Continuo o artigo anterior seguindo o relatório "Descrição da Costa de Moçambique de Lourenço Marques ao Bazaruto" escrito pelo oficial da Armada Portuguesa Guilherme Ivens Ferraz (GIF) que se pode descarregar daqui. Foi publicado em 1902 reportando por isso ao que sucedeu até 1901/1902 e elucida sobre aspectos prácticos do funcionamento do porto de Lourenço Marques (LM), actual Maputo, das suas instalações e da navegação e muito para além do que a simples observação das fotos permite alcançar.
Veremos aqui uma parte importante do relatório pois explica como era usado o cais principal existente no porto na altura, o Cais da Alfândega. A partir daí podemos avaliar o que estava em causa na decisão da construção da ponte-cais acostável a grandes navios que descrevemos em detalhe nesta série que se inicou em 1902 e cuja primeira parte foi inaugurada em 1903. Ilustrarei o texto de GIF com uma foto da Campbell Collections que já vimos no artigo sobre as munições para os boers apreendidas em LM:
"Meios de descarga: Sendo Lourenço Marques um entreposto commercial em concorrência com os portos das colónias inglesas na Africa do Sul, parece que de há muito se deveria ter attendido à necessidade de facilitar o mais possível os meios de descarga, condição essencial para attrahir a navegação ao porto.
Pouco ou nada porém está feito, talvez por se suppôr que o nosso porto pela sua posição geographica leva incomparável vantagem aos portos vizinhos. Lourenço Marques é uma das portas do Transvaal, e não há duvida a respeito da superioridade do seu porto sobre aquelles, nem a respeito da distância ao Rand, mas essas diferenças não são tamanhas que não possam ser facilmente compensadas pela superioridade de installações commerciaes nos portos ingleses, ou pela differença de tarifas ferroviarias ...
Há no porto várias empresas de cargas e descargas dispondo de rebocadores e de 58 batelões cobertos com 30 a 90 toneladas de capacidade (representando ao todo 4 390 toneladas e 66 pranchas d'ar, que são empregadas também nas descargas. Estas embarcações, atracando de prompto aos navios que fundeiam no porto, depressa recebem a carga dos guinchos de bordo, mas, largando para terra, sujeitam-se a ficar captivas durante dias, á espera de vez para chegarem a um dos poucos guindastes montados na muralha de supporte que á falta de melhor serve de cais, como aconteceu desde 1896 até aos primeiros rumores da guerra Sul-Africana. ...O transporte de passageiros e bagagens é feito em catraios, cujos patrões são encartados na capitania".
O porto para barcaças em LM ao tempo de GIF e a que ele se refere seria certamente o que se vê na foto seguinte:
FOTO 1
Amarelo: ponte (embarcadouro ou desembarcadouro) donde a foto foi tirada,
vista aqui a uns 100 metros de distância
Carmesim (w): lado virado a oeste da plataforma em alvenaria
do Cais da Alfândega, vista parcial (mais completa aqui)
Púrpura-preto: cais mais a oeste e mais recuado que o Cais da Alfândega
Creme: corredor entre dois armazéns a sul do cais,
ficava na mesma direcção da marca "carmesim"
vista aqui a uns 100 metros de distância
Carmesim (w): lado virado a oeste da plataforma em alvenaria
do Cais da Alfândega, vista parcial (mais completa aqui)
Púrpura-preto: cais mais a oeste e mais recuado que o Cais da Alfândega
Creme: corredor entre dois armazéns a sul do cais,
ficava na mesma direcção da marca "carmesim"
O cais marcado a "púrpura - preto" utilizava o que tinha sido, de base, um muro de suporte entre o Cais da Alfândega (CA) e o embarcadouro ou desembarcadouro. Esse muro tinha sido aí erigido para se obter aterro para a construção dos dois armazéns compridos que se vê do lado de terra. Devia então ser essa construção "púrpura - preto" a "muralha de supporte" a que GIF se referia como sendo o cais em uso até c. 1900 mas vemos em muitas fotos dessa mesma época (por ex. aqui FOTOS 3 a 5) que o cais "carmesim W" era também importante e por acaso vemos na FOTO 1 um guindaste na esquina entre os dois. Avaliaremos mais em baixo porque era esta a posição do estuário, entre esses dois cais perpendiculares, a que estava primordialmente a ser usada no porto de LM nessa altura.
De realçar que estou a assumir que o "carmesim (w)" fosse um pontão ou molhe já com certa largura na direcção oeste (lado de cá) - leste (lado de lá, da Fortaleza) e que presumo nessa altura possibilitaria a movimentação de guindastes e pessoal. Mas de facto não sei se essa construção estaria ainda perto do tamanho inicial que vimos no artigo 20 ou se efectivamente faria já parte da plataforma do CA que partindo daí chegava ao meridiano do lado leste da praça.
Voltamos então à CARTA de 1897 para localizar o que GIF refere no relatório e o que se vê na FOTO 1 e repetindo o que já vimos em outros artigos:
CARTA de 1897 do AHU
Carmesim: Cais da Alfândega (CA) criado com a plataforma de alvenaria
em forma de rectângulo, com três faces no estuário (E=L, S, W=O)
Castanho claro: Ponte da Alfândega (PA) saindo para sul do canto a SW do CA
que estava mais para a direita, mais profundo no estuário, do que aparece na FOTO 1.
