ao Hotel Polana, ao que se adiciona o trabalho mais hierárquico de "relatório, memorandum, regulamento, memória" no seu campo de acção das OP e que incluía também os Caminhos de Ferro e portos. 
Todavia em Fevereiro de 1919 LG parte repentinamente para novo cargo no ministério das colónias em Lisboa, no qual pouco tempo esteve pois supostamente por ser considerado pouco republicano foi "devolvido" ao exército (NB). Sobre essa saída de LM Bruno Marçal escreve que "Em Moçambique, a sua exoneração (de LG em Fevereiro de 1919) não deixaria de ser lamentada. O Lourenço Marques Guardian, principal órgão (de comunicação social) da província, era peremptório em afirmar que o impulso dado pela sua enérgica actividade à roda do progresso colocou a Província em geral, e a cidade de Lourenço Marques em especial, numa situação mais prometedora do que nos anos anteriores à sua chegada. A sua partida é sinceramente lamentada, pois constituiu, infelizmente, a adição de outro nome à lista dos homens que a Província só dificilmente pode dispensar e que não deviam por esse motivo ser compelidos a deixar a colónia"
Em 1922 LG deveria estar ainda em Lisboa no exército mas depois terá tido mais um "zig zag" profissional pois a notícia seguinte de 1924 mostra-o de volta a Angola e a ocupar um alto cargo na administração civil (e via-se que mantendo bons contactos com a imprensa colonial em Lisboa):
Agosto de 1924. Lopes Galvão como Secretário Provincial de Angola

A partir de 1930 parece que LG tinha voltado a Lisboa de vez e passado a ter o "cargo de engenheiro inspector do quadro técnico de OP, que lhe dava assento, por inerência, no Conselho Superior das Obras Públicas" e participou em inúmeras decisões sobre novos projectos de infraestrutura em Portugal.
Sobre os "sobressaltos" profissionais de LG que Bruno Marçal refere em cima, realmente a ideia que colho é que houve muitos na sua carreira, houve postos em que ficou pouquíssimo tempo, saltou entre dois ministérios civis (colónias e OP) e o exército, mudou frequentemente entre Portugal "continental", Angola e Moçambique e teve também um pé no sector privado. Mas salvo este último caso, dá-me ideia que a maior parte dessas situações não aconteceram por iniciativa própria, foram consequência das alterações de política ou de responsáveis nas instituições nos primeiros anos da República, que depreendo disto tudo também deviam ser muito pessoalizadas. 
Bruno Marçal dá nota duma opinião na Revista Colonial sobre LG escrita a meados de 1919, quando LG tinha regressado há pouco a Lisboa vindo de Moçambique. Esse texto era um elogio à  capacidade de trabalho de LG mas deixava também uma nota de amargura sobre como ele era apreciado no funcionalismo (a que nível LG que era colaborador da revista terá influenciado essa opinião da redacção não sabemos): "Lopes Galvão é um trabalhador incansável, seguindo sempre em frente no seu caminho de inflexível honestidade, conduta esta que, pela rigidez do seu carácter, lhe tem acarretado desgostos, a que facilmente se furtam os que entendem que a distância mais curta entre dois pontos é uma linha sinuosa".
Ainda na dissertação sobre LG Bruno Marçal pode ver-se que em 1943 "o seu filho, Alexandre Augusto Lopes Galvão era engenheiro dos caminhos-de-ferro de Lourenço Marques, José Barata Lopes Galvão, também ele professor da Escola Técnica de Lourenço Marques" e o genro, Dr. José da Costa Proença, também era aí professor pelo que uma filha de LG também residia em LM. Outro filho, Tito Lopes Galvão era também médico veterinário em LM e em 1943 LG recomendava ao Governador-Geral Bettencourt para um cargo compatível em Moçambique (quer dizer "metia uma cunha") outro dos seus filhos, António Barata Galvão, engenheiro do exército,. Nessa altura LG indicava também ao governador que planeava estabelecer-se em Moçambique mas presumo que tal não tenha acontecido. 
Vê-se daqui e veremos mais específicamente no próximo artigo que as ligações de LG a LM foram mais profundas do que os cerca de nove anos intercalados em que lá residiu levariam a supor. LG visitou LM pela última vez em 1948 ("Em Lourenço Marques encontrou a “mais linda cidade da África Austral”) e ainda segundo Bruno Marçal faleceu em Lisboa em 1951, por isso com 77 anos de idade.
De notar que entre Lopes Galvão e Lisboa de Lima que foi seu chefe nos CFLM entre 1905 e 1910 houve posteriormente algumas divergências estratégicas sobre a evolução dos sistemas de transporte nos territórios ulramarinos portugueses. Podemos ver na foto seguinte Lisboa de Lima presumo que em Moçambique em 1907 com outros personagens ilustres em foto da Ilustração Portuguesa:
Sentado à esquerda: Eng Lisboa de Lima dos CFLM,
futuro ministro das colónias(1866-1935)

O grupo de cima foi a comissão directora dos festejos em honra do Principe Real de visita a LM em 1907. Sentado ao centro temos o seu presidente Dr. Serrão, que como vimos aqui (amarelo) era o Dr. José de Oliveira Serrão de Azevedo, chefe dos serviços de saúde (conhecido depois pela rua Jota Serrão). De realçar que já o era em 1893 como se pode ver aqui pelo que a sua presença em Moçambique foi longuíssima e sentado à direita estava Henrique Costa. Em pé estavam J.F. Ferreira e o capitão David Rodriques e faltava o sexto membro da comissão o capitão Baptista Coelho, chefe de Estado-Maior.
Um ponto interessante que é salientado nos estudos que consultamos relativamente a LG é que para os anos 30 o desenvolvimento das viaturas automóveis e das estradas tinha levado à concorrência do transporte rodoviário com o ferroviário. A questão era então se o Estado, que até aí tinha fortemente investido em linhas férreas, iria agora investir em estradas e se sim qual a estratégia a seguir. Sabemos que o desenvolvimento mais comum foi o Estado ter feito estradas "paralelas" aos caminhos de ferro tendo o tráfego e o rendimento previstos para estes sido reduzidos. 
Mas a opinião de LG era que os dois sistemas deviam ser complementares, quer dizer as estradas e os automóveis deveriam servir para trazer mercadorias e pessoas dos locais mais remotos e pouco geradores de tráfego para junto das linhas férreas que continuariam a ser a coluna vertebral do sistema de transportes. Esta estratégia teria sem dúvida teria sido a mais eficiente e, damos agora mais importância a esse aspecto, também a ecológicamente mais neutra mas ....
Pouco depois do livro "Engenharia" Lopes Galvão publicava outro e ainda sobre o Ultramar e que está à venda no site Coisas:
Lopes Galvão: "As comunicações ..." de 1942

Por fim foto de Lopes Galvão em idade mais avançada do que a do artigo anterior em que teria aí cerca de 30 anos:
Eng. Lopes Galvão (foto wikipedia retocada)

No próximo artigo falaremos mais específicamente sobre as opiniões de LG sobre questões de Moçambique particularmente das suas relações políticas e económicas com a África do Sul e que foi expressando na imprensa principalmente na década de 1930. A nível de escrita recordo que em 1940 o Eng. Lopes Galvão publicou a obra de referência "A Engenharia Portuguesa" e de que falamos no artigo anterior.

NB: Pelo que Bruno Marçal escreve o Eng. Lopes Galvão não parece ter tido problemas particulares com a transição da monarquia para a república, tanto é que sendo ele sub-director dos CFLM em 1910 foi promovido interinamente a director e manteve-se assim nos um a dois anos seguintes (o Eng. Lisboa Lima foi demitido em 1910). Mas pelo que o próprio LG escreve sobre a forma como o Governador-Geral Freire da Andrade até 1910 foi tratado nessa altura da mudança de regime pelos republicanos locais e o que aconteceu depois quando ele veio a ser nomeado Director Geral do Ministério (e tanto FA como Lisboa de Lima vieram até a ser ministros na República) LG era contra radicalismos.  A partir da revolução de 1926 e da instauração do Estado Novo LG parece ter ficado ao lado do novo regime salazarista.  

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