Creme: linha entre os armazéns como se vê na FOTO 1
Linha preta: Ponte de desembarque de Passageiros (PP),
não se vê nesta carta pois será posterior à PA e a 1897
Circunferência preta: Casa da Alfândega
Rectângulo verde: praça 7 de março, actual 25 de junho
Amarelo: embarcadouro ou desembarcadouro para oeste do CA
Púrpura - preto: cais num muro de suporte entre o CA e o embarcadouro ou desembarcadouro
Roxo: muro de suporte na costa norte do estuário para oeste da ponte "amarela",
não sei se também seria usado como cais por essa altura
Castanho escuro: ponte do caminho de ferro
Cinzento: actual Av. M. de Inhaminga, por onde tinha sido a praia original
antes do início dos trabalhos para o porto e caminho de ferro
Preto e branco: linha de caminho de ferro partindo da primeira estação (rectângulo preto)
e servindo de dique para fechar o antigo pântano
Violeta, à direita = a leste: ponte de Allen Wack
Seta azul: direcção predominante da ondulação vinda da baía
em forma de rectângulo, com três faces no estuário (E=L, S, W=O)
Castanho claro: Ponte da Alfândega (PA) saindo para sul do canto a SW do CA
que estava mais para a direita, mais profundo no estuário, do que aparece na FOTO 1.
Creme: linha entre os armazéns como se vê na FOTO 1
Linha preta: Ponte de desembarque de Passageiros (PP),
não se vê nesta carta pois será posterior à PA e a 1897
Circunferência preta: Casa da Alfândega
Rectângulo verde: praça 7 de março, actual 25 de junho
Amarelo: embarcadouro ou desembarcadouro para oeste do CA
Púrpura - preto: cais num muro de suporte entre o CA e o embarcadouro ou desembarcadouro
Roxo: muro de suporte na costa norte do estuário para oeste da ponte "amarela",
não sei se também seria usado como cais por essa altura
Castanho escuro: ponte do caminho de ferro
Cinzento: actual Av. M. de Inhaminga, por onde tinha sido a praia original
antes do início dos trabalhos para o porto e caminho de ferro
Preto e branco: linha de caminho de ferro partindo da primeira estação (rectângulo preto)
e servindo de dique para fechar o antigo pântano
Violeta, à direita = a leste: ponte de Allen Wack
Seta azul: direcção predominante da ondulação vinda da baía
A seta azul indica a direcção da ondulação vinda principalmente da baía devido às suas águas mais profundas e ser levantada pelo vento predominante de Leste. A plataforma do CA abrigava dessa ondulação principalmente as águas do estuário entre o lado virado a West dessa plataforma e o cais "púrpura - preto" que eram por isso as mais convenientes para serem usadas para os embarques / desembarques. O cais no lado virado a Sul dessa plataforma estava menos protegido pois apanhava as ondas de lado (a PP foi posterior e não oferecia grande protecção) e por isso ele só devia ser usado quando não houvesse alternativa nos cais da esquina que vemos na FOTO 1.
Para o cais marcado a "púrpura - preto" apesar de bem protegida a água tinha no entanto menor profundidade que aquela junto ao cais "marcado a carmesim W" nomeadamente quando este se afastava para a direita = sul = dentro do estuário. Por isso haveria alturas de maré baixa em que o cais marcado a "púrpura - preto" não podia ser usado, mesmo sendo as embarcações por aí movimentadas as barcaças de fundo chato, pelo que se tinha de recorrer aos cais na plataforma e virados a W (oeste) e a S (sul).
Em relação à posições das construções portuárias nessa zona, por alto estimo que o muro-cais "púrpura - preto" tivesse sido construido uns 40 metros para sul do muro de suporte inicial "violeta" da FOTO 2 do artigo 17 e do qual saía a PA primitiva e que este tivesse sido construído uns 30 metros para sul da frente da Casa da Alfândega.
A ponte-cais Gorjão foi construida a partir de 1902 mais ou menos alinhada com a extremidade da PA desse tempo e fica aproximadamente a 220 metros de onde esteve a frente virada a sul da Casa da Alfândega o que corresponderia à distância de cerca de 200 metros para a praia inicial. DE acordo com essa estimativa entre os paralelos da ponte-cais Gorjão e do muro-cais "púrpura - preto" a distância seria duns 150 metros. No artigo "o porto na origem de tudo" tentei marcar essas posições numa foto publicada em 1929 notando-se que aí o muro- suporte "púrpura - preto" referido aqui aparece aí marcado a "roxo". Note-se ainda que o comprimento total da ponte-cais Gorjão medido a partir do seu extremo a nascente = leste, ou seja do meridiano da linha do lado W da plataforma do CA "carmesim W" e da PA "castanho claro, por volta do ano de 1975 tinha ultrapassado 3 kms.
No próximo artigo veremos mais texto de GIF e imagens da altura e tentaremos perceber como é que o cais da FOTO 1 evoluiu nos anos seguintes.
Série específica aqui sobre os três armazéns da Alfândega.
Série completa aqui sobre o desenvovimento do porto até ao início do século XX.
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